Silvério acenou e saiu. Não demorou alguns minutos para Vanessa ouvir o ronco do motor. Foi até a janela e viu aquele homem grisalho resignado e forte dirigindo o seu carro sem perceber que ao seu lado estava uma nuvem negra de incertezas.

A cientista balançou a cabeça como quem quisesse apagar esse pensamento à força. "Às vezes o cansaço faz a gente ver coisas ruins" -, pensou.

Foi até ao quarto e no escuro mesmo entrou e se aproximou da cama. Tocou os pés de Jandira. A enfermeira levantou rapidamente solícita. Sabia que era hora dela assumir o plantão de vigia da casa.

"Pode descansar querida, você precisa" -, disse a enfermeira num tom amável. Virou-se e acordou o irmão com um simples sussurro. Joaquim se levantou e espreguiçou enquanto Vanessa tirava os sapatos e sentava à cama.

Vanessa anunciou em tom solene: "O padre e o pastor nos trouxeram um prisioneiro" -, pausou ela abrindo a boca de cansaço. "Mesmo preso, é perigoso. Portanto é imprescindível que não saiam da casa e nem passem pela garagem".

Joaquim olhou desconfiado para Vanessa. Jandira percebeu e em seu lugar disparou: "É um alienígena?".

"As orientações são para não se aproximar. É melhor seguir" -, disse Vanessa fechando os olhos e encerrando o assunto com medo de que viessem mais perguntas. Se contasse que era o chinês, poderia ser que os irmãos, com medo de serem perseguidos procurassem acabar com ele.

A vida de Zentchen era importante demais para ser abatida por medo.

Jandira e Joaquim entreolharam-se com preocupação. Não trocaram uma palavra. Apenas saíram do quarto e deixaram Vanessa em paz. Encostaram a porta e no escuro Vanessa respirou aliviada e soltou seus músculos tensos sobre a cama com uma sensação maravilhosa de sono chegando.

*****

--- 22 horas e 59 minutos.

Cohen tirou as ataduras e se olhou no espelho. O rosto estava inchado. Havia derrame de sangue em várias partes. Os pontos pareciam que estavam firmes para cicatrizar. Não se reconheceu. Parecia um monstro.

Era hora de deixar as ataduras de lado e cuidar daquilo de frente. "Muito absurdo isso o que fiz. Estou perdendo as minhas faculdades mentais" -, pensou Cohen indignado com a capacidade de se cortar para se desfigurar.

Se ele mesmo não se reconhecia, quem dirá outra pessoa. O que seria de agora em diante?

"Ela está bem. Está acordada" -, disse Ulysses aparecendo pelas grades. "Está sedada, mas consegue conversar, se não se importar com a vagarosidade".

"Estou parecendo um monstro. Não me reconheço. Seria melhor para ela não ver isso" -, titubeou Cohen.

Ulysses sorriu achando graça. "Coloque as ataduras. Aparecer assim só pioraria a condição emocional da paciente" -, orientou.

Cohen foi até o armário e pegou as ataduras e começou a enrolar. Abriu a cela e pediu ajuda ao médico que entornou a cabeça de Cohen como se fosse uma múmia.

"Estrago escondido. Vamos!" -, disse o médico convidativamente para leva-lo até Inês.

Os dois caminharam pelo corredor em silêncio. No fundo, Cohen esperava que Ulysses comentasse algo sobre os prisioneiros. Mas, o médico passou o trajeto todo calado. "Chegamos" -, disse Ulysses.

"Devo contar a verdade?" -, perguntou Cohen ressabiado.

"Toda. Só evite os traumas da sua face" -, retribuiu Ulysses.

Antes de entrar Cohen segurou Ulysses pelo braço. O médico olhou com receio.

"Sabe que aqueles prisioneiros são importantes para mim. Gostaria que me revelasse onde estão para poder falar com eles" -, pediu Cohen com educação.

"Não foram encontrados" -, rebateu Ulysses mais que depressa. "Houve um engano nas informações, mas assim que os encontrar eu o levo até eles".

