10 - Passado, história e objetivo

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Elias estava quase de volta à Kailotron. Perdera um tempo precioso com toda a população da Floresta Flamejante, mas saíra relativamente ileso. Mais tempo fora gasto com aquele elemental insano, e este sim o pegara de jeito, queimando-lhe a carne do braço esquerdo até grudar nos ossos. Fossem outros tempos, aquilo jamais lhe aconteceria, mas havia abdicado da maior parte de seus poderes.

Ao menos conseguira barganhar com o maldito aquilo que queria. Um artefato elemental. E, de quebra, ele ainda lhe revelara sobre a reunião que haveria de acontecer entre os quatro elementais da natureza, num pequeno oásis um pouco mais ao sul da Floresta Flamejante, território dos Ondinas.

O homem não conseguia atinar o motivo pelo qual o elemental de fogo Ícaros lhe deixara a par daquilo. Só podia imaginar que ele era mesmo louco.

O braço lhe causara uma dor absurda nos primeiros dias, mas agora, uma semana depois, estava praticamente curado por influência de sua magia. No começo fora um suplício manobrar o automóvel no caminho de volta, pois o volante era tão rígido que era difícil segurá-lo com uma só mão. Mas Elias realizara a tarefa com satisfação.

Há quanto tempo se ferira pela última vez? Nem conseguia se lembrar. Também já havia dirigido um automóvel antes, logo que a geringonça fora posta à venda pela primeira vez, há pelo menos quinze anos, e seu sistema ainda era basicamente a vapor. A versão que dirigia agora era um pouco mais evoluída. Movida a diesel. Mas nunca havia experimentado dirigir ferido como estava.

Apesar disso, era como se aquelas experiências novas não o atingissem mais. Elias era um homem velho, muito velho, sobre o qual o peso do tempo incomodava. A solidão era sua eterna companheira, e isso mudou apenas na companhia de Irene. E agora, inusitadamente, na companhia de Henrique. O garoto obviamente não se sentia confortável ao seu lado, mas era inteligente e, quando estava de bom humor, podiam ter conversas muito interessantes.

Era engraçado como nenhum de seus companheiros na Guilda o fazia sentir-se humano, completo. Milênios não fizeram com que ele se considerasse parte de um todo, mesmo sendo um dos líderes. Sempre se sentira um alienígena, e, de certa forma, via refletida em seus iguais a sombra do próprio fracasso. Eles eram um eterno lembrete de suas amadas filha e esposa.

A família de Elias fora destruída quando a guerra entre os magos ocorrera, há longos 2621 anos atrás, e os primeiros Omags surgiram. Foram atacados por colegas da própria comunidade em que viviam, cegos em sua ganância por obter Corações de Magia. Elias quase foi morto na ocasião, e não conseguiu impedir que o pior acontecesse.

Foi numa noite fria. Elias, sua esposa Hana e a filha Hélen, jantavam tranquilamente à mesa da sala. Sua vila era composta por aldeões essencialmente vegetarianos, que viviam de seu próprio plantio e esforço. A magia ajudava com o trabalho pesado, e eram prósperos. Por tratar-se de um lugar com poucas pessoas, dificilmente alguém trancava as portas, o que apenas facilitou a invasão de seus algozes. Três homens e uma mulher entraram, todos pulando sobre as garotas, derrubando-as no chão. Quando Elias levantou-se abruptamente para ajudá-las, um dos atacantes o imobilizou com magia, jogou-o sobre as tábuas do assoalho e resolveu terminar o serviço manualmente, enforcando-o com as mãos nuas. Quando estava próximo de desfalecer, ouviu o gemido esganiçado de Hana, e uma débil luminosidade se fez presente, indicando que o Coração de Magia não estava mais em seu lugar de origem. Zonzo, Elias virou o rosto e deparou-se com a face sem vida de Hélen, o peito ensanguentado, e seu agressor com uma jóia brilhante em mãos. Tentando suspender os dedos que limitavam a passagem de ar, procurou pela esposa, desesperado. Encontrou-a estendendo a fina e delicada mão em sua direção, e quando seus olhares se cruzaram, uma lágrima rolou do olho esquerdo de Hana, formando um caminho alvo entre o sangue que lhe manchava as bochechas. Logo em seguida, as pálpebras se fecharam e a respiração encerrou-se para sempre.

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