Os raios do sol já adentravam os aposentos da rainha naquele avançado horário da manhã. Vez ou outra as cortinas balançavam pelas sutis correntes de ar e o trote de cavalos foi o responsável por quebrar o sono profundo da monarca que dormira longamente durante a última noite.
Quando finalmente abriu os olhos, Eline observou o ambiente ao redor e acabou por recordar o que acontecera. Havia levado um homem para seu quarto, mas ele não estava mais lá. A grande cama estava quente, de fato mais alguém a havia aquecido com o calor de seu corpo. As grossas cobertas de pele envolviam todo o seu corpo seminu, e parte de seu vestido dourado permanecia imutável em si, da mesma forma na qual se lembrava.
Ela se levantou e esfregou os olhos, pegou um pequeno espelho numa mesinha ao lado da cama e percebeu que notáveis olheiras se destacavam em sua face. Retirou o volumoso vestido ficando apenas com a roupa de baixo, pareceu não se importar se alguém ousaria entrar pela porta sem permissão. Caminhou até a ornamentada mesa no canto do cômodo e encheu uma taça com o resto do vinho de uma jarra de metal. Virou-se para a sacada e bebeu enquanto observava a vista da cidade que já mostrava-se muito movimentada logo pela manhã.
Por certo tempo, Eline permaneceu afundada em suas reflexões. Vestida apenas com a roupa de baixo e segurando uma taça de vinho, a mulher ficou parada entre cortinas no início da sacada e concentrada em observar a movimentação das pessoas. Foi capaz de escutar assovios que os senhores trocavam entre si, também pôde discernir o som dos martelos moldando o aço nas bigornas. Ouviu o cantar dos passarinhos nas telhas da torre do castelo, mas esse era sem sombra de dúvidas o barulho que mais a incomodava.
Foi com um único empurrão que a porta do cômodo foi aberta e uma mulher entrou sem anunciar formalmente sua chegada. O susto de Eline a levou a quase cuspir o vinho que estava em sua boca.
— Mas que importunação... — Antes de terminar sua indignação, ela viu de quem se tratava o infortúnio.
— Que noite... prazerosa!
Uma mulher de vestido escarlate entrou sem a preocupação de dar as devidas saudações à monarca. Em passos tortuosos e uma alegria explícita, ela se jogou na enorme cama e desabou em fartas risadas.
— Vejo que a noite foi proveitosa para você. — A rainha viu-se obrigada a ir em direção à porta para fechá-la.
— Ahhh, ouso dizer que foi muito melhor do que eu esperava. Muito melhor...
Orsolis se recompôs dos risos exagerados e sentou-se no colchão, uma mecha de seu cabelo castanho caiu na frente de seu rosto. A irmã da rainha possuía traços muito semelhantes às da monarca, porém carregava algumas evidências por ser mais velha. O tom de pele era o mesmo, o brilho de seus fios era idêntico, até mesmo a elegância de seu caminhar poderia ser indiscernível a certa distância. Seu gosto pelo vermelho vivo era gritante, fazia questão de transmitir tal preferência através de suas vestes, calçados e jóias. Quase tudo naquela mulher parecia ter a intenção de atrair olhares para si.
— Onde esteve durante toda a noite? — Eline perguntou. — Não a vi na Casa das Canções, nem mesmo em alguns corredores.
— Lamento se não pude comparecer no momento dos cumprimentos, eu estava na companhia de um governante de vilarejo.
— Mmm, isso me parece ser mais respeitável do que eu imaginei inicialmente.
— E o que imaginou? Que eu estava nos braços de um cozinheiro?
— Essa hipótese não me parece ser tão absurda assim, eu a conheço.
— Bom, se o cozinheiro possuísse alguns bens de valor considerável... não, isso seria cruel. Desde que tenha um corpo esbelto e que não cheire à gordura de porco, já é uma hipótese a ser considerada.
Eline deu uma leve risada. Ela encheu uma taça de vinho e a entregou nas mãos de Orsolis que ainda estava deitada de bruços na cama. A mulher, que costumava gabar-se de possuir um excelente olfato, aproximou o nariz no colchão e passou a mão pelos cobertores de pele.
— Hmm, parece que você foi rápida em mandar embora o invejado homem que estava aqui — disse ela.
— Antes fosse eu que o tivesse mandado embora, pelo menos assim teria sentido alguma satisfação nessa noite de merda.
A rainha tomou uma taça para si e voltou para o seu lugar entre as cortinas da sacada.
— Mas que ódio é esse, Line?
