A moldura da janela

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Fernanda terminou de ler, abraçou o diário e recostou. Lágrimas escorriam de seus olhos. Como ela poderia estar tão sensível? O que diabos estava acontecendo com ela?

Panda roncava no tapete do chão e Sandra tocou o sino, indicando que o jantar estava pronto.

Bastou colocar os pés no chão, que o cachorro abriu os olhos e levantou as orelhas.

– Acorda, seu Lobo imundo! Vamos comer?

Os dois saíram caminhando pelo corredor. Os móveis, quadros e objetos antigos já tinham outro significado. Começavam a fazer parte de sua história, misturando- se com ela, e isso, de certa forma, a incomodava.

A mesa estava posta com muito bom gosto. Sandra, apesar de muito simples, nada tinha de idiota. Bastou que Fernanda lhe explicasse uma vez, que ela pegou rápido. Os talheres de prata, os pratos de louça fina, os copos de cristal, que antes estavam mofando dentro do armário, finalmente agora estavam sendo utilizados.

– A senhora quer beber vinho, dona Fernanda?

Fernanda achou graça. Sandra parecia se divertir aprendendo novos modos. Abriu a garrafa de vinho e a serviu com maestria:

– Assim está bom, dona Fernanda?

– Perfeito, Sandra! Desse jeito, vou ter que te levar comigo aos Estados Unidos.

Sandra deu uma risada escandalosa e Fernanda arregalou os olhos, quase mudando de ideia.

– Obrigada, Sandra. Por hoje é só. Pode ir...

Novamente estavam ela e Panda. Somente eles naquele presente momento, e se parasse para pensar, não estavam sozinhos... aquela mesma sala já tinha sido habitada por tantas pessoas, em tantas diferentes épocas. O que era o tempo, afinal? O que de fato nos separa das dimensões entre o passado e o futuro?

A sopa estava deliciosa e o vinho tinto ainda mais... Como ela amava estar sozinha, longe daquele agito... sentiu-se pela terceira vez muito feliz.

Um trovão gritou não muito distante e a chuva, pouco a pouco, começou a cair, se tornando cada vez mais forte. Os trovões agora relampejavam muito próximos e a luz apagou e voltou. Fernanda sentiu medo.

Houve um estrondo enorme e a luz se apagou por completo. Panda correu para debaixo da mesa e Fernanda se viu no escuro. Por um minuto a poesia de seus pensamentos sobre o tempo passado, viraram pesadelo. E se de fato, todos aqueles fantasmas estivessem ali, naquele momento? Pensou em Estela, e de repente, uma força a tomou por dentro...

– Não tenho medo do escuro!

Pensou em alguma música e lhe veio a cabeça a trilha sonora do filme Titanic. Não hesitou em cantá-la bem alto, assim, enquanto cantava, esquecia do medo do escuro. Panda se acalmou com seu canto e decidiu segui-la pela casa, enquanto acendia as velas.

– Está vendo, lobo imundo? Não precisa ter medo. Somos apenas eu e você.

Abriu as janelas do quarto, deixou a vela sobre o criado mudo e recostou-se na cama, enquanto assistia o show de luzes da natureza. E então, quando olhou para o diário, não resistiu...

Caro diário,

Antônio me acordou muito cedo, perguntando-me por que razão eu tinha pedido um escravo ao capataz. Expliquei a ele meu desejo de cavalgar e a prudência em não ir sozinha, já que Zé Peixeira iria acompanhá-lo na viagem.

Por fim concordou, me deu um beijo na testa e partiu. Eu respirei, aliada. Por um instante pensei que não iria mais cavalgar com o príncipe negro... sim, é isso que eu penso de Eunésio! Um príncipe negro com a voz mais linda de toda realeza...

Os sabiás ainda não começaram a cantar, portanto o dia não raiou. Preciso ficar atenta e alerta, pois não quero fazê-lo esperar.

Estou aqui sentada em minha penteadeira olhando pela janela. O céu ainda está negro. Não vejo a hora da aurora... quem diria que meus dias sempre tão iguais se tornariam tão esperançosos... isso porque mal nos falamos. Ele apenas me olha e sorri... Aí meu deus... me explique o que sinto por alguém que mal conheço?

Estela de Albuquerque, maio de 1870.

Fernanda fechou o diário. Não teve como não olhar para a penteadeira. Estaria ela no mesmo lugar? Levantou-se e se sentou em frente ao móvel antigo. O mesmo pedaço de céu recortado pela moldura da janela ... Agora, Fernanda via um céu carregado de nuvens e tempestades... E diferentemente de Estela, não se sentia esperançosa, apenas conformada em deixar para trás um sonho de sua mãe. Afinal, o sonho era de Raquel! E ela não tinha a menor obrigação de cuidar de assuntos de fazenda. Deus me livre! Era uma publicitária de sucesso, que nada tinha a ver com aquelas terras roxas de sol a pino...

Serviu-se de vinho e olhou para o diário, pensando...

–E agora? Leio mais ou durmo? Dá vontade de ler sem parar... talvez seja melhor eu ler amanhã, vou fumar e dormir!

Ela se aproximou da janela. A chuva já caia mais mansa e ela acendeu um cigarro e se sentou no parapeito. A figueira imperava florida e robusta, suportando sol e chuva, vento e tempo... quanto tempo...

Olhou para o celular e o relógio indicava 3:45h. Sentiu sono, deu o último gole de seu copo e pensou na proposta de Edson. Seria mesmo aquilo tudo que Alex tinha lhe dito por alto? Trinta milhões de dólares?

Apagou o cigarro e se deitou. Se fosse mesmo aquela grana toda, nunca mais precisaria trabalhar... O que iria fazer, afinal?

Pensou em Estela e se coçou para não ler... decidiu tentar dormir, caso o sono não viesse, iria ler.

O sono não veio, mas decidiu se conter e ligou a televisão. Sentiu-se como uma gorda fazendo regime e fugindo dos chocolates. Irritou-se com as propagandas brasileiras, procurou por canais e encontrou um que lhe agradava, sobre esportes radicais. Talvez ela pudesse fazer isso! Se ficasse milionária, poderia se arriscar em esportes diferentes... Era isso que a maioria de seus amigos milionários faziam... viajavam em busca de adrenalina, para fazer o tempo passar e a vida ter sentido.

Afinal, o que fazia a vida ter sentido, se não, a ideia proeminente de que podemos morrer a qualquer instante?

Tentou relutar, mas pensando bem, não se tratava de um chocolate comum, nesse caso particular, aquele diário era um chocolate belga! Decidiu ler.

Caro diário,

Que os deuses me perdoem...sinto que nunca estive tão feliz em toda a minha vida.

Cavalgamos por horas... O príncipe negro é um exímio cavaleiro. Me contou que foi escravo de um fazendeiro português, que além de lhe ensinar o dialeto, a ler e escrever, também lhe ensinou tudo sobre cavalos, agricultura e pecuária.

Eunésio tem um modo tão especial de ver a vida. Perguntei-lhe se era feliz e ele me respondeu sem sombra de dúvida que sim! Eu imediatamente perguntei:

– Como pode ser feliz?

Disse me em seguida... sou feliz por respirar, por enxergar, por saborear o cheiro da chuva na plantação, por poder conversar com os animais...

Deus meu! Que alma é essa? Minha intuição estava certa! Se trata de um príncipe... jamais sonhei que pudesse conhecer uma pessoa com essa evolução... sua escravidão é mais livre que minha própria liberdade! Ele é livre, porque é feliz!

Estela de Albuquerque, maio de 1870.

...

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