Capítulo 8: A rasga mortalha

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Quando encaro a minha sombra vejo a minha mãe, de pele pálida e lábios rosados, pronta para me atormentar com o seu olhar amargo. De garras afiadas e rigidez atroz, ela é a única criatura que de fato me assombra. Acho que tinha olhos azuis, ou verdes, eu não me lembro mais. Parece-me tanto tempo desde a última vez que a vi, embora a sua áurea venenosa permaneça fincada em meu âmago.

Aqui está frio, mas vou ficar mais um pouco, acho que é melhor assim.

Depois de algum tempo na Guilda, Arden e eu a deixamos. Saímos de lá um pouco embriagados por uma neblina escura com um cheiro estranho, que se alojou em nossos pulmões assim que pusemos a cara para fora.

Olhamos um para o outro por um momento e exibimos o nosso sorriso mais amarelo ao mesmo tempo que gargalhamos feito gralhas. Não sei se fora efeito da névoa ou consequências dos acontecimentos passados, ou tudo isso junto e misturado. Só sei que levou um tempo até os nossos fôlegos voltarem.

— Por que bulhufas nós rimos mesmo? – ele indagou.

— Delírio, acho.

— É, faz sentido.

Estávamos subindo uma rua inclinada quando ouvi um som estridente sob nós. Ergui a minha cabeça e captei um vulto caucasiano, perfurando os céus.

Como uma mensageira da morte, ela anunciou a sua chegada novamente com um ruído estrambólico e amedrontador. Suas asas alinhadas e imponentes delinearam uma rasgadura ao alto.

— Sinta-se sortuda, não vemos uma dessas há tempos! – Arden exclamou.

— E o que é ela?

— Uma deslumbrante rasga mortalha. – Vejo as suas íris brilharem.

— É de longe uma das coisas mais lindas que já vi.

— Concordo com você. – Ele se vira para mim.

Abruptamente uma faísca elétrica emerge dos céus e atinge, agora a pobre e indefesa, rasga mortalha. O seu corpo despenca a uma altura considerável e o seu frágil torso parece ter se desmontado com o impacto da pancada. Sem pensar, corro em sua direção, afoita. Suas penas que até alguns segundos eram alvas agora estão feito carvão. O seu corpo inteiro treme pela recente descarga. Minha vontade é de tomá-la em meus braços, porém nada posso fazer no momento.

Já havia perdido as esperanças quando a coruja despertou de seu leito. Entretanto, seu semblante não é dos melhores. O sei torço ainda está abatido e não há firmeza em suas pernas. Sem pensar nos choques, a agarro com delicadeza e me volto para o elfo, que está paralisado.

— Céus! E agora? – ele fala afobado.

— Apenas me ajude. – O vejo assentir. – Agora precisamos urgentemente encontrar Foster. – Digo enquanto corro com a coruja em meus braços e Arden logo atrás.

Desejo que ela aguente firme.

Percorri todo o caminho até o Palácio o mais rápido que pude. Posso esquecer o percurso até o meu quarto, mas lembrei de todo o trajeto até o pequeno refúgio de Foster. Pus umas das mãos de baixo do quadro de mármore azul, porém custou-me um pouco a alcançar a tranca que dá acesso a passagem, mas, com muito esforço, enfim fiquei-a. Entretanto, o local está vazio, sem sinal algum do duende.

O guarda apressou-se e seguiu em direção a alguma lamparina próxima, voltando logo após, com uma em mãos, já que o pequeno boticário de Foster estava tomado pelo breu e eu, obviamente, não enxergo no escuro.

— Pelo que me contaram, Foster saiu mais cedo.

— Então teremos que cuidar disso sozinhos. – Pareço firme, entretanto a minha pulsação está acelerada.

No amanhã de alguémWhere stories live. Discover now