33. Pedaços de Uma Outra Vida

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                                     ◆◆◆◆◆

Quando abri os olhos, uma luz cegante estava em volta de mim. Fechei-os de novo, desconfortável.
Minhas costas doíam. Até meu traseiro estava doendo.
Mas, em compensação, algo quente estava sobre minhas pernas.
Tentei de novo, e dessa vez, vi que a luz vinha de uma janela aberta. As persianas balançavam lentamente com a brisa.
O céu estava cinzento, como quando ficava depois de uma tempestade. Com as nuvens se revolvendo para um segundo round.
Minha cabeça, parecia pesar uma tonelada. Cada centímetro da minha pele estava dolorida.
Baixei os olhos tentando ver onde estava e tomei um tremendo susto ao ver Kai, sentado no chão, diante de mim, com a cabeça pousada em minhas pernas. Ele estava... dormindo?
Seus braços apertavam minha cintura contra seu peito de forma dolorosa. Como se pudesse me colar em sua pele desse jeito.
Ele estava sem camisa, descalço e com a mesma calça esfarrapada da noite passada.
Noite passada?, pensei subitamente. Há quantos dias estou aqui?
Tentei me mexer, mas de uma forma bem chocante percebi que aquele bastardo me amarrou em uma cadeira. As mãos inúteis em minhas costas.
Joguei a cabeça para trás, contendo a vontade de chorar com aquela situação.
Damon, disse para mim mesma, recordando. Rayna o levou.
Funguei, me obrigando a conter o choro. Eu não era mais uma criança.
Uma adulta resolvia situações difíceis, e não chorava como um bebê quando se complicavam.
Comecei pelo que me pareceu mais direto.
- Kai- chamei, sacudindo os quadris- Acorda.
- Shhh- ele disse, já acordado, seu braços musculosos se estreitaram em meus quadris- Eu tô pensando.
- Pensa em outro lugar que não seja em cima da minha barriga- resmunguei, revoltada pelo que tinha acontecido antes de eu apagar.
Ela não se afastou e nem disse nada. Apenas continuou ali. Até quando eu disse que estava desconfortável.
Suspirei, tentando não explodir de ódio.
Me concentrei em qualquer outra coisa que não fosse o calor de seu corpo sobre o meu. Olhei em volta do ambiente em que estávamos.
Com certeza não era a cobertura.
As paredes eram pintadas de azul em alguns pontos e o papel de parede de foguetes espaciais estavam desbotando e claramente se soltando. Vi algumas estantes e prateleiras repletas de livros empoeirados em todos os lugares, com uma escrivaninha marrom avermelhada e antiga em um canto. A cama de solteiro estava bem ali, com lençóis brancos e limpos, porém, Kai cismava em me manter em um cadeira dura e desconfortável.
Mas, só de pensar no que ele poderia fazer comigo sobre uma cama, me deixou nauseada e agitada. Descartei o conforto no mesmo instante.
- Onde estamos?- perguntei, já sabendo que ele iria me ignorar.
- Na minha casa- disse simplemente- No meu quarto.
E acomodou a cabeça contra minhas pernas mais um pouco, como um gato, pedindo um afago atrás da orelha.
- Por que me trouxe aqui?- perguntei, engolindo em seco ao constatar que aquela provavelmente era a casa em que ele matou seus quatro irmãos mais novos à dezoito anos atrás.
Passou- se muito tempo antes que ele respondesse.
- Eu não sabia pra onde ir- disse finalmente.
Na mesma hora pensei em Soledad.
- Onde está Sol? Você a deixou na cobertura?
Entrei em pânico ao imaginar aqueles homens invadindo a casa, não encontrando a mim e Kai e torturando a pequena e agitada Sol.
- A mandei pra um hotel- murmurou, com a voz arrastada, como se estivesse muito cansado.
As batidas de meu coração desaceleraram um pouco.
- Kai?- chamei.
- Humm..?
- Pode me soltar?
- Deveria me agradecer por não quebrar suas pernas- disse, com a voz arrastada, porém, com uma fagulha de ódio- Então, fique quieta e me deixe em paz.
- Mas, tá doendo- choraminguei, como uma menininha.
- Ótimo- deu de ombros.
Eu nunca tinha visto Kai daquele jeito.
- Você... Por acaso tá me dando um gelo?- franzi o cenho.
- Nossa, como você é observadora- retorquiu.
Ele estava de mau humor. Que ótimo.
