Sem pensar duas vezes fechei a porta.
Então tomei a enciclopédia de Kiros que vinha logo atrás de mim, torcendo para que ele não tivesse visto a cena.
- Aconteceu alguma coisa? Você parece pálida. - Falou, levantando uma mão para tocar minha testa.
- Preciso descansar. Agora. Agradeço por ter me acompanhado Kiros. Pode ir embora agora. - Falei rapidamente, atropelando as palavras com o nervosismo.
- As noites tem sido bem frias ultimamente, precisa de lenha? - Perguntou, demorando-se a observar meu rosto.
- Eu tenho, se não tiver posso queimar uma de minhas cadeiras... - Falei rapidamente, escutando passos atrás da porta. Então sem pensar em mais nada além de me livrar de Kiros antes que o pior acontecesse beijei sua bochecha e o empurrei.
- Isso... - Ele falou, tocando sua bochecha.
- Fica para depois. - Falei, dando um sorrisinho que não teria enganado nenhuma criança de 5 anos, mas era Kiros e ele tinha entendido o recado, sorrindo para mim antes de ir embora.
Respirei fundo e andei até a janela espiando que infernos o Lobo estava fazendo na minha casa. Acendendo a lareira, ótimo. Puxei minha adaga deixando-a em uma mão escondida atrás do corpo, então voltei a empurrar a porta.
- Que faz aqui? - Perguntei, usando minha melhor voz ameaçadora. Soltei a enciclopédia e caminhe até a metade do cômodo.
A porta atrás de mim bateu, por algum vento ou simplesmente pela vontade dele. Engoli em seco, mediando minha melhor oportunidade, fugir agora seria tolice, ataca-lo poderia ser desastroso.
- Falei que daria algum tempo para que escapasse e você não fez uma boa escolha, Aysha. - Falou de costas para mim, atiçando o fogo. Dando-me uma visão de como os músculos em seus braços e costas trabalhavam e também uma brecha para ataca-lo desprevenido, a adaga em minha mão pareceu mais pesada.
- Não voltarei com você. - Afirmei, andando até ele lentamente, um passo de cada vez, fazendo a madeira abaixo de mim ranger. - Também te dei uma escolha, Lobo, mas você não me levou a sério, ao que tudo indica.
Não desperdicei minha chance e a apunhalei o ar em sua direção, para atingi-lo, mas em um piscar de olhos eu estava rolando no chão sem entender o como, com ele sobre mim contraindo seus lábios furiosamente.
- Pode tirar a minha vida se quiser, mas antes preciso fazer algo e você ira me ajudar nisso. - Falou, uma de suas mãos segurava o pulso da minha mão direita apertando-o até que eu soltasse a adaga no chão, ela caiu tinindo brevemente.
Usei minha outra mão para empurra-lo, mas ele sequer se moveu, então apertei seu pescoço reabrindo o ferimento que eu tinha feito. Ele continuou firme encarando meus olhos até que eu desistisse quando senti o sangue quente tocar meus dedos.
- Saia de cima de mim, Raymond, ou eu juro por todos os deuses que vou usar o meu poder contra você. - Falei, uma ameaça infundada, eu já havia visto a forma de sombras do Lobo e ela era assustadora como o inferno, eu não queria aquilo em mim.
- Quero que me escute, sem fugas, sem outras tentativas. - Ordenou, usando toda a presença de seu corpo sobre mim.
- Claro. - Sorri, então tentei acertar meu joelho entre suas pernas, inesperadamente ele o segurou desmanchando o rosto de satisfação em minha face.
- Há certos golpes baixos, querida Aysha, que não posso permitir que acerte. - Disse, sua expressão ficando mais feroz. Eu odiava ser incapaz de não reparar em como seu rosto ficava bonito iluminado pelas chamas ou em como seus olhos possuíam aquela coloração incomum que me fascinavam ao mesmo tempo que causavam um temor em meu corpo.
