Capítulo XXIII

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Eu não o sentia mais. Os sonhos eram vazios, assim como a realidade. A carta de Harry me fez levantar da cama e reagir. Ele me amava.

Os sonhos foram reais, e ele havia lutado por mim. Nada doeria mais, em toda a minha vida, do que conviver com o fato de que ele morreu sem saber que eu o amava também. Com todo o meu coração.

Toda a minha dor se intensificou ao ver que Abigail estava com dois dedos a menos. Arthur havia os arrancado quando soube da minha fuga, e, a partir desse momento, eu quis matá-lo. Com as minhas próprias mãos. A dor foi substituída por um ódio que me consumia. Eu, no entanto, não sabia o que fazer com ele.

— A minha mãe me dizia que, se guardarmos tantos sentimentos ruins dentro de nós, acabamos por nos igualar às pessoas que nos fizeram mal.

— Ele tem que pagar, Abi. — respondi, sem entender como ela podia dizer uma coisa dessa. Ele não havia conseguido me tocar, mas eu sabia que faria isso no momento em que entrasse pela porta na volta da viagem.

— E irá, mas não cabe a nós fazermos justiça. Vamos ter fé!

— Eu farei. — a encarei, sentindo meu sangue ferver. — Ele irá voltar, e quando tentar me atacar de novo, o matarei, mesmo morrendo junto.

— Acha que é isso que o seu Harry gostaria que você fizesse?

O argumento dela me desfez. Olhei para as ataduras que o médico tinha feito em meu braço, que não doía nada comparado ao meu peito.

Abigail, percebendo que havia falado o nome proibido que me paralisava, saiu, me deixando sozinha. Encarei a parede por tempo indeterminado, até sentir que, se não me mexesse, morreria estática.

Eu não sabia mais que horas eram. O dia e a noite não faziam mais diferença. Me levantei para ir ao banheiro quando tropecei na madeira solta novamente.

Chutei a madeira, gritando de ódio, raiva e dor, ao mesmo tempo. Havia um guarda que sempre entrava quando eu gritava para me repreender, mas com o tempo, ele sumiu e os outros não se importavam mais com os barulhos que eu fazia, e não se incomodavam em entrar para conferir o que era.

Peguei todos os vasos novos do quarto que eram repostos todos os dias sempre que eu os quebrava e os lancei ao chão, naquela maldita madeira, até que um buraco se abriu. Arregalei os olhos, surpresa por sentir, no fundo, uma faísca de esperança.

A madeira era oca.

Tentei pegar tudo no quarto que me ajudasse a terminar de quebrar o pedaço de madeira que restava o suficiente para que o meu corpo pudesse passar.

O buraco era escuro e profundo, mas havia escadas. Tossi com a poeira que saiu, e imaginei que aquela passagem era tão antiga que nem Arthur possuía conhecimento dela.

Tentando ser rápida, acendi uma vela e desci com o coração acelerado, temendo que alguém entrasse e visse a minha fuga. Harry começou a pular nas escadas atrás de mim.

— Volte! — sussurrei, brava. Ele me ignorou, erguendo as orelhinhas, e saiu pulando na minha frente. — Coelho teimoso!

As escadas infinitas acabaram, revelando um corredor estreito e escuro. A minha mão tremia enquanto segurava a vela. O único som que eu conseguia escutar parecia ser um barulho de correntes de ferro. Segui o som, percebendo que, no fundo, eu não tinha mais medo de morrer. Viver parecia pior.

O meu pensamento mudou quando a visão que eu tive fez a vela cair com força ao chão. Levei as mãos à boca para não gritar de pavor enquanto encarava uma fera de mais de dez metros de altura e pele escamosa preta me encarar com grandes olhos roxos.

Insensato AmorOnde as histórias ganham vida. Descobre agora