Capítulo 2: Minha tia é uma mentirosa

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A dor é algo que eu aprendi a conviver. Eu simplesmente finjo que elas não existem, até irem embora de vez. Mas nunca somem de fato. Tenho dores tanto físicas quanto mentais, porém a segunda é mais inquietante. Isso vai se expandindo em cada parte de meu cérebro, até não restar mais nada. E eu ser apenas mais um esqueleto velho enterrado na lama, coberto por larvas.

Encaro o campo de miosótis logo à minha frente. Doce flores azuis parecem dançar em encontro ao vento uivante da colina. Gosto de aproveitar momentos como estes, pois são os únicos em que posso sair de minha jaula e respirar ar fresco — sempre sob a vigília de um criado, claro.

Miosótis simbolizam o amor eterno entre duas pessoas, algo que corpos mortais são incapazes de conhecer. Se eu fosse imortal acho que ficaria louca. Viver a eternidade aqui, quando não quero nem sequer mais alguns segundos. Deve ser uma maldição.

Pensando bem, talvez eu seja amaldiçoada de qualquer forma. Certa vez, quando tinha um pouco mais de nove anos, uma tia me disse que cabelos ruivos são a marca de uma maldição, jogada a muito tempo sobre a terra. Acabei dando um pouco mais de importância do que devia à sua fala infeliz, pois a vida que levava, e ainda levo, não dá muito espaço para que eu pense o contrário.

Quando frequentava a escola dominical, as criancinhas diziam o mesmo, enquanto me chamavam de feiticeira. O meu piebaldismo também sempre foi alvo de piadas e olhares atravessados. Uma das crianças puxara a mecha branca de meu cabelo para ter certeza de que era real e então a cortara. A pequena mecha branca cresceu, mas eu voltei com os olhos inchados para casa de tanto chorar e com um pouco de sangue em meus dedos fofos. Eu tinha socado a garota tão forte que seu nariz sangrou. Essa é uma das poucas coisas das quais eu nunca me arrependerei de ter cometido.

Naturalmente, isso afetou o meu cérebro de uma maneira penosa. Pois, fiz apenas uma única amiga em todos os meus dezessete anos de vida.

Há coisas sobre mim que ninguém sabe, as guardo desde muito tempo. Houve certo momento da minha vida no qual colecionei tantos sonhos e quereres que até cheguei a cogitar que eles não caberiam em mim. Contudo, agora estou vazia deles, nada mais me agrada tanto quanto antes.

Eu só quero poder guardar os meus ossos cansados em meio a girassóis e, finalmente, poder repousá-los, numa cova estreita e profunda, onde ninguém jamais pudesse me ver novamente. Mas, mesmo assim, acho que não ficaria em paz completamente. Na verdade, estou convencida de que os meus demônios me perseguirão para onde quer que eu vá. É uma das únicas certezas que eu tenho, depois da morte.

Mesmo tendo bebido três xícaras de café para me manter acordada a fim de apreciar as flores do campo uma última vez, meu corpo ainda queria descansar e eu o obedeci.

Caminhei a largos passos até o meu quarto e chegando lá me desabei sobre os lençóis. Porém, os percevejos não me deixaram dormir a noite, estão todos em meu cérebro, consigo sentir a pulsação de cada um e ouvir os seus sussurros entre palavras ditas e não ditas. Ainda assim, continuo mantendo todos vivos.

Levantei ao nascer do sol. Hoje a manhã está mais bela do que eu já vira. Pude ouvir os meus batimentos cardíacos, apesar da calmaria lá fora.

Abri a porta da varanda do meu quarto, a brisa suave tocou a minha pele. Os raios do astro-rei beijaram os meus cabelos e aqueceram o meu torso, como um abraço caloroso, queria poder sentir isso mais vezes.

Apreciei a vista de um dos aposentos mais altos do casarão e me recordei de algo que li uma vez em um dos livros, agora então queimados: "De longe, o sol parece realmente fascinante. Mas, quanto mais perto você chega do sol, mais quente fica, e a luz começa a machucar os seus olhos. Mesmo que doa, você não pode escapar.

Mesmo que você quisesse se livrar dele, você não poderia". No momento, quero ir de encontro ao sol e caminhar nas nuvens, feito Ícaro.

Já perdi as contas de quantas vezes a morte me parecia ser a única solução para escapar de minha prisão, porém o medo sempre se sobressaia à coragem. Por um tempo, afastei tais pensamentos de minha mente e a ocupei com outras distrações.

A nicotina e a bebida que eu furtava do acervo pessoal de Dona Irene pareciam ser mais atrativas, além de me deixarem, por uma boa parte do tempo, embriagada e longe de mim mesma. Contudo, quando volto para as ideias e as drogas não tem mais nenhum efeito sobre o meu corpo, o mesmo sentimento ainda está lá, fincado em meu cérebro feito raízes.

Não quero mais fugir, descascarei o medo para caber coragem.

— Será que um dia poderei dançar sob o sol sem fazer nenhuma sombra? — olhei para trás, na busca de ter deixado algo. Mas nada daqui me pertence. Nem eu pertenço a aqui.

Impulsiono-me mais para frente e vejo o meu corpo tocar o gramado. Sinto os meus ossos se partirem, como se eles fossem feitos de vidro, assim que a carne entra em contato com o chão. Depois disso, o mundo à minha volta se apaga. 

 

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No amanhã de alguémOnde as histórias ganham vida. Descobre agora