- Você os merece. Diz que precisa da minha ajuda, mas me da ordens. - Falei retribuindo sua ferocidade, relutando contra ele até que sua outra mão segurasse meu braço livre.
- Não conheço outra forma de atuar. - Disse, encarando-me por um momento, desviei meu olhar incapaz de sustenta-lo por mais tempo, ele então inclinou sua cabeça para o meu pescoço traçando seu nariz até o meu cabelo, tragando o cheiro que havia lá, no ponto exato onde Kiros tinha enterrado seu rosto mais cedo. O pensamento de que ele pudesse sentir isso me causou arrepios.- Você tem cheiro de pinho e pólvora, aqui. Não é o seu cheiro. - Falou, voltando a olhar meu rosto, confirmando minha suspeita. - Sei que tinha mais alguém com você quando chegou, um homem. - Ele inspirou profundamente e me fitou, seu rosto tão próximo do meu era desconcertante, senti meus lábios tremerem, quando sua respiração ficou sobre eles, calidamente. - Nutre sentimentos por ele? - Perguntou.
- E em que infernos isso é pertinente agora? - Exclamei insultada.
- Não. - Ele balançou a cabeça, agitando algumas mechas do cabelo que haviam se desprendido sobre o meu rosto. Um sorriso de satisfação cobriu sua face quando senti minhas bochechas arderem, ele estava inquietantemente perto de mais, com todo um calor que eu tinha certeza que não vinha somente do fogo. - Pode negar, mas sei o efeito que causo em seu corpo. - Sussurrou convencido. - E você não nutre sentimentos por aquele homem. - Assumiu, saindo de cima de mim. Antes que eu pudesse recuperar minha adaga ele a chutou para longe.
Fiquei de pé, afastando-me para a pequena mesa com uma única cadeira que ele tinha recolocado perto da entrada. Eu precisa respirar, longe dele.
- Minhas orelhas o ouvem muito bem Lobo, afinal o que veio fazer aqui? - Perguntei, olhando nervosamente ao redor em busca de uma arma ou de simplesmente alguma outra coisa que aumentasse a distancia entre nós.
Tome-o, a caixinha sugeriu. A mandei para a porra do lugar de onde ela tinha vindo.
- Entendo que meus métodos a machucaram e peço desculpas por isso. - Falou sério, andando pela casa até uma prateleira com vidros e potes contendo ervas.
- Desculpas? - Eu quase ri. - Está me pedindo desculpas?
- Sim. - Disse, inspecionando o trabalho da minha vida.
- E achou que isso funcionaria? - Perguntei incrédula, ele assentiu. Respirei fundo, sentindo minha garganta seca quando indaguei o que martelava minha cabeça desde que sai da reunião com o Conselho. - O que fez com as outras garotas? Com os sacrifícios anteriores a mim? - Falei, lembrando-me de nossa conversa em seu covil. - Do que você precisa?
Ele parou de andar. Vi sua postura ficar rígida quando tornou a me encarar.
- Posso leva-la até elas se quiser. - Falou.
- Sem meias respostas, Raymond. - Contestei. - Qual a razão disso tudo? Cinquenta anos é um tempo muito longo para alguém com o seu rosto. Irei ouvi-lo civilizadamente se responder minhas perguntas. - Sugeri.
- Lembra da história que lhe contei, sobre os antigos donos da casa?
- Sim. - Falei, uma triste história de traição, o homem tinha saído em viagem deixando sua esposa com os empregados, mas eles acabaram traindo-os e roubando a casa, por fim deixaram uma lamparina cair na fuga e a mulher acabou morta.