Eu ainda podia sentir os machucados por todos os pontos de meu corpo, desde os talhos em minhas costas, ao provável hematoma roxo em meu pescoço.
Kai também não parecia bem, seus machucados que foram piores que os meus estavam em processo de cura. Pude ver os arranhões quase cicatrizados descendo por suas costas pálidas, juntamente com hematomas horrivelmente roxos. Seu ombro ainda tinha a marca da mordida de lobo, que ele provavelmente curou sozinho, sugando a magia do veneno.
Pensei em Damon.
Ele também foi mordido, mas não tinha uma forma mais urgente de se curar. Se Rayna não o tivesse matado, ele morreria pelo veneno de lobisomem.
Fechei os olhos, deixando uma lágrima silenciosa escapar.
- Você a deixou levá-lo- sussurrei.
- Me pediu para não matá-lo. Não matei.
- Mas não fez nada para salvá-lo!
Ela ajeitou a cabeça de novo.
- Por que eu deveria? Damon, mais do do que qualquer um, tentou me matar um monte de vezes. Não devo nada à ele. Tem sorte de não ter arrancado a cabeça dele.
Solucei.
- Por que não me mata de uma vez?!
- Porque eu gosto de você- disse- Sabe, quando você sente afeição por algo, mesmo que não se importe muito com isso? Acho que explica bem o que eu sinto. Ou o que eu não sinto... sei lá.
- Se gostasse tanto de mim, não tornaria minha vida um pesadelo.
Ele suspirou pesadamente.
- Pessoas que amam, não destroem a vida de ninguém. Eu não te amo, Bonnie. Só gosto da sua presença, é diferente.
Fechei os olhos com força.
- Você gosta de brincar comigo?- perguntei amargamente.
- Sim, eu gosto.
- Gosta de me fazer sofrer?
- Sim.
- Como se sente com isso?
- Eu gosto da sensação de dominar você. É assim como me sinto. E sei que é assim que se sente em relação à mim.
- Eu não sou como você- empinei o queixo.
- Não?- ele riu- Dá pra ver o brilho nos seus olhos quando você sente que tem poder sobre mim. Isso te excita. Não finja que não gosta de me humilhar.
- Faço isso porque você me machuca- rebati.
- Essa é sua desculpa pra tudo?- me provocou- Você teve namorados, não? Mas nenhum deles a fez se sentir tão poderosa, é isso? Talvez, tenha achado que encontrou algo especial com Jeremy, mas percebeu que ele também não era diferente. Você passou a vida toda procurando por alguém como eu. Que precisava ser punido por você. Alguém que não se importasse de ferir. No fundo, você é tão sádica quanto eu.
- Vá pro inferno- rosnei.
- Eu gosto quando geme meu nome...- suspirou, esfregando o rosto sobre minhas coxas- Diz meu nome.
- O quê?- fiquei assustada com a guinada daquela conversa.
- Quero transar com você outra vez.
Minhas bochechas ficaram quentes.
- Mas sem forçá-la- continuou- Eu quero aquilo de novo. Eu quero sentir aquilo de novo.
Fiquei em um silêncio resignado. Não diria mais nada.
- Foi incrível- sussurrou, apertando os braços em volta de minha cintura- Eu preciso sentir isso outra vez.
Engoli em seco, lembrando da coisa mais vergonhosa que eu já tinha feito. O maior erro de todos.
- Eu prefiro ser esquartejada- falei com ódio- Você por acaso bebeu, Kai?
Ele estava tão esquisito. Mais esquisito que o normal.
- Não- disse- Eu tô na beira das ondas. Elas estão querendo sair. Não posso deixar. Isso machuca.
Acho que ele finalmente tinha enlouquecido.
- Mas até que é uma sensação boa. Quase como estar anestesiado- falou, calmamente- Você sente tudo, mas a dor não dói tanto. Entende? Acho que eu estou no limite entre os dois lados.
Mas que papo era aquele? Acho que ele devia ter atingido um nível de estresse tão grande na noite passada, que ainda estava se recuperando dos acontecimentos.
- Apollon por acaso bateu na sua cabeça?
- Sim.
- Está explicado.
Vampiros tinham uma concussão?
Kai não parecia ligar exatamente para minha opinião sobre sua sanidade. Tudo o que ele fez foi ficar ali, sentado diante de mim, com seus braços em torno de minha cintura.
Depois do que se pareceram longas horas de um silêncio perturbador, resolvi abrir minha boca.
- Era ele, não era?
- Quem?- ele falou, sua voz estava rouca pela falar de uso.
