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Eu te peço perdão por te amar de repente — Vinicius de Moraes, Ternura

Ayleen

Victor não está do meu lado quando desperto. O quarto, ainda escuro, não me diz muito. Jogo os lençóis para o lado e vou em busca dele. Talvez eu tenha despejado muita coisa sobre ele; apesar de tudo, aquelas pessoas ainda são os seus pais.

Parece até uma piada de mau gosto. Penso enquanto saio do quarto.

Não há um som sequer. O mundo inteiro deve estar dormindo. Menos o Victor, é claro. Meus passos ecoam pela casa repleta de quietude. À medida em que me locomovo, as luzes se acendem automaticamente.

Do lado de fora, vejo um raio cruzando o céu. Os pelos da minha nuca se arrepiam e uma lembrança do passado retorna.

O clima daquela noite também estava assim. Minha mãe já estava internada e eu sozinha em casa. Os ventos zumbiam alto e balançavam as copas das árvores. Eu olhava a cena pela janela do meu quarto.

As trovoadas eram extremamente barulhentas e violentas. Tive muito medo e não consegui dormir. Era a minha primeira noite sozinha e justamente ela precisava que ser tão assustadora. O tempo passou e eu consegui superar, mas, de vez em quando, as lembranças me inundam.

E, agora, esse mesmo sentimento se aloja no meu peito. Você já superou, Ayleen... você já tá muito grande pra ter esse tipo de medo infantil.

Às vezes tenho a impressão de que o meu eu interior me odeia. Ou pensa que preciso ser forte o tempo todo.

Sacudo a cabeça e me concentro em minha busca por ele.

— Victor? — chamo ao chegar à cozinha.

Mas não tenho resposta.

Uma trovoada violenta me faz agarrar a bancada. Não há chuva, apenas o estardalhaço causado pelos trovões.

Pra onde ele foi?

Em questão de poucos segundos, ouço o som de um carro. Fito a entrada atentamente e logo ele surge com o rosto sombrio e muito sério. Não há qualquer vestígio do Victor do dia a dia.

Ele passa por mim tão compenetrado que não me enxerga parada em frente a bancada na ilha da cozinha.

Será que tá me punindo?

— Ei? — olho para suas costas.

Victor se detém no meio do caminho e se vira para mim. Seu rosto muda de expressão, uma leve sombra de culpa resplandece.

— Desculpa, eu não te vi aí — em pequenas passadas, ele se encontra comigo.

Victor não está normal, seus olhos estão tempestivos e o cenho franzido. O cabelo completamente revolto como se sua mão tivesse dado várias voltas por ali.

— O Diogo te deixou aqui? Aconteceu alguma coisa? — saio da bancada e passo a mão por seus ombros e deixo-as descansando em seu peitoral.

Ele fecha os olhos e não me responde de imediato.

— Victor? — insisto.

— Eu dirigi até a casa dos Agostini — seu tom é áspero.

Fico em silêncio, olhando incrédula para ele.

— Victor, você não tá bem pra sair por aí dirigindo! — encaro com toda a minha repreensão — E se você tivesse perdido o controle? O clima tá uma merda e você vai lá e pega o carro!

DeclínioWhere stories live. Discover now