61. Descoberta

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Dirigindo pela cidade, meus pensamentos estavam vacilantes para tudo o que acabou de acontecer naquele dia. Encontrei Elize morta na minha varanda, alguém ameaçou à mim e Eve e Kai deixou vazar uma informação que poderia ou não me levar aos responsáveis por aqueles dias infernais.
Atravessei o centro da cidade, vendo ao longe na calçada vários curiosos parados em frente ao meu escritório, tentando enxergar por detrás dos vidros escuros da entrada, esperando saber algo mais sobre as fofocas sobre a morte da secretária do único negócio rico e próspero desse local.
Sacudi a cabeça, subindo as janelas do carro.
Levei alguns quilômetros para chegar até onde a lembrança de Kai estava me guiando. Era apenas uma imagem, mas como eu conhecia toda aquela cidade com a palma de minha mão - justamente por causa das excursões da escola para os pontos históricos de Mistyc Falls - não foi um grande problema encontrar a antiga fábrica de tecidos abandonada. Pelo que sabia, ninguém mais ia até lá, por causa da construção caindo aos pedaços que tinha risco de desabar sobre a cabeça de seus visitantes. E justamente pelo fato de ela ficar muito longe do centro - na fronteira com a outra cidade - e estar em uma área com muita vegetação e pouca internet.
Era o lugar perfeito para esconder algo importante. Ninguém se interessaria em vasculhar uma fábrica centenária e sem graça.
Desci do carro, pisando no chão de terra com os sapatos nada corretos para a situação. Agradeci ao fato de ser meia vampira e ter um bom equilíbrio por isso.
Ergui meus olhos para a fábrica à poucos metros à frente. Ela era exatamente como a memória de Kai. Os tijolos apodrecendo e se soltando das paredes, o nome na fachada quase que totalmente ilegível e as portas de metal da entrada estavam dependuradas nas molduras enferrujadas. Aquilo era um acidente esperando para acontecer. Caminhei na direção da entrada, afastando o mato alto no caminho que chegava à altura da cintura e se agarrava as pontas de meu cabelo solto. Quando finalmente cheguei à entrada, quase dei pulinhos alegres ao ver que a abertura entre as portas era suficientemente grande para mim, no entanto, quando tentei atravessar algo me impediu. Foi como ser bloqueada por uma força invisível.
Por um segundo fiquei confusa com aquilo. Era magia? Kai havia protegido o local? Parecia plausível se ele estava tentando proteger alguma coisa, mas eu não conseguia sentir a familiar magia que um feitiço de proteção conseguia criar.
Então, me dei conta.
Não era magia. Um humano vivia ali.
E eu como meia-vampira também tinha minhas limitações. Precisaria ser convidada a entrar, porém, apesar de minha parte vampira ser dominante em meu organismo, a parte humana ainda estava lutando para ficar. Então, não foi uma surpresa eu conseguir forçar minha entrada naquele local sem precisar de permissão. A parte chata disso é que era com ser espremida em todas as direções pela pressão invisível que a "casa" com um morador fazia, tentando me expulsar. E a pior era que teria poucos minutos antes de ser arremessada para fora. Já havia acontecido e não foi confortável.
Então, vasculhei todo o andar térreo, vendo antigo maquinário enferrujado e com décadas de poeira, adentrei salas vazias e com objetos que há muito deixaram ser tendência em fábricas e estavam apenas apodrecendo nos cantos. Após minha rápida inspeção, fui para o andar de cima. As escadas estavam surpreendemente bem conservadas, dado que eu não prendi o pé em nenhum buraco. Quando alcancei o segundo e último andar, fiz todo o trajeto de busca que o andar inferior. Eu não sabia exatamente o que estava procurando, mas não estaria com uma placa de néon indicando logo acima. E quem seria o tal humano que vivia ali? Podia ser um velho zelador hipnotizado. Deus era testemunha de que vampiros adoravam hipnotizar humanos para viver junto com eles, afinal, não havia medida de segurança melhor contra a entrada de outro vampiro indesejado do que a falta de convite do "dono da casa." Kai com certeza havia pensado em tudo, mas não no fato de eu ser biologicamente capaz de quebrar todas as regras do mundo sobrenatural.
Eu entrei em salas, que antigamente foram escritórios dos superiores, mas não passavam de espaços vazios na história. E estava quase desistindo daquela busca idiota quando ouvi o som de... vozes.
As segui com minha velocidade de vampira e não demorou muito para que eu encontrasse a um espaço adjacente que ficava no fundo da sala. Pelas portas enormes - que outrora fora pintada de verde e agora era de um menta descascado - devia servir como galpão ou coisa assim antigamente. As vozes vinham de lá de dentro, então, limpei uma das janelas na porta de metal com o punho, vendo claramente, através dele o que se parecia uma sala aconchegante e bem decorada, muito diferente do restante da fábrica caindo aos pedaços. Mais ao longe, avistei o que se parecia uma bancada de cozinha armários limpos e reluzentes.
Eu tinha quase me esquecido das vozes, quando elas voltaram a falar de novo. Uma delas era mais grave, porém feminina e a outra aguda e doce e falavam rapidamente em uma língua que de início não reconheci, até que me dei conta: aquilo era espanhol.
Um alarme começou a ser em minha cabeça e isso fez a sensação de pressão ficar pior. Eu não tinha muito tempo.
Para meu pasmo, uma mulher de cerca de uns cinquenta anos, bem vestida e usando um daqueles coques super profissionais apareceu em meu campo de visão na cozinha. E não havia como não reconhecer aquele sorriso austero e gentil. Era Soledad, minha ex-governanta.
Perguntas começaram a saltar em minha cabeça, como milho em uma panela de pressão, mas não tive tempo de proferir nenhuma delas, porque eu a vi. A segunda voz que falava anteriormente.