- Aquelas ligações que recebia- prossegui- Era Apollon, não?
- Sim- disse, aparentemente muito cansado- Eu fiz alguns lanchinhos no território dele à alguns meses atrás. Ele não gostou nada disso.
Tentei não pensar nos tais "lanchinhos", que provavelmente eram pessoas.
- O mendigo...- falei comigo mesma, me dando conta. Não sei porque, mas a imagem do homem na TV de Rosalie, quando escapei de Kai, foi muito vívida. Ele balbuciava algo sobre um... vampiro, enquanto era levado pela polícia- Você... Ele foi acusado dos assassinatos...
Um leve tremor se fez nas costas de Kai, juntamente com uma risada.
- O presidente do Canadá- murmurou, lembrando- Até que era um cara gente fina.
Aquilo não fez o mínimo sentido.
- Foi isso que andou fazendo todos esses meses, enquanto eu estava presa naquela cela? Matando pessoas, culpando outras e aborrecendo lobisomens?- minha voz foi ficando cada vez mais furiosa com o passar de cada palavra.
Ele deu de ombros.
- Tem modo mais divertido de passar o tempo?- riu- E uma que eu não tinha mais a sua turma para aborrecer. Minha existência perdeu o propósito. Tive que me ocupar com alguma coisa.
Fechei os olhos com força.
- Você é doente- rosnei.
Ele não disse nada quanto à isso. Mas notei o modo nervoso como seus ombros se moveram.
- Eles tentaram nos matar por sua causa- acusei.
- Não da primeira vez- disse- Apollon pode ser muitas coisas, menos mentiroso. Ele não mandou aquele zelador sinistro para me matar. Só aquele cara que invadiu nosso apartamento.
Franzi o cenho.
- Com quem mais você se envolveu? Pelo amor de Deus, me diga que você não irritou mais pessoas, Kai.
- Eu não irritei mais "pessoas"- assinalou, erguendo a cabeça de meu colo.
Ver seu rosto daquele modo, foi um tanto impactante. Ele não estava machucado, a pele pálida perfeita como antes. Mas, seus olhos azuis, não tinham mais aquele brilho empolgado de antes. Estavam mais pra um tom de cinza chumbo, um tanto opaco.
Haviam algumas olheiras sob eles. Não do tipo que indicavam, cansaço físico. Estava mais pra um espécie de fadiga interior. Algo mais profundo.
Por alguns segundos, ele ficou me encarando, como se quisesse absorver tudo em meu rosto.
- Você tá péssima- disse, com um meio sorriso fraco.
- Acredite- murmurei, com uma sobrancelha arqueada- Você está bem pior que eu. O que foi, Kai? Os quarenta anos finalmente bateram à porta?
Seu sorriso se alargou, tornando sua expressão um pouco menos abatida.
- Sabe o que dizem sobre homens mais velhos, não é?
Revirei os olhos.
Com a velocidade sobrenatural, ele ficou de pé, diante de mim.
- Eu preciso de um banho- murmurou, espreguiçando o corpo, manchado de sangue seco e alguns hematomas quase desaparecidos.
Ver seus ombros largos, aquele abdômen e os braços definidos, me fez ruborizar e encarar o piso de madeira gasta. Eu já o tinha visto nu mais vezes do que desejava, mas nunca tinha parado para reparar nos detalhes.
E do ponto de vista clínico de uma garota com um par de olhos perfeitos, tive que admitir que ele era tremendamente gostoso.
Apertei as coxas uma contra outra, ao sentir um calor esquisito descendo por minha barriga.
- Nós nunca tomamos banho juntos...- ouvi Kai dizer, subitamente.
Levantei os olhos para ele de novo.
Ele coçava o alto da cabeça, olhando diretamente para mim.
-... Bom, eu nunca fiz isso com outra pessoa- continuou- Uma primeira vez até que não seria mal.
Horrorizada, o vi dar a volta na cadeira onde eu estava sentada e começar a desamarrar as cordas em meus pulsos.
Fiquei rígida sobre o assento de madeira, esperando que ele o fizesse logo.
Quando me livrei das cordas, levantei da cadeira como um raio e tentei correr para a porta, mas caí de joelhos ao sentir meu tornozelo estalar dolorosamente.
Kai veio até mim, se abaixando ao meu lado. Tentei me afastar dele, usando as mãos para me arrastar pelo piso.
- Ei, calma- disse, pegando meu pé com cuidado.
Pensei em chutá-lo, mesmo que isso fosse me causar uma dor horrível.
