Prólogo

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Dias frios eram a única companhia do cavaleiro solitário que vagava pela escuridão das noites em busca de um objetivo pessoal movido apenas pelo desejo ácido da vingança.

Sombrio, medonho, misterioso. Eram algumas das definições que recebia das pessoas que ouviam falar seu nome por onde passava, mesmo que tivesse ajudado algum cidadão contra algum criminoso ou até ajudado um pedinte com alimentação da qual não sentia o sabor a dias.

Gareth era seu nome, ou, pelo menos, como se apresentava para as pessoas que de alguma forma cruzavam o seu caminho. Além do nome, a única coisa que deixava com as pessoas era a dúvida de quem seria ele. Graças a isso, a aparência obscura e a forma como caminhava pelas sombras da noite vestindo preto da cabeça aos pés — camisa, calça, luvas, coturnos e o casaco sobretudo com capuz — somado ainda uma máscara sem expressão acinzentada com algumas ranhuras deixando-a com um formato sombrio, recebeu o apelido de Sombra.

Um inimigo a se temer? Um justiceiro com identidade secreta? Nem ele mesmo sabia dizer.

Já era tarde da noite quando Gareth parou no alto de um pequeno prédio de quatro andares em uma das grandes avenidas na cidade de Mezina. A lua cheia e a brisa fria o vigiavam, assim como os olhos negros e ágeis dele por trás da máscara observavam atentamente em sua mão a adaga apontada para frente. Ele movimentou lentamente a arma da esquerda para a direita procurando uma direção, os símbolos de uma linguagem desconhecida cravados na lâmina do objeto brilharam em um vermelho que foi ficando cada vez mais intenso como se dissesse: Naquela direção.

Seu coração acelerou e adrenalina ferveu no sangue, pois seu alvo estava próximo.

Com uma habilidade sobre-humana, Gareth apoiou no parapeito do prédio em que estava e  pendurou o corpo para fora, caindo em seguida em queda livre por alguns metros até se pendurar no beiral de uma janela fechada e luzes apagadas. Novamente ele soltou e caiu por mais alguns metros até se firmar em outro beiral. Repetiu silenciosamente o procedimento até chegar no chão de onde seguiu por uma rua escura que levava até um muro que cercava os jardins de uma enorme mansão.

Cães latiam ao longe quebrando o silêncio e espalhando o barulho de confusão pelo ar da mesma forma que sua mente estava barulhenta de um passado confuso que o atormentava cada vez que se aproximava de seu alvo.

Sem dificuldades, ele saltou o muro e passou pelos jardins chegando na entrada principal da casa. Não foi uma surpresa ao descobrir que a porta já estava aberta. Deu uma olhada rápida para sua adaga para confirmar que o brilho dos símbolos no corpo da lâmina estavam ainda mais fortes.

Muito perto.

Ao entrar na casa, Gareth encontrou a enorme sala completamente bagunçada e percebeu que já era tarde demais. O local estava parcamente iluminado pelo brilho da lua que entrava pelas janelas abertas, mas suficiente para enxergar os móveis que decoravam o lugar jogados e quebrados pelos cantos. Belíssimos quadros e vasos de plantas que antes enfeitavam as paredes e móveis agora estavam no chão repleto de cacos ao redor. Cenas de luta em que a vítima reagiu, porém em vão. No centro da sala estava o corpo de uma mulher de bruços usando sua roupa de dormir, seus cabelos escuros cobriam sua face e ele não reconheceu a mulher, mas tinha certeza que ela estava morta pelo sangue que manchava seu vestido branco.

Gareth estava concentrado tentando entender o que tinha acontecido ali quando ouviu um estalido, um som vindo de outro cômodo acompanhado de um barulho conhecido para ele: Ritual de magia negra. Apressou-se em silêncio para ver o que era, tinha esperança de encontrar algo que o levasse ao assassino, mas para sua surpresa, ao chegar em um quarto, ele ainda estava ali.

O cômodo estava tão bagunçado quanto a sala, um rastro de sangue se estendia até uma janela escancarada. No centro do quarto e de costas para Gareth, era ele, o objetivo pessoal e motivo da sede de vingança que tanto amargava no peito — Salazar —.

O homem vestia roupas pretas como as dele — camisa, calça, coturnos e casaco sobretudo —. Ele estava abaixado sobre o corpo de uma garotinha fazendo algo e Gareth sabia que era magia negra pelo som emitido no ambiente. Ele sentiu uma pontada de esperança ao ver que a vítima ainda reagia, sabia que ele poderia fazer algo para ajudar.

