O tempo das coisas

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Querido diário, hoje estou paralisada. Não sinto forças para me levantar e sair da cama...Ontem chegou um telegrama de Antônio. Ele está voltando...

Mas justo agora?

Disse-me que está demasiado distante de mim e das cousas da fazenda. Notificou sua preocupação com os movimentos abolicionistas que começam a erradicar-se pelo país, e questionou meu jeito brando em lidar com os negros...

Já não sei o que pensar... Só de imaginar que minha antiga vida voltará a ser a mesma monotonia de sempre...

Preciso fugir! Mas como e para onde? É certo que Eunésio iria comigo, mas estaríamos colocando nossas vidas em risco, principalmente a dele...

Preciso pensar... Justo agora, caro diário, quando a vida parecia que iria sorrir-me de vez!

A princesa deve estar seguindo rumo ao Rio de Janeiro e não tenho como comunicar-me com ela... O que me resta, senão aceitar? Eu, novamente sem ter o que fazer, apenas sendo passiva aos acontecimentos que me cercam...

Às vezes me pergunto por quê?

Escuto batidas na porta. Deve ser Eulália, para me avisar que os cavalos estão prontos... mesmo sem esperança, preciso levantar e falar com ele... afinal, preciso aproveitar enquanto ainda posso encontrar meu príncipe negro...

Um dia de agosto de 1870,

Estela de Albuquerque.

A casa estava quieta. Passava das 8:45 h e Fernanda se encontrava deitada em sua cama com as janelas escancaradas. A figueira imperava solitária, enquanto um vento brando e constante acariciava suas folhagens.

Olhou para o celular e não havia nenhuma notícia de Romeu. O que de tão sério tinha acontecido para ele se afastar assim? Já fazia dois dias e ele, sequer, tinha respondido suas mensagens...

Pensou no que Estela sentia, isolada naquele espaço de tempo, tão submissa... Quantas vezes a vida era dura e nos tirava toda e qualquer esperança? Quantas vezes era preciso fechar os olhos e acreditar em alguma outra coisa para que a vida fizesse novamente sentido? Mas por que temos essa tendência em levar tudo "a ferro e a fogo"? Afinal, a vida não deve ser levada tão à sério, já que ao partirmos dessa terra, nem a vida levamos embora...

Esses sentimentos de incompreensão e impotência a deixavam desolada. Precisava levantar e começar a encarar sua nova rotina. Mas qual? O que ela iria fazer?

Caminhou lentamente até a cozinha e encontrou tia Lurdinha sentada na mesa da copa, olhando os passarinhos.

– Bom dia, minha querida. Levantou cedo hoje?

– Bom dia, Tia. Ué? Sandra não veio?

– Veio sim e disse que tinha coisas para resolver e depois voltava. Me parece que ela tem uma filhinha doente. Você sabia disso?

– Não, tia. Pensei que ela só tivesse um filho...

– Ela tem dois filhos...eu vi quando chegou uma ambulância trazendo a menina.

Fernanda a olhou assustada:

– Como assim? Eu nunca vi essa menina e ela nunca me falou nada, tia.

Tia Lurdinha baixou o tom de voz:

– Me parece que a menina tem uma doença genética que não cresce e não se locomove, por isso você nunca a viu...

– Mas por que ela nunca me disse isso?

– Não sei. Talvez não quisesse te aborrecer.

Fernanda estava confusa. Quantas coisas aconteciam debaixo de seu nariz, sem que ela desconfiasse. Será que sua postura afastava as pessoas? Por que Sandra nunca lhe havia contado sobre a criança? Saiu à procura de seu celular. Havia um e-mail de Romeu:

Oi Fernanda,

Estou de saco cheio de ser um bobo. Estou de saco cheio de ficar te bajulando, de tentar participar de sua vida aristocrata... não sou assim, não vim disso, aliás, muito pelo contrário, né? Minha família era escrava da sua... Nem adianta disfarçar, notei quando sua tia levou um susto com o fato de eu saber sobre as cartas de Estela. Por que eu deveria saber? Não passo de descendentes de escravos, não é? A verdade, é que estou me sentindo um lixo... você sempre faz o que bem quer... me chama para viajar com você, depois me manda embora... aí decide ficar mais um tempo em Sampa e quando chega, me manda uma mensagem para vir almoçar. Não quer saber como me sinto quando decide, no meio do passeio, entrar na senzala de sua fazenda. Acha que me sinto bem de estar lá? Cheguei no meu limite, não dá mais para mim...

Muitas vezes escutei uma frase que dizia: "O amor não é tudo"... Sempre me questionei se essa frase tinha fundamento, mas hoje, percebo que o amor não está sendo tudo... Eu te amo, mas não me sinto cuidado, respeitado... Não posso te mudar, Fernanda. Talvez seja melhor assim... Também preciso me encontrar. Não quero sentir que dependo de você...

Acho que você também precisa se dar um tempo. Tente pensar nas suas coisas, nas suas novas perspectivas. Sei que você tem muito a fazer. Não sou e nem quero ser um estepe.

Pare para pensar em tudo que já aconteceu entre a gente. Será que você teria aguentado metade do que eu aguentei?

Um beijo

Romeu.

...

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