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Eu não sei o que a noite me reserva; talvez eu não esteja preparado para saber — Allimidul Seohlub

Victor

Eu não consigo dormir. Passo o dia inteiro trabalhando e acabo virando a noite também. Tudo para não pensar, tudo para não sentir. Mas, mesmo que eu me esforce nessa lobotomia fajuta, nada a impede de dominar todo o meu insignificante sono.

Sim, eu não consigo dormir, mas quando ocorre, eu sonho com ela. Ela do meu lado, ela rindo, ela deitada no meio peito nu. É realmente uma merda tão grande que eu tenho vontade de bater em alguém.

Ela pediu um tempo, mas já faz um mês. Eu já não sei se devo para na sua porta e ficar lá plantado até me ouvir. Eu estou me alimentando de migalhas. Todo dia recebo alguma informação fragmentada.

Ela foi pra faculdade.

Ela foi pro estágio.

Ela não sai de casa.

E é só isso.

Minha vida voltou a ser vazia semelhantemente a um ano e meio atrás. Mal vou para casa e quando vou, meu peito se aperta e a sensação aterradora de solidão e saudade predomina.

No entanto, no meio da noite, no vazio do meu escritório, eu ligo para ela. Não deixo a chamada completar. Apenas dois toques e desligo. Há tanta coisa que quero falar.

Eu me preocupo; me preocupo desde o dia em que recebi a mensagem dizendo que Ayleen não ia para casa, mas sim à praia. Mudei o destino da viagem naquele dia e quando cheguei naquela praia deserta, vi o meu mundo todo querendo se destruir, se afundar.

Nunca tive tanto medo, tanta dor e angústia como naquele momento. Eu queria que ela voltasse para minha casa, que nós conversássemos e esclarecêssemos tudo o que foi jogado em nosso colo.

Ela não quis.

Ela pediu um tempo.

Eu quero minha vida de volta, quero respirar com tranquilidade, quero voltar a ter paz.

Me levanto da poltrona de couro do escritório e observo a paisagem noturna. Os prédios iluminados, o céu com poucas nuvens e estrelas tímidas; a lua crescente e cheia de promessas. Poucos carros cruzando a avenida, eles mais parecem pequenos brinquedos.

— Eu não preciso voltar pra casa — digo em voz alta.

O que eu fiz com ela? Como pude trazer à tona algo que ainda a faz sangrar? Como pude deixar minha mãe vencer mais uma vez nesse jogo doentio que ela criou? Que tipo de homem eu sou? Quantos anos eu tenho?

Eu tento me afastar, estabeleço limites, contundo, essa família desgraçada continua voltando e estragando tudo o que me faz bem; tudo o que satisfaz.

— Porra! — exasperado, retiro o paletó e abro alguns botões de minha blusa social.

Paro de encarar a paisagem, que se tornou estupidamente melancólica, e caminho em direção ao pequeno bar que mantenho por aqui.

Entre as várias garrafas de uísques, vinhos, champanhe e essas caralhas todas, pego mesmo é a garrafa de cachaça. Nem me preocupo com a marca, somente rompo o lacre e viro o líquido goela abaixo.

Sinto a garganta queimar e logo em seguida o estômago. Tudo esquenta. Assim como deveria ser. Carrego a garrafa comigo e sento-me no sofá chaise longue preto.

O que eu tenho que fazer pra ser livre dos meus pais?

A pergunta fica no ambiente quase como se fosse uma entidade.

DeclínioWhere stories live. Discover now