Cohen firmou o olhar em Ulysses com desconfiança. O psiquiatra não desviou o olhar e nem recuou. Isso deixou dúvidas em Cohen.

*****

Estava tudo preto. Adam não sabia se dormia ou se estava acordado. Ouviu alguma espécie de metal se arrastando e vozes adentrando o local.

Falavam muito rápido e discretamente. Era possível perceber a fala mas, não o que falavam. Isso deixava o jovem mais ressabiado.

Olhou para cima e percebeu uma luz. Mais um pouco foi aparecendo sombras na parede de alguém sendo carregado por duas pessoas.

"Está desacordado?" -, perguntou uma voz estridente mais ao fundo.

Ouviu o "sim" como resposta.

"Então joguem de cabeça mesmo. Se quebrar o pescoço, é um a menos para se preocupar em eliminar depois. Esse nem vai sentir a morte se aproximando enquanto estiver caindo" -, disse a voz estridente terminando com uma gargalhada.

Percebeu as pessoas na beira buraco. Pode perceber também que o buraco dava dois ou três de sua altura. No ímpeto se colocou na direção que imaginou que o corpo iria cair.

Queria amenizar a queda. Se aquele recém chegado sobrevivesse, poderiam se ajudar para sair dali.

Viu o movimento de jogo e esperou.

"BLAM!". Fez o impacto de um corpo batendo no corpo de Adam.

Adam sentiu fortes dores no ombro esquerdo. Estava machucado; possivelmente o prisioneiro também se machucara.

Percebeu os homens se afastando e tentou ouvir a respiração daquele recém-chegado. Estava vivo e parecia que esse estava mais consciente pelo fraco gemido que deu.

*****

Cohen olhava para ela com compaixão. Inês segurava a sua mão com firmeza. Tremia. Estava fraca.

Ele puxou o lençol e viu os pontos no braço. Inês baixou a cabeça envergonhada: "Pareço uma louca, mas não sou louca! É apenas desespero de uma mãe que perdeu o seu filho".

Cohen resolveu abrir logo o jogo.

"Eu menti para você. Você estava certa. Sou o Cohen. Tive medo que estragasse meus planos aqui dentro" -, disparou.

Inês sorriu aliviada e uma lágrima brotou dos olhos. "Eu sabia! Não precisa esconder-se de mim. O seu segredo estará guardado comigo".

Inês aproximou a mão de Cohen e acariciou a maçã de seu rosto. Ele sentiu um leve ardor. "Pode tirar as ataduras, não precisa se esconder mais; ver-te metraria alívio".

"Não nesse caso. Me ver só traria dor. Machuquei meu rosto na fuga, estou deformado. Nem eu me reconheço" -, disse Cohen chateado.

"Não me importo. O machucado no rosto não muda a sua essência" -, insistiu Inês com muito sono por causa dos sedativos. Cohen não estava disposto a expor mais um horror a Inês.

"Por favor" -, insistiu ela com meiguice na voz.

Cohen se sentiu encorajado. Aos poucos foi tirando as ataduras e foi revelando cada parte do rosto.

Nos olhos de Inês a expressão de horror natural. Estava hipnotizada naquele rosto mutilado e deformado. Quando estava sem nada Inês tocou a sua boca com o dedão.

"O lábio é o mesmo, o olhar é o mesmo e o formato do nariz, o mesmo. É você Cohen. Um pouco retalhado como uma colcha velha, mas é!" -, sorriu com paz e liberdade para brincar. "Isso só mostra que ainda tenho esperança. Amanhã quero partir daqui e rever o meu Daniel. Me ajuda?" -, perguntou ela com os olhos quase fechando.

"Sim" -, respondeu trivialmente. Sabia que no fundo não poderiam sair dali tão facilmente, precisariam de um dia ou mais para se organizarem, afinal, agora restava uma dúvida: qual era o lado que Ulysses jogava?

Quando terminou sua cisma,Inês já havia dormido segurando a sua mão como quem dorme segurando as mãos de um anjo da guarda.

Contratos VeladosWhere stories live. Discover now