- O homem odioso que vivia naquela casa era um Lican. Quando soube da morte de sua amada, ele perdeu a razão, caçou os empregados até encontra-los vivendo bem, tinham vendido os espólios do roubo, firmado uma vila, atraído mais pessoas para sua comunidade. - Revelou, narrando sua historia enquanto fitava o fogo crepitando na lareira. - Ele capturou um deles e obteve sua confissão, mas para ele não bastou, mesmo que soubesse o verdadeiro culpado um plano cruel já havia formado em sua mente e por três dias ele transfigurou-se em lobo e moveu ogros e o que mais encontrasse em direção a vila, no quarto dia, ele se mostrou revelando-se com um único pedido, 'dei-me uma de suas amadas e eu os darei proteção', doentiamente ele havia pensado, 'se a tiraram de mim, então tirarei deles todas as suas', o plano funcionou por alguns anos. Os homens estavam desesperados, o medo fazia deles frágeis. Só que com a medida que o tempo passava os sacrifícios mudavam e os homens não lamentavam mais, pois mandavam suas garotas criadas para aquele fim.
- E o que ele fazia com as garotas? - Perguntei assombrada. Como eu não tinha me dado conta? ...e fugiram para trás da montanha, para Sweney Pines. Esse era o crime pelo qual respondíamos.
- Roubava seus corações, para um plano mais vil, uma outra vingança pessoal. - Disse, olhando para mim em busca de alguma reação, eu permanecia assombrada por finalmente ter a verdade. - Ele continuou, construindo um clã de selvagens para ir atrás do verdadeiro culpado, aquele quem tinha dado a ordem para que partisse primeiro, aquele a quem ele devia se reportar e é a esse alguém que hoje eu destino o meu próprio plano. O homem como falei, o Mestre Lican anterior a mim foi um tolo, perdeu-se em seu próprio plano, enlouquecido.
- E porque você quer derrotar o mesmo homem? - Perguntei.
- Porque eu fiz uma promessa. - Falou distante.
Não precisei olha-lo para saber que falava a verdade. Eu praguejei em bom e alto tom enquanto a minha mente trabalhava. Mesmo que essa fosse a verdade, mesmo que nossos ancestrais tivessem cometido tal crime, não era justo que ainda pagássemos o preço, esse preço.
- Por que não parou com os sacrifícios? - Perguntei, essa era a razão, pela qual eu não podia compactuar com a sua história. Mesmo que o antigo mestre fosse louco, ele havia tido a chance de parar essa atrocidade e não o fez.
- Você não entende como clãs selvagens funcionam, os sacrifícios eram uma forma de manter o poder, causar medo e controle e de continuar punindo este lugar.
- Diz que eu não entendo os clãs selvagens, tudo bem. - Falei, sentindo o ódio recobrir minha pele friamente. - Pois esta é a grande verdade, você não entende os humanos, Lobo. Tudo o que puniu foi a vida de dezenas de garotas. Enquanto os homens se banqueteavam seguros e com mulheres a se dispor a qualquer tipo de casamento apenas para fugir, nós tínhamos que escolher entre dar nossas vidas a um casamento forçado ou a você. - Senti minha voz falhar, quando memórias que eu mantinha com tanto afinco presas em minha caixinha começaram a fugir. - Eu tive que fazer essa escolha, acordava temendo por isso, tramando uma forma de escapar, escutando as outras pessoas dizerem que eu deveria me voluntariar a ser um sacrifício, pois não tinha mais nada que me prendesse aqui!
Caminhei até ele, cruzando o único cômodo em segundos, pisando furiosamente nas sombras lançadas pelo entardecer, eu queria soca-lo, arrancar sua carne dos ossos e depois quebra-los. Queria até mesmo morde-lo e sentir o seu sangue gotejar em minha boca. Um desejo obscuro que se desprendia da minha caixinha. Tome-o, tome-o, exigiu. Eu a ignorei, fechando meu punho para acertar o rosto do Lobo, senti minha visão ficar nublada com lágrimas que eu não derrubaria na frente dele.
Ele me deixou acerta-lo. Quantas vezes precisei. Então envolveu seus braços ao meu redor, pressionando meu rosto contra sua camisa.
Dando a privacidade que eu tanto precisava para chorar por alguns minutos, até que a porta fosse repentinamente aberta por Kiros, com seu rifle de caça.
- Tem três segundos para solta-la. - Falou, engatilhando a arma.