Foi o gosto, e não as vozes, que primeiro despertou meus sentidos. Metálico e doce, escorrendo lentamente, uma umidade reconfortante atrás da minha cabeça.
Ar, minha mente lembrou desesperadamente, precisava de ar, mas eu o tinha, tragava desesperadamente entre meus lábios. Não havia dedos em meu pescoço, não havia pés suspensos.
Estava no chão, sem noção de tempo, sem noção de quem era o sangue escorrendo. Somente a dor percorrendo todo meu corpo, lacerações e contusões. Meu corpo era pura dor, como se algo estivesse fora do lugar ou não pertencesse ao conjunto dos meus ossos, carne e pele.
A consciência tinha as despertado e havia esse algo mais, aquela outra coisa que eu não sabia o que era...magia, poder ou Dominância. Palavras guturais jogadas no vento. E entre elas, em um sussurro duas eram forçadas repetitivamente: Levanta, Aysha. Levanta. Tentei me mover, tentei reconfortar aquela voz, porque eu não podia dar o que pedia, meu corpo estava destruído, minha consciência por um fio de se partir e não haveria outra chance.
Céus, o sangue era meu, é claro.
Sem descanso para os covardes, zombou a caixinha, mas até a sua voz era fraca em consideração as demais. Tentei concentrar o restante da minha atenção nelas, mas fui parada, erguida por mãos pesadas, empurrada e ajoelhada na frente do Lobo por dois outros Licans que sustentavam meu corpo segurando meus braços.
- Ela matou a Dímios. - Rosnou um deles, seus dedos apertavam furiosamente minha pele lançando mais um pouco de dor no turbilhão que eu sentia.
- Furou o desafio e trapaceou com bruxaria. - Disse o outro, com uma voz grave. - Condene-a Mestre.
Tentei erguer meu rosto para ver o Lobo, protestar, mas a dor me deteve de forma que tudo que vi foram o indicio de suas botas cruzadas.
- Fale, porque matou quem não era seu oponente? Porque desistiu do desafio? Mulher tola e estupida. - Disse. Um bloco de gelo teria tido mais simpatia na voz.
- Kay... - Sussurrei, tentando formular uma resposta coerente.
Houve uma pausa, um momento de silêncio antes que ele o chamasse e nenhuma resposta. Lutei contra a dor, contra a exaustão e a provável tentativa da minha mente em me levar para a inconsciência novamente.
- Ângela o pegou e ameaçou mata-lo, caso eu ganhasse. - Consegui dizer.
- Mentirosa! Bruxa mentirosa! - Disparou o Lican que segurava meu braço esquerdo, se os seus dedos quase perfurando minha pele já não fossem o suficiente, ele esticou meu braço para trás, a tentativa de desloca-lo recolocou o osso com mais seguridade da qual eu tinha feito no lugar.
- Basta! - Disparou o Lobo. - Encontrem Kaydor! Todos vocês, saiam agora e procurem Kaydor. Procure-o Tarduen.
Tarduen, que aparentemente era o Lican a minha esquerda soltou meu braço, o movimento foi o suficiente para que meu corpo pende-se em direção ao chão. Pelo visto, Ângela tinha seus apoiadores. O pensamento me fez virar a cabeça para onde seu corpo deveria estar, mas o que prendeu meus olhos foi o corpo de Turvan no chão, o Lican que minutos atrás estava com os dedos em meu pescoço encontrava-se inconsciente no chão.
Mas que porr...
De nada, escutei a voz da caixinha.
- O que fez? Maldições o que fez? - Questionei, lembrando-me da sensação incomoda em meus ossos, do gosto em minha boca.
Bruxa, os licans haviam falado, porque não havia nenhuma maneira de eu ter me livrado de Turvan, sabia disso, tinha aceitado minha derrota no momento que mirei em Ângela.
Não seja ingrata, reclamou.
E eu não queria ser, sabia que estava viva por seja lá o que tivesse feito, no entanto, sabia como funcionava, havia um preço, sempre havia um preço. Um desespero sem medidas tomou conta de mim.
- Uma moeda pelos seus pensamentos. - Escutei a voz do Lobo quando todos saíram a contragosto, havia um tom suave bem diferente de minutos atrás. E com a mesma suavidade eu respondi.
- Vai se foder.
- Fiquei profundamente insultado. - Disse, escutei o som de algo sendo rasgado e levantei meus olhos para onde ele deveria estar.
Fui surpreendida por ver que ele tinha descido do seu trono, estava agachado a minha frente, havia tirado sua camisa e agora a rasgava em tiras.
- Sua garota teimosa, por que não me contou que Ângela estava a ameaçando? - Falou, enrolando o tecido para depois pressiona-lo atrás da minha cabeça.
- Isso dói. - Reclamei.
- Ótimo, assim vai lembrar de pedir minha ajuda quando necessário. Quantas vezes preciso falar, não me será útil morta. - Disse, a cadência atípica em sua voz estava começando a me assustar.
Tentei mover minha cabeça para olhar Turvan novamente, mas ele a manteve no lugar.
- O que aconteceu? - Perguntei. - Não lembro do final da luta. Lobo, o que aconteceu? - Insisti.
- Isso minha querida Aysha é você quem precisa dizer. Retirou a Dominância de Turvan, antes mesmo que eu pudesse interferir. - Proclamou.
- Mentiroso, você ia me deixar morrer. - Rebati magoada, mas o que eu deveria esperar dele? As vezes que escolheu me ajudar tinha sido apenas para o seu beneficio.