Sol a pegou nos braços e colocou a menina de vestido branco sobre a bancada.
- Por que eu não posso comer doces antes do almoço, abuelita?
- Eres como tu padre, solo piensas en guloseimas - ela riu, afagando os cabelos escuros e na altura do queixo da menina.
- Pero papa no tienes que comer todo lo que hace, hasta legumes - a pequena não parecia ter problemas em falar a mesma língua que Sol.
- Não seja tão resmungona - disse a mulher mais velha, agora em minha língua - E su padre me pedió para que não fale mais en español com usted. Tienes...- reformulou - Tem que aprender a falar como ele.
A garotinha colocou as mãos nos quadris.
- Eu já sei falar como ele, não tenho culpa que ele nunca está por perto para conversar comigo.
- El é um homem ocupado, mi corazón - murmurou, deixando de cortar os legumes sobre a bancada pra dar atenção à criança.
- Mas já faz dias que ele não aparece em casa - choramingou - Ele disse que resolveria algumas coisas e que logo voltaria, mas mentiu pra mim.
Soledad fez cara feia, a repreendendo.
- Me diga quando tu papa mentiste à usted?
- Hã... Nunca.
- Entoces, não diga besteira. Assim fica parecida com el.
A menina riu.
- Eu não sou parecida com meu pai. Ele é bobão e resmungão.
- Eres idêntica à el até em la aparência.
- Yo no soy, no - ela riu, porém ficou séria - Abuelita?
- Sí.
- Y mi madre? A minha mãe? Como ela é?
- Su padre não gosta que fale nesse assunto.
- Eu sei, mas ninguém fala sobre ela! O papai disse que ela morreu, mas nunca diz mais nada a respeito dela!
Sol parou novamente o que estava fazendo, consternada.
- Mi amor...
- Me diga como ela era, abuelita. Eu quero saber sobre ela.
Ela estava hesitante, mas não conseguia lutar contra a criança.
- Tu mama era una Señorita muy... muito gentil e carinhosa, como usted. E também, mucho, mucho bonita. Tu papa a adorava, pero, não fala dela porque esto dói demás, mi amor.
- Por quê?
- Porque el sente falta dela.
- Ele nunca demonstra isso.
- Pero no significa que no sienta.
- Como era a aparência dela? - perguntou, empolgada - Eu sou parecida com ela? Só um pouquinho?
- Eres bela como ella.
- Mas isso é muito vago!
- E és apenas esto que terá de mim - disse a governanta, pondo um fim naquela conversa - Toma.
A vi oferecer um saco plástico com um líquido vermelho à menina. Sangue.
- Tienes que alimentarse ou tu papa corta minha garganta.
A menina deu um gole no tubo plástico na extremidade da bolsa de sangue.
- Eu o mataria antes de fazer isso - disse entre uma golada e outra - Ninguém toca na minha abuelita, nem mesmo o papai.
- No preocupate com esto, yo... eu dobro seu pai com uma torta de chocolate.
As duas riram, porém, subitamente, a menina farejou algo no ar. Sol não percebeu pois voltou a cortar os legumes, no entanto, a criança deixou de se alimentar, procurando algo no ar. E então, para meu espanto, girou a cabeça em minha direção. Antes, ela estava de costas para mim, então, minhas suspeitas apesar de muito óbvias eram inconclusivas, mas quando aquele par de olhos azuis cinzentos pousaram nos meus, meus joelhos ficaram fracos. Era Eve. Não. Era uma criança idêntica à Eve em todos os aspectos, principalmente na aparência e a única que poderia ser assim era...
Meu coração quase parou.
Mas ela estava morta.
Coloquei a mão sobre o vidro, meus olhos embaçados pelas lágrimas que começaram a escorrer por meu rosto.
- Amy... - sussurrei, antes de ser arrastada pelo corredor.
Eu havia resistido bravamente as forças que estavam tentando me expulsar dali, mas no momento em que fraquejei fui arrastada por todas as superfícies, que iam desde o corredor, as escadas e o chão perto dos maquinários até a saída mais próxima, que graças à Deus era a porta da frente. Quando eu finalmente estava do lado de fora, fui burra o suficiente para correr de encontro a entrada, a esmurrando com todas as minhas forças. Mas aquele lugar não abriria uma exceção para mim de novo. Não mais.
- Não! - gritei, dando socos no paredão invisível na entrada - Amy! Me deixa entrar! Me deixar entrar! Amy! Amy! Por favor, eu quero entrar! Amyyyy!
Eu estava tão desesperada que rodei todo o lugar com minha super velocidade em busca de alguma entrada, alguma falha naquela maldita regra que todos os vampiros eram obrigados a seguir, mas não havia nenhuma forma de vê-la outra vez, não dentro daquela fábrica.
Suja, descabelada e com os olhos vermelhos de tanto chorar, segui para o meu carro. E já dentro dele, uma vontade doentia de voltar naquele cemitério e arrancar a cabeça de Kai por ter mentido para mim todos aqueles anos sobre minha filha foi a necessidade mais forte depois da sede com a qual tive que lidar. Depois de alguns longos minutos muito frustrados de raiva e rompantes chorosos -e alguns socos contra o volante do carro -, finalmente consegui pensar com clareza. Eu ainda precisava dele vivo para quebrar o feitiço que unia à mim e Elena, mas quando isso estivesse acabado, eu destroçaria cada parte de seu corpo.
Arranquei com o carro, voltando pelo mesmo caminho pelo qual havia vindo, mas não antes de lançar um olhar triste e cheio de esperança em direção à aquela velha fábrica.

LAÇOS MORTAIS | Bonkai |Onde as histórias ganham vida. Descobre agora