— Não me chame assim agora, não estou com humor para demonstração de afeto.
— Eu já estou muito acostumada com esse seu temperamento difícil, mas eu esperava que uma noite de liberdade dos deveres pudesse lhe deixar mais feliz.
— Muito pelo contrário, minha irmã. A noite de celebração me trouxe apensas revolta.
— Quem foi o homem que a deixou assim? Diga-me o nome e vou ordenar que revirem a cidade até encontrá-lo e o jogarem nos calabouços.
— Nem se ele estivesse aqui agora você teria autorização para fazer isso. É um dos quatro participantes do desafio.
— Mesmo é? Pois estou satisfeita e decepcionada com sua atitude. Satisfeita porque aqueles quatro certamente eram os mais desejados naquele baile. Mas decepcionada porque o homem te magoou e não podemos fazer nada.
— Ah, pare de falar bobagens.
— Posso saber o que ele fez para que a irritasse tanto?
— Na verdade foi o que ele deixou de fazer. — Orsolis franziu o cenho após ouvir tal coisa. — O desgraçado não me quis em seus braços. Eu o trouxe até aqui, ofereci vinho e ele me recusou.
— Mmm, que inusitado. Será que há algum motivo para isso ter acontecido?
— Ele é um cavaleiro.
— Já entendi. Aquela história de honra e justiça que eles repetem e repetem. Céus, eu não aguento ouvir lições de moralidade.
— Mas o que me preocupa é o fato de ele ter saído daqui sóbrio.
— Não sabia que homens bêbados eram de seu agrado, Line. Por acaso a bebida os deixam mais vulneráveis aos seus encantos? — Ela a lançou uma sutil piscadela.
— Não estou falando disso, mulher! Não há nada nessa vida que você pense além de homens?!
— Mas é claro que há, jóias têm me agradado bastante ultimamente, principalmente os rubis. — Após ouvir tais palavras de deboche, Eline bufou e virou-se novamente para a vista da cidade. — Mas o que há de tão ruim nesse caso?
— Eu estava bêbada! — Ela tornou a virar-se repentinamente para a irmã. — Falei mais do que devia. Falei coisas sobre a corte que se forem espalhadas podem chegar aos ouvidos de inimigos.
Orsolis deixou sua taça sob a mesinha e sentou-se na cama, assumiu uma feição de preocupação.
— Que tipo de coisas, Eline?
— Assuntos monetários e algumas relações com os governantes de vilarejos, nossos aliados e os que potencialmente podem nos causar problemas. Assuntos que podem gerar complicações se chegarem em Vordia ou Gandalar.
— Sua maldita estúpida — A mulher agora assumiu um tom de desprezo em sua voz. Ela colocou-se de pé e começou a caminhar ao redor da cama. — Precisa ir negociar com esse homem.
— Há! Não dá para comprar o silêncio de um cavaleiro, eles têm "honra" demais para aceitarem dinheiro em troca de manterem suas bocas caladas.
— Pois então reze aos Seres Aliais para que esse cavaleiro morra na Arena de Brolom. Quatro desafiantes, seria muito azar se justamente ele vencesse.
— Isso não é o pior. O pior é o que ele pretende fazer se chegar a assumir o posto de Comandante do Exército. Iniciar uma guerra contra Vordia sem o consentimento da coroa.
— Mas isso seria traição.
— Não se eles derrotarem Vordia — Eline salientou.
— É um plano ousado.
— Tenho certeza que essa ideia não surgiu da cabeça vazia dele. Aquela desgraçada da Fenuella deve ter simpatizado com sua causa.
— Você ainda insiste nesse ódio contra a menina, Eline? Por que minha doce sobrinha teria interesse em se aliar à causa deles?
— Para vingar a morte da mamãezinha, isso é óbvio. E ela não é sua sobrinha, ponha isso na sua cabeça!
— Sempre vou tratá-la como se fosse da nossa família. A companhia dela é muito mais agradável do que a sua, querida irmã.
— Ahhh, cale-se, sua maldita invejosa. Vá embora daqui! Já estou farta de olhar para você.
Após as ordenanças da rainha, Orsolis ajeitou seu vestido e enfim virou-se para a porta.
— Seja lá o que você for fazer, espero que opte por aquilo que venha beneficiar todas nós, como sempre foi... Ah, você sabe do que eu estou falando. Posso levar o resto do vinho?
— Leve! Até esse vinho parece estar péssimo hoje. — E tornou a observar a cidade pela sacada, mesmo que isso não fosse lhe trazer nenhuma paz.