A Pretensão dos Cavaleiros

By fbcioprudente

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O humilde Vilarejo Erban do Reino de Asmabel passou pela mais produtiva das primaveras e a adolescente Eurene... More

| APRESENTAÇÃO |
- Mais Um Belo Dia em Asmabel -
- Tal Mãe Tal Filha -
- O Confeiteiro Enfermo e Seus Desejos -
- O Debate dos Confeiteiros -
- Pães, Bolos e Tortas -
- As Rivalidades dos Nobres -
- A Coroa e o Cajado -
- O Respeitado Rei de Vordia -
- O Conto do Primeiro Cavaleiro -
- O Massacre do Vilarejo -
- Um Confortável Moinho -
- O Filho Esquisito e o Filho Estúpido -
- Um Trabalho Muito Honesto -
- Os Quatro Cavaleiros Irmãos -
- Hora de Uma Nova História -
| COMENTÁRIOS |
- A Incontestável Crença Alial -
- Uma Proposta Tentadora -
- As Crianças Sem Rumo -
- A Trapaça dos Competidores -
- Um Norsel, Um Trenó e Um Punhal -
- Harmonia Mágica e Natural -
- A Fabulosa Cidade de Asmabel -
- O Chefe da Ordem dos Ejions -
- Uma Fagulha de Esperança -
- Desavenças na Estalagem -
- Solidariedade e Consequências -
- O Cavalo e o Bispo -
- As Melhores Intenções -
- A Casa da Justiça -
- A Grandiosa Cidade de Vordia -
- A Oportunidade Perfeita -
| COMENTÁRIOS |
- Florescer de Sentimentos -
- O Bondoso Rei de Asmabel -
- A Princesa dos Cervos -
- O Próximo Plano -
- A Fúria do Príncipe -
- A Revolta dos Alunos -
- O Intenso Fogo Branco -
- O Jardim das Rosas Brancas -
- Um Menino Frustrado -
- A Ponte da Marcha -
- Muitas Roupas Para a Festa -
- Um Banquete Deslumbrante -
- Presentes da Primavera -
- A Princesa e o Plebeu -
- O Príncipe e a Donzela -
- A Rainha e o Cavaleiro -
- Uma Péssima Manhã -
- A Aprendiz e o Mestre -
- O Verdadeiro Poder -
- O Primeiro e Segundo Teste -
- O Terceiro e Quarto Teste -
- Um Treinamento Intensivo -
- A Arena de Brolom -
- Os Guerreiros e o Monstro -
| COMENTÁRIOS |
- Um Último Juramento -
- A Honra da Espada -
- A Sagrada Árvore Alial -
- O Quinto Teste -
- Um Comandante Imprestável -
- As Exigências do Rei -
- Uma Batalha Feroz -
- Derrotas, Vitórias e Mais Derrotas -
- Um Pai, Dois Filhos e a Madrasta -
- Um Ressentimento Profundo -
- As Baixas da Batalha -
- O Duvidoso Destino do Reino -
- Juramento de Lealdade -
- O Filho Indeciso e o Filho Inútil -
- Um Beijo de Despedida -
- A Partida da Cidade de Asmabel -
- O Recomeço dos Ejions -
- Os Andors Selecionados -
- O Jantar Real -
- Uma Coroação Ilegítima -
| AGRADECIMENTOS |

- O Mendigo Caridoso -

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By fbcioprudente

— Boa tarde, queiram desculpar a minha intromissão, mas é que eu não pude deixar de ouvir suas palavras e, pelo que parece, está havendo uma contenda aqui por causa de um cavalo? 

Eurene e Devin deram um passo para o lado pela súbita aparição do estranho sujeito entre eles.

— Isso não é da sua conta, mendigo — respondeu o Senhor Ermundo com uma feição séria. 

— Mmm... mendigo não é um termo muito gentil para se denominar alguém. É meio rude, se é que me entende. 

— O que é que você quer? Esmola? Se continuar atrapalhando meus negócios eu direi aos guardas que o arrastem para fora desse vilarejo!

O pedinte abaixou a cabeça e deu um leve suspiro seguido de um sorriso. Segurando seu bastão ele deu alguns passos para ficar à poucos centímetros de Ermundo que manteve sua postura firme. O sujeito olhou nos olhos de seu desafiante e de forma bastante audível ordenou: 

— Eu quero que você deixe essas crianças em paz. Você vai esquecer que conversou com elas, vai dar meia volta e seguirá até o curral dos vorgos onde comerá todo o esterco que puder encontrar. 

