O Colecionador

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Não havia muito tempo que eu tinha chegado de viagem e já estava de volta a estrada. Por pouco não perdia o ônibus para a Chapada, mas eu não quebraria minha promessa. Iria completar o livro da minha irmãzinha.

Lucy conseguira fazer apenas uma pintura antes de sua morte. E aquela primeira página era um como um lembrete para nunca desistir. Era como se ter todas aquelas borboletas comigo me trouxessem um pedaço de casa. Como se algum dia eu tivesse para quem mostrá-las. Tivesse um lar para elas, mas até que se tornasse real seriam apenas eu e as minhas lembranças.

Ao entrar no ônibus estava com tanta pressa para me sentar que mal reparei em quem me faria companhia naquela longa viagem, mas após quase atropelá-la com minha mochila, não consegui pensar em nada mais que um sorriso para me desculpar, porém o cansaço foi maior que qualquer senso de educação. Eu precisava dormir.

Pouco depois de escorar na janela, eu apaguei. Um sono que não durou muito, já que acordei com um puxão no cabelo e coberto por vômito pouco depois.

Poderia parecer estranho se dissesse em voz alta, mas aquele acontecimento me levou de volta ao passado. Me fez lembrar da Lucy. Ela vomitava sempre que estava em algum veículo em movimento. Ela costumava dizer que a estrada fedia a borracha queimada.

Mas quando ela adoeceu, aquilo não se limitou aos nossos passeios. Após as sessões de quimioterapia aquilo se tornou parte da nossa rotina. Eu já não me incomodava mais quando ela vomitava em mim. Desejei que fosse eu em seu lugar. Ela sofria. Eu sofria mais.

Ver aquela garota vomitando em mim. Me levou de volta para casa.
Instintivamente eu desejei cuidar dela, e pela primeira vez desde sua morte, falei sobre Lucy com alguém.

Ela ficou constrangida, mas nem de longe imaginava o quanto era libertador falar de Lucy em voz alta. Desejei por muito tempo ter alguém para compartilhar minha dor. Queria libertar as palavras tanto quanto uma borboleta lutava para sair de seu casulo, mas me contive e voltei a olhar pela janela.

Pouco tempo depois o ônibus parou. O motorista disse apenas que era um problema no motor e que só estaríamos de volta a estrada pela manhã, mas eu não estava com cabeca para ouvir os rumores de passageiros inconformados com o atraso. Pensei que talvez um pouco de música pudesse resolver os problemas em questão.

Consegui alguém disposto a apoiar minha idéia. E lá foram todos, incluindo ela, Amanda. Ela estava sentada bem ao meu lado, prestando atenção ao ruivo com seu violão. E eu estava com os olhos nela. Não conseguia desviar o olhar. Era quase um transe hipnótico. Como se parar para piscar, fosse fazê-la sair voando pela noite.

Quando a maioria voltou para ônibus por causa do frio, pedi o violão emprestado e toquei uma música que tinha um grande significado para mim. E enquanto cantava vi apenas os vultos restantes voltarem também para o ônibus, restando apenas ela e eu.

Ela sorriu para mim enquanto as notas ainda pairavam no ar. E não resiti. Tive de tentar conhecê-la.

Contei a velha história do fazendeiro e o pássaro e ela me olhou como se eu fosse um óvni, mas não com olhar de medo e sim de admiração. Me senti especial. Poderia ser egocentrismo mas isso me fez bem.

Senti que ela precisava desabafar e como dizia meu avô, nada melhor que um estranho para isso. Mas ela não se aproveitou do momento para ser o centro das atenções... Ela quis saber a minha história e isso era novo para mim. Foi a primeira vez que realmente falei delas... Mamãe e Lucy... Quando ia desabafar com alguém mudava a história toda. Era mais fácil mascarar a verdade do que encarar a realidade. Eles não precisavam entender e eu só precisava externar o que sentia para não enlouquecer de vez.
Resumi tudo para Amanda, é claro, mas foi deveras libertador...

Senti sua compaixão e isso era mais do que tivera em anos, mas quando ouvi sua história senti um desejo incontrolável de protegê-la. Por muito pouco não a tomei nos meus braços, mas não eram muitos os veriam essa cena com olhar favorável.

Prestei atenção em cada detalhe de seu rosto, queria guardá-los para mim. Queria lembrar daquela que me fez realmente abrir o coração. Que me desarmou sem nem ao menos ter tocado em mim.

Quando lhe mostrei minha coleção e vi seu olhar admirado, olhar de criança inocente que vai ao parque pela primeira vez, me senti em paz, senti como se ela também devesse fazer parte da minha coleção, mas não como a mera página do meu livro, não como uma conquista, mas como companhia.

Eu podia vê-la como uma lagarta que estava pronta para seu casulo e eu queria presenciar o nascer de suas asas...

Quando chegamos a pousada me doeu vê-la sair das minhas vistas. Ela estava a poucos metros do meu quarto, mas não conseguia parar de pensar nela.
Ri diversas vezes de mim mesmo...

Como poderia ser tão infantil? Tinha acabado de conhecê-la... Como um rosto... Um simples rosto poderia ocupar tanto espaço na minha mente?

Fiz a barba e pela primeira vez em anos fiz mais que passar os dedos pelo cabelo. Ao sair do quarto me deparei com ela. Estava de tirar o fôlego. Se pudesse teria a beijado ali mesmo na porta, mas me contive e me contentei por pegar sua mão. Tão delicada e macia...

O contentamento não resistiu a uma dança. Tive que beijá-la. Se pudesse não teria parado. Se pudesse teria a tornado parte de mim...

Desde a morte das duas mulheres da minha vida nunca imaginei me sentir em paz de novo e ela tinha feito isso com apenas um beijo.

O Colecionador de BorboletasWhere stories live. Discover now