Capítulo 15: Eu sou uma mal-amada

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Tudo é bonito porque estamos condenados, nós nunca estaremos aqui novamente

Desejei que não houvesse um amanhã, desejei que não houvesse uma próxima vez, mas só estava enganando a mim mesma. Eu não quero morrer, porque a morte é para sempre, e para sempre é tempo demais. Em comparação, viver eternamente também parece um castigo. Estou na linha tênue entre os dois, andando sobre a ponta dos pés. Entretanto, de uma coisa tenho certeza, eu sentirei tantas saudades de mim quando morrer. Agora sou imortal, mas não quer dizer que eu seja imune ao poder de uma lâmina perfurando a minha carne, nem muito menos à paralisia de um veneno rompendo as minhas veias.

Não sei se o tempo mudará a minha mente, porém, no momento, diante de tudo que tenho sido, estou feliz por ter amassado a face do velho Conde de focinho achatado. Ele merecia. E eu me sinto mais leve.

Klaus tornou a olhar para mim logo após a minha leve bofetada. Sua esclera está banhada em sangue e em seus lábios há um sorriso maquiavélico. Pensei que ele estivesse disposto ao drama, que fosse berrar, praguejar ou devolver a graça. Todavia, o que parece é que ele complementa o meu estoque de loucos. E não faz mal, estou acostumada com gente assim.

O cômodo entrou em completa quietude, ninguém ousa romper o silêncio que eu mesma instaurei. Todos os espectadores estão assistindo ferozmente cada filete de segundo, ansiosos com o que acontecerá em seguida.

— Um momento com Hécate e veja só, está que nem uma tirana! — O Conde graceja.

— A pancada foi tão forte que afetou os miolos do defunto. Você pesou demais na mão, garota. Ande, dê um outro murro no sanguessuga, quem sabe assim ele volta ao normal. — A deusa arquiteta em meus ouvidos.

— Agora não. — Repreendo-a.

— Com quem está falando?

— Comigo mesma. — Após eu dizer isso, o homem à minha frente me olhou de cima a baixo. Deve estar cismado, e não é de menos. Mas, como eu sou atrevida, não abaixo a cabeça e retribuo a encarada. Passo por cima das orientações de Cornelius acerca do pai.

— Acho que já deu a nossa hora, caros amigos. Sentimos muito por qualquer incômodo e inconveniência que por acaso tenhamos causado. Mas o ponteiro do relógio não espera, e nós já estamos muitíssimo atrasados. — A interrupção inesperada de Vênus fez com que um sorriso genuíno se apossasse de meu rosto. No entanto, não estamos atrasados para seja lá o que for, estamos? Não me lembro de ter marcado qualquer compromisso.

— Já estão de saída? Mas vocês nem irão ficar para o chá? — O pai do loiro responde surpreso.

— Isso, já estamos de saída. Sentimos muitíssimo. — Erin reforça o que o elfo acabara de falar.

Quando me dei conta, estávamos descendo o último degrau da imensa escadaria da sala de estar, com os feéricos se desculpando a todo tempo com o Conde e seu filho. E eu, ao contrário deles, continuei muda durante o caminho. Estava absorvendo tudo que acontecera, me forçando a acreditar no impossível e afastando a ideia de minha mente que enlouqueci.

Onde já se viu, um contrato com a dama da morte? Este é o sonho mais estapafúrdio no qual eu já me meti. Desconfio que na verdade quem bateu a cabeça fui eu.

Para todos os efeitos, não quero ter o desgosto de encontrá-los novamente (falo dos Tepes, porque infelizmente terei que acompanhar os elfos). Casa estranha com gente esquisita, já basta a que ficou para trás.

Deixamos o castelo antes mesmo que eu pudesse me arrepender do que fiz.

— Como está, Aurora? — Já estávamos floresta adentro quando eu me sobressaltei com Erin pairando ao meu lado feito um fantasma.

— Bem. — Replico de modo indiferente.

— Bem? O que foi isso? Que bicho te mordeu? — Chega a ser patético ela não se lembrar que me jogou aos lobos quando mais precisei de companhia. E é ainda mais patético de minha parte deixar se importar com uma situação que eu deveria estar acostumada.

— Ela obviamente está chateada por vocês terem a abandonado no terceiro mundo, sua tapada. O que mais acha que seria? — O vulpino está disposto a me surpreender esta noite.

— Escute, nós não a deixamos porque queríamos, o Conde nos obrigou a ficar.— Arden protesta. Ele até tentou continuar, mas eu o interrompi.

— Como? Os ameaçando com a sua bengala desmantelada?

— Ele controla o portal, afinal, foi o próprio Conde quem fez.

Ignoro todos eles, algo tão pequeno não deveria exigir a minha atenção. O que importa é que eu consegui o que queria, sozinha, como sempre.

E agora que tenho em mãos a minha liberdade, não sei bem o que fazer com ela. Sinto como se ainda permanecesse ligada a aquilo que me aprisiona. As minhas correntes foram soltas, no entanto ainda sinto o seu peso. E elas ardem como queimam.

Tudo que sei é que irei seguir na mesma direção em que os elfos estão indo. Afinal, para quem não sabe por onde ir, qualquer caminho serve.

Erin, Arden e Vênus irão buscar o concubino de Nix na vila dos humanos daqui há dois dias, e é lá que a minha jornada começa.

Paramos próximo a uma cordilheira, com os nossos pés judiados e as solas das botas castigadas. Já era tarde do dia quando testemunhei o meu estômago roncar de fome e o meu corpo tremer de cansaço.

Tratei logo de pôr comida em minha barriga, apesar da relutância em meu cérebro e da enorme vontade que tive de desengolir a carne seca que Arden levava em sua sacola.

Próximo onde estávamos, avistei uma semeada de flores de linho azuis. E não pensei duas vezes quando fui até elas e lá me deitei.

Eu nunca havia presenciado tanta paz antes. O pôr do sol está perto e a brisa suave de fim de tarde passa por mim, feito um sussurro.

No amanhã de alguémWhere stories live. Discover now