Em Aquarela

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- Temos mesmo que voltar? - perguntou ela enquanto eu misturava as tintas.
- Isso depende de você... - respondi desviando o olhar da mistura para me focar em seus olhos. - Não me importaria em ficar aqui.
- Eu queria tanto, tanto que isso fosse real - disse com o esboço de um sorriso nos lábios.

Me aproximei dela, pois após aquela resposta tão triste eu não queria abrir mais espaço entre nós. Nem mesmo espaço para palavras. Pintei a ponta do seu nariz com minha mistura de vermelho e preto e desci o traço até sua boca a desenhando com a ponta do meu dedo indicador.

Ela era real, tão real quanto a borboleta que eu acabara de desenhar. Ela era mais perfeita e viva que qualquer desenho aquarelável que eu pudesse pintar. E ela estava ali, parada, olhando para mim, e parecia estar com tanto medo quanto eu que tudo aquilo fosse acabar tão rápido quanto a vida daquele pequeno ser que havíamos acabado de ver se perder por entre as árvores.

Eu selei seus lábios com um beijo. E perdi a noção de tempo e espaço. Eu apenas queria que o medo fosse embora. Eu queria tanto quanto ela que fosse real.

- Nós podemos ficar aqui - ela sorriu. - Eu acho que sobreviveríamos.
- E moraríamos em uma dessas cavernas e beberíamos das águas da cachoeira ou de algum lago próximo. - completei
- E comeríamos raízes e folhas e vez por outra você poderia caçar.

Rimos um para o outro, desejando em uníssono que aquela vida fosse possível.

Ela pediu que eu terminasse a pintura e ficou parada olhando para mim e é claro que entre um traço e outro eu a beijava. Beijá-la era tão necessário quanto beber água. Não podia deixar de fazê-lo.

Ao terminar, guardei o livro e peguei sua mão. A entrelacei na minha com força. Como se pudesse perdê-la a qualquer momento. Afinal tudo na minha vida, tudo que eu amava ia embora cedo demais. Ia embora sem que eu pudesse evitar. Sem que eu pudesse fazer nada. Mas não, eu desejava que com ela fosse diferente. Desejava que ela ficasse.

A levei para um banho de cachoeira e a água gelada só aumentava as sensações.  Infelizmente haviam tantas pessoas a nossa volta. Tantas testemunhas que o máximo que eu podia fazer era olhar para ela. Suas cores mudando de acordo com o toque da água. De acordo com a luz. Cabelos escuros e pele translucida, levemente arroxeada. Talvez fosse apenas o frio, mas não poderia perder a oportunidade de aquecê-la. A abracei enquanto ainda podia sentia sua pele gelada e arrepiada dentro da água.

Mergulhamos para chegar embaixo da cachoeira e pela primeira vez desde que havíamos chegado ali, ficamos sozinhos. O som da água caindo e o vapor em nossos rostos nos tornava partes daquele lugar. Como se fôssemos uma parte essencial da engrenagem e por alguns segundos considerei a ideia de ficarmos ali para sempre.

- Esse é o melhor dia da minha vida - disse ela com o rosto colado ao meu, sua respiração e pele úmida convidando para um beijo quente. - Eu te amo... - soprou no meu rosto.

Voltei no tempo naquele mesmo instante e a cachoeira se transformou em paredes brancas e as pedras em uma cama fria de hospital.

- Eu te amo - soprou Lucy pouco antes de seus olhos fecharem.

Ela morreu segundos depois de dizer a frase.

Quando abri os olhos Amanda estava se distanciando. Segurei seu braço, mas ela me afastou.

- Você hesitou - disse com os olhos tristes. - Me desculpe por ser tão... tão... Esquece, apaga tudo que eu disse.

- Amanda, me desculpe - Não sabia que palavras usar.

Ela tinha abrido seu coração. Do jeito mais puro e sincero e eu tinha sido incapaz de retribuir em palavras. Queria que ela pudesse ver além. Queria que ela pudesse sentir meu coração. Aí então não precisaria de explicações.

- Me deixa explicar - supliquei.
- Talvez amanhã, agora eu preciso ficar sozinha. - disse mergulhando por debaixo do véu de água.

O que eu deveria fazer? Dizer que a amava também? Ou isso soaria como retribuição tardia de um sentimento falso?
Deveria deixá-la com seu silêncio na esperança que tudo estivesse melhor pela manhã?

Mergulhei atrás dela ainda sem nenhuma resposta coerente.

A alcancei a tempo de pedir para pelo menos acompanhá-la. Seu orgulho não poderia vir a frente de sua segurança.

Não poderia deixá-la voltar sozinha por aquele labirinto escorregadio, ainda mais com a eminente escuridão que logo tomaria conta de tudo.

Ela não respondeu, mas não me proibiu de segui-la. Fui por todo caminho tentando respeitar o silêncio imposto por ela, mas com uma sensação agonizante de ter feito tudo errado. Queria poder me desculpar sem parecer que estava apenas me justificando para não constrange-la  ainda mais.

Foi precipitado,  uma frase que não deveria ser dita no calor do momento, mas uma frase que exemplificava bem os sentimentos que ela aguçava em mim. Não poderia julga-la, mas também sabia que deveria ter feito bem mais que fechar os olhos e devolver um silêncio ensurdecedor após algo tão íntimo.

Caminhei dando a ela o espaço que imaginei que ela precisava. Tinha aprendido com a vida que palavras impensadas poderiam colocar algo precioso a perder, mas e se meu silêncio tivesse o mesmo efeito?

O Colecionador de BorboletasWhere stories live. Discover now