O agressor ainda não tinha percebido a presença de Gareth, pois o ritual o deixava em transe profundo. A garota deitada com as costas no chão permitia a passagem de uma fumaça branca que saia de sua boca ia diretamente para a boca de Salazar que estava sobre ela. Ele segurava os pulsos da garota que fazia movimentos bruscos tentando inutilmente se livrar dele.

Gareth não pensou duas vezes e usou sua adaga para desferir um golpe sobre as costas de Salazar. O som de ferro quente na carne seguido de uma fumaça fez ele largar a garota imediatamente enquanto se contorcia e gritava de dor.

Salazar olhou para trás, cabelos grandes de um loiro tão claro quase brancos espalhados sobre o rosto pelo susto, olhos totalmente negros de um canto ao outro carregavam uma enorme fúria por ter sido atacado daquela forma interrompendo seu ritual. Sentindo a dor pungente em suas costas, levou a mão ao local enquanto cambaleava para trás afastando-se de Gareth. Ele sabia que não teria condições de reagir. Rangeu os dentes com raiva e fugiu correndo para a janela de onde saltou e sumiu.

Gareth deu alguns passos e cogitou de perseguir Salazar, mas foi interrompido ao ouvir uma tosse seca e rouca misturada a respirações ofegantes. Olhou no chão ao seu lado direito e a garota ainda estava viva, correu até ela e a segurou pelo pescoço sentindo seu pequeno corpo mole de tanta fraqueza.

Uma linda garotinha com rosto fino, pele clara e cabelos tão negros como o da mulher que havia encontrado na sala, certamente era sua filha, pensou Gareth. Lentamente ela abriu os olhos trêmulos enquanto soluçava quase convulsionando como se implorasse por ajuda e uma onda de lembranças e emoções fortes veio em Gareth, causando nele uma forte dor no peito com o que viu.

Ela tinha lindos olhos negros, mas estavam ficando esbranquiçados, apagados pelo efeito do ritual. Estava perdendo a vida para magia negra que ainda estava em seu corpo, Gareth sabia que ela morreria assim que seus olhos clareassem por completo e não demoraria muito para que isso acontecesse.

Ele não queria deixá-la morrer, não podia e algo dentro dele gritava para que ele a salvasse. Ele buscou nas memórias algum conhecimento sobre as magias que aprendeu, algo que pudesse salvá-la e achou o que o procurava — um ritual de magia negra.

Gareth estava confuso entre fazer o ritual com a garota ou não. Aquilo seria demais para ela e sabia que haveria consequências sem contar a incerteza se funcionaria. Enquanto lutava contra ele mesmo se decidindo, a vida da garotinha se esvaia de seu corpo.

Novamente algo dentro de Gareth gritou desesperado para que a ajudasse.

Deixando a razão de lado, esquecendo as consequências e ouvindo o coração decidiu salvá-la. Colocou a garota de bruços no chão, retirou do casaco uma outra adaga e com a ponta da arma riscou as costas dela com um círculo cheio de símbolos de uma linguagem desconhecida e no centro do círculo um símbolo maior em destaque. O mesmo símbolo foi desenhado nas costas da mão esquerda de Gareth assim que ele retirou a luva.

Com os desenhos prontos e sangrando nas costas da garota e em sua mão, ele estendeu a palma da mão esquerda aberta sobre ela e recitou as palavras do ritual:

— Você perderá o que um dia foi motivo de orgulho. Em troca, o espírito guerreiro adormecido habitará em você, com... — Gareth hesitou por um instante, mas continuou — ...a magia não te afetará, sua sombra, sua companheira, seu sangue, sua arma. Com... estas palavras selamos um pacto, aqui e agora.

Quando terminou de recitar as palavras, um vento frio passou pelo quarto e os cortes nas costas da garota e em sua mão esquerda pulsaram em uma cor negra intensa e logo voltaram ao normal.

Com movimentos calmos, Gareth virou a garota que permanecia fraca e inerte posicionando-a em seu colo. Ficou fitando-a por um bom tempo assistindo angustiado o corpo daquela garota sofrer em silêncio. Somente se tranquilizou quando ela aspirou o ar com força e o soltou em seguida caindo no sono, porém respirando normalmente.

Ela estava a salvo.

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Coração Negro - O RitualWhere stories live. Discover now