- Eu não faria isso se fosse você- ele disse, adivinhando meus pensamentos- Só vai piorar a dor. E provavelmente, vai me irritar mais.
Contive a vontade de fazê-lo. Seria idiotice mesmo.
Fiquei imóvel, enquanto ele examinava meu tornozelo.
- Você torceu- suspirou- Mas, pra sua sorte vai ficar bom logo.
O Kai que eu conhecia não teria sido tão... amável. Ele teria quebrado meu pé, sem pensar duas vezes, só pelo fato de eu ter escapado dele com a
ajuda de Damon.
Ainda o observando cautelosamente, ele se inclinou sobre mim. Me encolhi como um animal assustado.
Isso o fez parar.
Uma expressão indecifrável se formou em seu rosto. Ele parecia incomodado com algo.
Kai pareceu ignorar seja lá o que passou por sua cabeça e estendeu os braços em volta de mim e me pegou no colo. Segurei em seus ombros, ainda olhando de forma desconfiada para ele.
Ele me levou para um pequeno banheiro no mesmo quarto. Tudo era branco e limpo, com poucas coisas, como shampoos e creme de barbear.
- Em comparação com o restante da casa- ele começou- Meu quarto é o mais detonado.
Kai me sentou na borda da banheira.
- Mas, acho que tô impressionado de ele ter cuidado tão bem daqui- disse olhando para as paredes à sua volta- Pensei que fosse queimar todas as minhas coisas.
- Ele era seu pai- murmurei- Mesmo que você tenha feito algo tão irreparável, ele não conseguiu se livrar de uma parte de você.
Um sorrisinho irônico se formou em seus lábios.
- Isso deveria ser algo bom?
Fechei os olhos, subitamente exausta.
- Ele te amava. Mesmo com todo o ódio. Ele detestava o que você fez com ele e sua família.
Abri os olhos e vi o vampiro me encarando com a cabeça inclinada. Um ar interrogativo em seus olhos.
- Você sempre pensa o melhor das pessoas, não é, mesmo? Mas, vamos esclarecer uma coisa. Eu odeio meu paizinho morto. E ele me odiava. Não existe um meio termo pra isso.
- Ele te amava- fui firme- Nenhum pai consegue sentir um ódio real do próprio filho. Vai contra qualquer instinto.
Ele respirou fundo.
- Eu não vou discutir sobre isso com você, Bonnie. Então...- esfregou as mãos em frente ao corpo com um sorriso animado- Vamos ao banho!
Segurei as bordas da banheira com mais força.
- Eu posso tomar um banho sozinha. Obrigada.
Ele cruzou os braços em desaprovação.
- Eu não disse que você iria fazer isso. Disse que EU o faria. E como sou o dono da casa e se os bons modos ainda valem de alguma coisa, sim, você vai tomar banho comigo.
Ele se aproximou, pronto para tirar minha roupa. Mas, o afastei, lembrando do que aconteceu na noite anterior.
- Tá- deu de ombros- Então, eu tiro primero.
Para minha surpresa ou vergonha, Kai desabotoou a calça e se livrou dela. O mesmo ocorreu com a boxer preta que ele usava.
Desviei o olhar, estranhamente envergonhada.
- Agora...- disse, ficando de joelhos na minha frente-... É sua vez.
Seus dedos se prenderam no tecido manchado de sangue e rasgado de meu vestido branco. E foram subindo pelas curvas de meu corpo.
Eu não relutei.
Não havia mais nada do que me proteger. Estava cansada de lutar.
Ergui os braços, deixando-o tirá - lo de mim.
Encolhi - me um pouco, com os braços em volta de meu torso nu.
- Merda- ele disse, largando o vestido sujo no chão.
Olhei para baixo e ruborizei mais uma vez.
Ele teve uma ereção instantânea, só de olhar para o meu corpo.
Kai se inclinou, encostando o rosto na curva de meu pescoço e inspirou profundamente. Seus dedos delineavam minha cintura com um cuidado estranho.
Ouvi seu gemido contra minha pele, fazendo cada centímetro de mim se arrepiar de medo... Não. De forma alguma eu poderia ficar excitada com aquilo. Não, mesmo!
Fechei os olhos e repassei todas as imagens do que ele já havia feito comigo. A cena da noite passada mais recente em minha cabeça.
- Não tem idéia...- ele sussurrou, arrancando um brinco de esmeraldas de minha orelha com os dentes e me fazendo estremecer- ... do que eu quero fazer com você nesse instante...
