Capítulo XXIV

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Passei o dia sendo lavada e esfregada como uma boneca que não tem voz ou vida. O casamento seria ao primeiro raio de sol, no Salão Principal do Palácio.

Sem coragem de abrir o diário no quarto em que qualquer um poderia entrar a qualquer momento, quando anoiteceu, desci rápido à passagem e encontrei ossos velhos e podres cheios de larvas espalhados ao redor do dragão. Ele estava deitado de costas. Meu estômago se contorceu.

— O que deram para você comer? — perguntei, levando as mãos ao nariz. Ele se virou devagar, percebendo a minha presença, e percebi que sua barriga parecia retorcida.

Ele estava com fome.

Peguei um pedaço de madeira solta e afastei os ossos cobertos com resto de carnes decompostas de animais o máximo que pude. A grade da boca dele estava quase solta, o que me fez imaginar que o guarda soltou para ele comer e não conseguiu colocar direito de volta.

Eu não conseguia imaginar como o guarda fazia isso sem ser morto até ver o corpo do dragão coberto de novos machucados. Ele devia ser torturado se resistisse.

Meu peito se apertou e eu voltei ao quarto correndo, tentando buscar toda a comida que se acumulava em meu quarto e eu não conseguia comer.

Quando retornei, percebi que a quantidade de comida que eu tinha trazido era ridícula para alimentar um dragão daquele tamanho.

— Perdão, era tudo que eu tinha. — me aproximei e terminei de tirar o resto da grade que estava pendurada em sua boca.

Ele se abaixou e abocanhou o que eu tinha levado na bandeja, de uma única vez. Me afastei quando vi seus olhos brilharem até perceber que o olhar dele estava direcionado em algo atrás de mim.

— Harry, o que faz aqui? — peguei o coelho, exasperada, e o afastei do dragão ao ver ele grunhir. — Não pode comer ele!

O dragão se deitou, parecendo decepcionado.
Harry se acomodou em meus braços.

— Vou tentar trazer algo melhor para você comer, se eu conseguir. — me sentei um pouco mais perto dele dessa vez. — Aliás, perdão por sempre tratar você como um macho. Imagino que, como todo animal, também há fêmeas. Você é um dragão fêmea?

Um fogo forte saiu da boca dele, me fazendo segurar Harry com força no colo. Como ele soprou direto nas pedras, logo se apagou. Meu coração bateu forte, com medo ao perceber que, agora, ele realmente já era capaz de me matar.

— Você é macho, entendi. Não precisa me assustar. — me afastei, trêmula, e ele pareceu me olhar arrependido, voltando a deitar no chão.

Desistindo da ideia de ir embora ao imaginar ter que voltar ao quarto sufocante, abri o diário que tinha encontrado e me sentei no lugar antigo, mais afastado. Harry deitou em meu colo.

As últimas folhas estavam rasgadas e sujas, e a capa que parecia ter tido um dia a assinatura de alguém estava queimada. Consegui encontrar as únicas folhas que tinha. A primeira que pude folhear estava sem data.

Está doendo. Não posso compreender porque estão fazendo isso comigo. Não tenho mais forças para gritar por ajuda, e se gritasse, acredito que não ouviriam. Eles deixaram ~~~ ~~ ~~~~~~~~~~ ~~~ diário, para ver se a maldição irá se manifestar.
Eu estou ~~ medo. Não sei mais o que fazer. Meu corpo está mudando a cada dia, e eu não consigo controlar. Minha pele dói, as minhas unhas caíram e ~ ~~~~~ voz está desaparecendo. Não sei por quanto tempo irei conseguir escrever. Não sei o que estou me tornando.

As páginas seguintes estavam estragadas por cupins. Soprei tentando afastar a sujeira e encontrei outra legível, com uma marca d'água que parecia ter sido de uma lágrima derramada na data do ano.

Insensato AmorWhere stories live. Discover now