Aos poucos...

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Querido diário,

O tempo passou mais rápido do que eu imaginei...hoje minha pequena Isabel completou cinco anos... ela é muito determinada e destemida, e sei que puxou a mim.

Juro que farei de tudo para que ela seja mais feliz do que eu fui. Novos tempos trazem novos paradigmas, e espero do fundo do meu coração, que em seu tempo, as mulheres possam ser livres para escolherem seus destinos...

Ontem percebi que Eulália estava triste... eu sei o porquê. Seu amado, Felício nunca mais deu notícias, assim como o meu Eunésio...

Rumores de que os movimentos abolicionistas estão em polvorosos me deixam feliz, mas nada podemos fazer, escondidas sob a proteção dos homens...

Antônio anda feliz com os progressos das lavouras. O ouro verde como dizem por aí, de fato está nos enriquecendo ... sei que papai ficaria muito orgulhoso de seu genro. Ele conseguiu o que muitos tentaram bravamente...

Curiosamente estamos nos entendendo melhor, já que ele está começando a tratar melhor nossos escravos, e aos poucos, pensando em alforriá-los. Só lamento que não seja por minha pressão, e sim, pela pressão crescente dos movimentos abolicionistas que se espalham por todos os cantos desse país.

Sigo tocando meu piano e passeando com Maria Inês. Sim, caro diário, ela está sendo minha querida companhia, assim como minha ajudante nos momentos em que posso ficar sozinha, falando com minha figueira e pensando em Eunésio...

Apesar de tudo, toda vez em que sinto o vento soprando, a chuva caindo e o brilho das estrelas, penso em sua liberdade... ainda que distante de mim, e por mais absurdo que isso pareça, sinto-me feliz por ele.

Sei que inconstantes são os dias e hoje cheguei em uma doce conclusão, caro diário.

Se tudo o que nos cerca são mistérios, por que não pensar que esses mesmos mistérios me trarão momentos felizes? Assim como me ensinou meu príncipe negro...

Um dia, mais feliz que ontem e quem sabe, menos do que amanhã...

25 de outubro de 1876, Estela de Albuquerque.

Chovia sem parar, e não havia o que fazer...Fernanda segurava sua vontade de ler todos os diários de uma só vez, mas sabia que deveria ir aos poucos... os passos de Estela delimitavam seu próprio caminhar. Pela primeira vez, sentiu-se desesperada com a possibilidade de não ter mais esses diários em mãos.

Nicolas e Frank jogavam xadrez e curtiam o momento presente, e Fernanda fechou o diário, se espreguiçou e olhou para o relógio. Lidar com plantio dependia mais da natureza do que dos homens, e isso era de alguma forma, desesperador...

Sentia-se levemente entediada e lutava contra isso, como se a antiga Fernanda quisesse se sobrepor. Não! Ela havia feito uma escolha e sabia que nem tudo seria lindo... Mesmo a mais sonhada profissão, tinha seus dias chatos.

Recostou-se, lembrando da noite anterior. Havia aceitado a ajuda de Patrick com os orçamentos. Ele lhe aconselhou sobre os materiais, adubos verdes, e maquinários necessários para a agro floresta. Logo depois, despediu-se amavelmente e partiu sem nada dizer.

Ele tinha algo de calmo e seguro, que prendia sua atenção. Uma força parecida com a de Eunésio...Como se tudo estivesse bem, como se mesmo a dúvida ou a demora fizessem parte da vida. Talvez o fato de trabalhar com a natureza, lhe desse a real noção do tempo das coisas... Mas ela sentia que ele estava a fim dela, mas tinha calma para esperar...

Com Romeu não havia essa paciência, era tudo para ontem, e para piorar, era pesado, carregado de traumas e inseguranças que só culminavam em afastá-los ainda mais.

Panda roncava e Fernanda apertou suas orelhas, o provocando:

– Vem, lobo imundo. Vamos ver o que Nicolas e Frank estão fazendo!

Ela surgiu correndo de Panda, assustando os dois:

– Vocês não cansam desses jogos, meninos?

Nicolas ironizou:

– Tem alguma sugestão melhor com essa chuva?

– Tem! Sabe o quê? Compras! Topam dar uma volta até o shopping?

A estrada de terra estava completamente enlameada e Fernanda não hesitou em ligar a tração. O carro imediatamente respondeu e saiu do meio do atoleiro, como se estivesse em uma rua pavimentada.

– Deixa o holandês ver isso, mana. Acho que ele te pede em casamento.

Os três caíram na risada e seguiram para a cidade.

O shopping estava cheio, mas Fernanda não se importou. Estava precisando fazer compras e decidiu entrar numa loja de casa e jardim.

Depois das compras, sentaram-se na praça de alimentação para almoçar. Fernanda observava o movimento das pessoas indo e vindo... O que elas realmente queriam? Quais eram seus sonhos? Quantas delas não estariam infelizes, querendo algo que já tinham e não davam valor? Como Estela veria tudo aquilo? Pensou em suas últimas palavras sobre o mistério que nos cerca e em como podemos cultivar bons pensamentos, ao invés dos ruins...

Olhou ao redor e sentiu-se extremamente grata. Era isso! Todo o dinheiro e o poder que os anos na Brain lhe trouxeram, não foram capazes de suprir o mínimo... a percepção de como a gratidão é capaz de mudar o rumo de nosso momento presente e trazer os mais importantes sentimentos humanos... a gratidão e a esperança!

Fernanda levantou seu copo de chopp e sorriu para os dois:

– Um brinde a vocês dois! Presentes que a vida me trouxe...

Os dois levantaram os copos, surpreendidos pelo seu gesto e sorriram:

– Um brinde, maninha! Você também é um presente!

– Um brinde, minha querida amiga.

...

Ser Humano AtemporalWhere stories live. Discover now