- Possivelmente. Não há honra em um desafio onde os outros lutam por você. - Falou e com essas palavras me afastei dele, sentando pateticamente no chão.
- Vai se fuder de novo, estou cansada disso e qual a maldita honra em morrer? Não há nenhuma. - Falei. Encolhendo-me quando outra onda de dor inundou meu corpo, a sensação estrangeira de que havia algo a mais comigo se tornou mais forte. Tentei concentrar minha mente na analise dos últimos minutos.
Ele é nosso, é o preço. A caixinha bradou.
Vai nós rasgar em pedaços se não devolvermos. Refutei.
Dando forma aquela sensação, imaginei uma sombra, como tinha visto em outra ocasião cercando o lobo, se movendo junto a ele. Imaginei uma forma lupina grande e feroz rosnando para mim e por um momento foi o que vi, um fantasma ou cerne, algo que em outro momento teria chamado de alma.
Com curiosidade ergui a mão em direção a forma brumosa, sua hostilidade inicial dando lugar a uma subserviência amigável. Aos poucos senti que as dores haviam se tornado apenas uma lembrança e eu me vi chegando cada vez mais perto daquela imagem selvagem, quando meus dedos finalmente o tocaram senti sua agonia, a dor de uma separação imperdoável e o medo de ser deixado sozinho.
- Retorne. - Proclamei, sentido um poder primitivo inundar aquelas palavras. Sem demora, aquela forma caminhou para perto de Turvan e desapareceu.
Totalmente tremula traguei o ar. A dor dos meus ferimentos havia desaparecido por completo, como que em algum momento eu tivesse roubado a cura milagrosa dos Licans para mim.
Com essa descoberta voltei meus olhos para o Lobo, rebatendo sua expressão de contentamento com um olhar frio.
Sem dizer uma palavra eu me levantei e andei até o corpo de Ângela, arrancando a adaga de prata que nenhum Lican tinha ousado encostar, então voltei a caminhar até o Lobo, enfrentando seu olhar de interesse. Ele havia ficado em pé no meio tempo que fiz meu pequeno passeio.
- Pense bem no que pretende fazer, Aysha. - Disse, o leve roçar de sua magia acertou minha nuca, um aviso. Eu o ignorei, assim como ignorei o olhar confiante em seus olhos.
- Sou uma mulher de palavra Lobo, deveria ter aceitado minha proposta quando era tempo. - Falei, recordando-me muito bem de minhas palavras no primeiro desafio que tinha me posto 'quer saber quem sou? sou a maldita garota humana que vai dar cabo de cada Lican desse lugar se continuar a me provocar'. - Essa sua confiança exacerbada é tão irritante. - Disse, parando a sua frente, ele ainda segurava o tecido que tinha usado para estancar o sangramento em minha cabeça.
- Este é o ultimo sangue que vai arrancar de mim. - Falei pausadamente, tomando cuidado para deixar minha voz neutra.
- Não me culpe pelas atitudes impulsivas que toma, senhorita Nowak. - Disse, largando o tecido, que pousou confortavelmente no chão empoeirado, detive meus olhos sobre aquilo por algum tempo.
Ele sabia, maldições ele sabia o que eu queria fazer naquele momento, com mais seguridade apertei a adaga em minha mão e fechei os olhos, concentrando-me nas palavras que diria em seguida.
- Você me machucou pela ultima vez. - Falei, então levantei aquela adaga e o cortei no ponto exato de onde havia o ferido pela primeira vez, no meio da floresta que cercava o Limite. Não pude abrir os olhos até sentir seu sangue gotejar em minha mão.
Covardemente dei minhas costas para ele, o corte não passaria de uma linha rasa em sua pele depois de algum tempo, mas aquela marca nunca sumiria. Arrisquei um passo em direção a porta.
- Acredito que pensa que finalmente encontrou sua coragem, Aysha. - Falou rispidamente. - Então darei algum tempo para que tente escapar sem consequências do caminho que escolheu trilhar.
Continuei caminhando, passando sobre o corpo de Turvan, depois sobre o corpo de Ângela.
- Não pode fugir para sempre, senhorita Nowak. - Disse por fim.
Eu parei, olhando para trás uma única vez.
- Muito pelo contrario, Raymond. - Fiz questão de pronunciar seu nome. - Não estou fugindo, apenas cansei disso, assim como de seus jogos e ocultações, você sempre me tratou como se me possuísse. Mas eis a verdade, você não me possui e sempre soube disso, pois esse é o motivo que precisa de mim. Nenhum de vocês pode me controlar. Você sempre fez de tudo para ocultar isso de mim, mas precisava que eu descobrisse essas habilidades para seu plano. Seu erro foi me tratar dessa forma, te dei a opção de negociar, mas você preferiu me subjugar pela força.
Sorri. Verdadeiramente pela primeira vez em muito tempo.
- Eu te agradeço por isso. - Falei ainda mantendo meu sorriso. - Você fez com que eu descobrisse meu próprio poder.
- Não sou o vilão, Aysha. Você não conhece o mundo lá fora. - Falou.
- Então, já passou da hora de descobrir. - Falei, voltando a caminhar. - Adeus Raymond Mondavarius, mande seus lobos atrás de mim e eu os mandarei de volta em pedaços.
***
N.A: Desculpem, não tenho nenhuma justificativa boa o suficiente para o meu sumiço. É isso. Agradeço por continuarem a ler, mesmo depois de todo esse tempo.