Capítulo 1: O baile de abutres

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"Quando vai começar a viver a sua própria vida?"


Primavera, o campo era coberto por miosótis, as mais belas das flores. Eu estava correndo entre elas. Mas, desta vez, eu não estava fugindo. Apenas enfim seguia em direção a minha tão esperada liberdade.

Era tudo tão doce e encantador, lá não havia o ruído nauseante do ranger de cama, as súplicas abafadas, pedidos de socorro que nunca chegariam, lençóis tingidos de vermelho escarlate, e nem muito menos a silhueta do diabo louro que tanto me perseguia. Lá eu era livre.

No entanto, tudo parecia bom demais e me ocorreu que aquilo era meramente um sonho. Instantaneamente, pedi para acordar, não porque não gostava de sonhos, mas é que às vezes eles doem. Doem feito uma mentira. E a mentira não só dói, como dilacera.

Então abri os olhos.
Nada mudara novamente. Tudo permanecia como antes. Eu ainda estava presa a quatro paredes, encarando o lustre de cristal acima de minha cabeça, deitada sobre a banheira, com as mãos tremendo de frio e os dedos enrugados, à espera de algo.

Olhei para a janela, já estava anoitecendo. O sol deixou o seu último rastro, marcando a sua passagem e então finalmente se pôs.
Ultimamente tenho perdido a noção do tempo. Venho dormindo por longas horas e ainda assim sinto um pesar em meu corpo.

Meus ossos latejam sob a camada fina de pele. Evito ao máximo encarar-me no espelho, não é nada encantador observar a sua própria decadência.

Saio de meu transe por uma batida incessante em minha porta, aquele tipo de batida que causa tremores, agonia e um desassossego terrível que assola a carne. Logo após, ouvi um tilintar de molho de chaves, seguido da maçaneta sendo destrancada.

— Por que se dá ao trabalho de bater a porta se irá abrir de qualquer forma? — murmurei alto o suficiente para que ela escutasse, apesar de saber que seria ignorada, como sempre.

— Ainda não está arrumada? Ouça, quero que desça em trinta minutos. — A cafetina parou no limiar da porta. A sombra escura em suas pálpebras, os olhos azuis e os seus curtos cabelos loiros parecem me perseguir constantemente em meus piores pesadelos. Ela não se demorou muito, num piscar de olhos a sua silhueta ordinária já não estava mais em meu quarto. Senti um momentâneo alívio por sua partida ser mais do que breve.

Os pulsos e pescoço de Irene estão sempre abarrotados de jóias, compradas através do sofrimento de meninas ingênuas, que tiveram o azar em ter os seus caminhos cruzados com a mulher maldita. O seu olhar carrega uma expressão vazia. Ela se cobre com a sua máscara mesmo diante de mim, a sua filha.

Irene me mantém presa de dia, como um rato em sua minúscula gaiola, e quando a noite surge através do horizonte, os portões do inferno são abertos e eu sou liberta de meu cárcere, até que o astro-rei dê as caras novamente.

A criada entrou em meu quarto logo após a ausência de sua patroa, para me decorar de enfeites. Ela não sibila nada quando me vê, porém entendo o seu suspiro quando passa por mim. Buracos negros cobrem os meus olhos, parece que minhas órbitas se aprofundaram ainda mais em meu crânio.

Maya me conhece há muito tempo, mas parece cada vez mais frustrada sempre que me olha. Apesar de ser apenas uma criada sob os olhos dos outros, na verdade ela tem sido muito mais do que isso para mim. Ela esteve ao meu lado após a morte prematura de meu pai, suportou comigo o luto, mesmo que de sua forma. Claro que está a par de tudo que acontece aqui, mas, ainda assim, eu não a culpo por não poder fazer nada para me ajudar. Ela tem filhos e um marido enfermo para cuidar, e esse emprego é o melhor que conseguiu dentre todos esses anos.

No amanhã de alguémWhere stories live. Discover now