Sua voz estava ofegante e pesada, com um leve grunhido de fundo.
Espalmei as mãos sobre seu peito para afastá-lo. E tentei cruzar as pernas, consciente de que não estava usando nenhuma peça de roupa, mas Kai estava entre elas, ajoelhado diante de mim.
Ele me ignorou totalmente e tirou o outro brinco da mesma forma.
Mordi o lábio, ao sentir a mordida em meu lóbulo.
Foi totalmente revoltante, constatar que mesmo que cada célula do meu corpo o o odiasse e sentisse nojo da pessoa horrível que ele era, eu ainda fosse capaz de corresponder de forma sensorial ao seus toques.
Forcei os músculos de meu braços à agirem e o afastei.
- E se eu disser que não?- murmurei, ríspida.
Ele sorriu, olhando para minha boca como um animal selvagem.
- Eu posso fazê-la mudar de idéia sobre isso- disse com ar sacana e odioso.
Meu maxilar trincou.
- Então, você vai me estuprar de novo? É isso?- alfinetei.
O sorriso em seu rosto morreu como se eu tivesse dado um soco certeiro bem no seu nariz.
Kai baixou os olhos, como se estivesse buscando algo no fundo de sua mente para me dizer. Mas, ele simplesmente... abriu a boca e a fechou em seguida.
Ele se pôs de pé e saiu do banheiro, fechando a porta com uma força um tanto exagerada.
Continuei sentada na beirada da louça sem entender o que eu havia feito para perturbá - lo daquele modo. Mas... que merda, estava acontecendo com Kai dessa vez?
Bipolaridade era sua melhor companheira e isso eu compreendia como ninguém. No entanto, ele estava extrapolando todos os limites.
Ainda confusa, entrei na banheira e liguei o registro e tomei uma ducha. Os resquícios de sangue e sujeira, saindo de mim, assim como as lembranças da noite passada.
Ao fim de tudo, me enrolei em uma toalha, vendo cada centímetro da minha pele esfolada e machucada. O sabonete cítrico só havia contribuído para fazer minha pele arder muito mais. Os cortes em meu rosto e braço, juntamente com os arranhões de vidro em minhas costas queimavam como fogo vivo e pulsante.
Abri a porta do banheiro, mancando, e totalmente ciente de que não tinha nada para vestir, além do vestido em trapos que estava no banheiro. Meu primeiro pensamento foi o de procurar algumas roupas velhas de Kai no closet de seu quarto, torcendo para alguma delas servir direito no meu corpo escuálido e pequeno.
E me deparei com algo sobre a cama de solteiro.
Aproximei -me, com passos trôpegos.
Era um vestido, um modelo de provavelmente uns vinte anos atrás. Ele era vermelho vivo, com mangas levemente bufantes e um decote com formato de coração.
Vesti um lingerie limpa e deslizei o vestido sobre meu corpo. Ele tinha um caimento perfeito, grudando nos pontos corretos de minhas curvas.
Havia um espelho grande contra a porta do closet, fui até ele.
Apesar dos machucados, eu quase podia dizer que estava bonita. A roupa me passava uma cadência interessante. Ele tinha... uma personalidade própria, por assim dizer.
Achei um pente no banheiro, e dei um jeito no meu cabelo desarrumado. E voltei para o quarto.
Caminhei por toda sua extensão, vendo a variedade de livros espalhados por todos os pontos. Desde romances de ficção científica, escolares à grimórios muito velhos, que provavelmente pertenceu à geração mais antiga de Parkers. Todos eles estavam com uma camada considerável de pó.
Joshua Parker, não devia visitar o quarto de seu filho com frequência. Talvez, fossem lembranças dolorosas demais para ele.
Desviei minha atenção para a escrivaninha no canto do quarto. Sobre ela havia uma quantidade exorbitante de CD's do fim da década de noventa e anteriores à eles. Pelo jeito, Kai era um fã de rock clássico. Apesar de naquela época ser chamado apenas de rock'n roll.
Mesmo que eu soubesse coisas sobre Kai e conhecesse um pouco sobre seu passado, ainda era estarrecedor pensar nele como um cara daquela idade. Ele não aparentava fisicamente, mas às vezes, ele parecia realmente mais velho. Tanto em chatice, como em sabedoria.
Uma alma velha, presa em um corpo jovem.
Andei por todos os cantos, procurando coisas insignificantes no quarto de Kai. Acho que eu tentava entender como ele havia sido antes de matar sua família.
Talvez, eu realmente estivesse procurando um pedaço bom dele dentro daqueles objetos empoeirados. Mas, eu sabia que não havia salvação para Kai.
Depois de achar uma caixa com miniaturas de bonecos de "Star Wars" embaixo de sua cama, desisti de minhas buscas infrutíferas. Não havia nada de muito impressionante nas coisas de um ex adolescente promovido à sádico de plantão.
Então, quando empurrei a caixa de papelão de volta para o seu lugar, uma folha amarrada se sobressaiu no meio daquela bagunça. Puxei o papel amassado e amarelado nas bordas.
Os desdobrei até a perfeição, e quando virei o lado oposto, meu choque foi evidente.
Aquela era eu.
Era um desenho meu.
Um desenho de mim mesma, caminhando por uma rua deserta, com um suéter branco e uma saia magenta de pregas soltas. Meus cabelos curtos e escuros balançavam no vento, e o sol de meio-dia brilhava sobre minha pele. Minha expressão parecia muito... austera e preocupada, um pouco parecida com a de vovó.
Olhei a data do desenho e meu queixo quase caiu: 8 de maio de 1994.
Como aquilo era possível?
Kai tinha um desenho meu, antes de me conhecer. Antes mesmo de termos nos cruzado. Antes de ser mandado para a prisão dimensional.
Fiz as contas e nessa época, eu devia não ter mais que dois anos de idade.
Encarei o desenho por mais algum tempo, notando o cenário ao fundo. Certamente, era a Mistyc Falls do Mundo Prisão de 1994.
Ainda perturbada, dobrei a folha e a guardei na parte da frente de meu decote.
Levantei e fui até a porta aberta, cansada de ficar parada ali. Saí em um corredor longo de paredes amarelas e com portas indicando muitos quartos. Tentei abrir a porta de alguns deles, mas todas estavam trancadas. Haviam marcas de onde estavam os antigos porta retratos, mas Kai ou seu pai deve tê-los tirado de lá.
Achei isso bom. Não tinha certeza, se estava preparada para ver algum resquício do crime horrível que Kai praticou naquela casa.
Fui mais adiante, descendo as escadas que davam para os outros pontos da casa.
Aquele lugar era enorme, com uma clara influência arquitetônica de fazenda, mas ainda assim com muito charme e elegância campestre. Passei pela enorme sala de jantar com suas muitas cadeiras, para, o que antes foi uma enorme família, seguindo para a sala de estar com móveis antigos e confortáveis.
Tudo naquela casa era convidativo, e ao mesmo tempo assustador. Era como se o ar acolhedor não conseguisse esconder o frio de morte que rondava cada cômodo.
Não foi à toa que Joshua, tentou matar Jo à qualquer custo quando soube que seu filho havia escapado de sua prisão para se fundir à ela e se tornar líder da Convenção Gemini. Eu também ficaria louca se tivesse que viver em um lugar com um pesadelo tão vívido todos os dias.
A porta principal estava mais à frente. Tentei abri-la, mas a madeira não cedia.
Bufei. Magia.
Kai a trancou com um feitiço de isolamento e não tinha dúvidas de que o tivesse feito com o restante das portas e janelas da casa.
Ótimo, pensei, com raiva. Estou presa em uma tumba.
Chamei por Kai algumas vezes, mas não consegui encontrá-lo. Então, para matar o tempo, me sentei perto de uma enorme janela de vidro, vendo a chuva cair sobre o campo infinito do Oregon.
Minha respiração tão próxima do vidro, se condensou e vi dois nomes escritos nele.  "JO e KAI"
Mesmo que a letra estivesse um pouco trêmula, dava para notar que ela pertencia ao segundo gêmeo.
Não ousei tocar naquela relíquia. Aquelas letras deviam estar ali à muito tempo e eu não queria apagar as boas lembranças que ainda conseguiam sobreviver naquela escuridão.
Tentei imaginar Kai e sua irmã, tão unidos como gêmeos deveriam ser. Um laço tão estreito como esse parecia inquebrável. Mas, ele havia se partido.
Isso me enfurecia e frustrava.
Eu senti inveja de Kai.
Ele foi tão sortudo.
Teve uma família completa, com muitos irmãos. Eu sempre quis irmãos, barulhentos, chatos e fofos.
Nunca teria aquilo e Kai jogou sua chance de ser feliz no lixo.
Não sei quanto tempo se passou, mas em algum momento eu adormeci e sonhei com crianças correndo por aquela casa.

LAÇOS MORTAIS | Bonkai |Onde as histórias ganham vida. Descobre agora