Assim que proferiu a última palavra, as pupilas de Ermundo mudaram para um tom esbranquiçado e este piscou os olhos para recuperar os sentidos. 

— Sim, crianças! Podem ficar com o cavalo. Eu não os incomodarei mais. Agora se me derem licença, vou até o curral dos vorgos comer um pouco de esterco. Tenham um bom fim de tarde!

Sendo assim, o sorridente Senhor Ermundo afastou-se da presença dos três e seguiu seu caminho em direção ao pasto dos vorgos. Os dois irmãos seguiram perplexos os passos do homem sem compreender absolutamente nada do que acabara de acontecer. 

— Há! Você viu aquilo?! Esse com certeza foi o meu melhor controle mental! 

Filo ergueu-se na perna de seu amigo para compartilhar de sua alegria. 

— Está bem, o que você fez com aquele homem? — perguntou Eurene observando o contente homem em sua frente. 

— Nada que ele não mereça. É um charlatão que se aproveita da amizade do governante para pegar as moedas dos estrangeiros. Obrigando as pessoas a lhe entregarem seus cavalos... é um aproveitador. Ah, ainda não me apresentei, que falta de educação de minha parte. Prazer, me chamo Idarcio, e este aqui é o meu melhor amigo Filo. 

Eurene relutou em apertar a mão do estranho sujeito. Não sabia se direcionava atenção à ele ou à exótica criatura no chão que olhava para ela. 

— Me chamo Eurene. E este é o meu irmão mais novo Devin. 

— Ah, percebe-se que ele é bem mais novo que você. 

— Que bicho é esse? — O menino mostrou-se enormemente admirado em ver tal criatura. 

— O Filo? Ele é um flito. Criaturinhas muito simpáticas e adoráveis, podem ser um pouco irritantes de vez em quando mas nada que um pouco de comida não dê jeito. Nunca tinha visto um antes? Estranho pois pelo que sei eles estão em todas as regiões de Asmabel. E vocês são asmabelianos pelo o que eu vejo. Ou estou enganado? 

Eurene levou alguns segundos para perceber que estava sendo questionada sobre algo. Sua curiosidade foi notavelmente despertada pelo novo animal que acabara de conhecer. 

— Sim, nós somos do Vilarejo Erban. 

— Ah, sim. Nunca ouvi falar. Mas tenho certeza que deve ser um lugar muito agradável. 

— É, ele costumava ser. 

Um silêncio pairou sobre os três que olhavam um para o outro. 

— Mas me digam, há algum motivo que os trouxeram até aqui? Aliás, não pude deixar de notar que vocês estão sozinhos. Por acaso não estão com seus pais ou algum parente? 

— Han... nós estamos sozinhos e procuramos algum lugar para passar a noite. Por acaso você sabe se tem algum...

— Ah, que bom que perguntou! — adiantou-se Idarcio. — Este é o maior vilarejo de Asmabel pelo que dizem, há duas hospedarias muito frequentadas por estrangeiros como vocês. Não sei dizer se são confortáveis, afinal eu nunca passei uma noite em nenhuma delas. Mas já lhes digo que será preciso umas boas moedas para pagarem pelos quartos. 

— Mas nós não temos...

— Eu já sabia que não tinham moedas desde que vocês estavam discutindo com o Ermundo. 

— Se sabia que não podemos pagar então por que nos disse sobre as hospedarias? 

— Eu não disse, você foi quem me perguntou. 

Eurene semicerrou os olhos por incompreensão. 

— Onde você dorme? — Devin quebrou o silêncio. 

— Ora, meu amiguinho, eu não tenho moradia. Durmo onde me for mais confortável dormir. 

— Então você é mesmo um mendigo? — perguntou Eurene rispidamente. 

— Eu prefiro a palavra andarilho. — Idarcio forçou um sorriso. — Soa menos insignificante. 

— Podemos dormir com você esta noite? 

O pedinte espantou-se pela inocente pergunta do menino.

— Eu tenho certeza que a companhia de vocês dois seria muito agradável, mas é que eu e o Filo já estamos de saída. Vamos deixar esse vilarejo no início da madrugada. 

— E para onde vocês vão? 

— Você gosta de fazer perguntas, hein? Como eu disse, sou um andarilho, viajo para onde me parecer mais conveniente viajar. 

Os irmãos se entreolharam mais uma vez. Eurene observou ao redor pensando no que seria mais adequado a se fazer no momento. 

— Olha, eu não sei o que os trouxeram até aqui, mas se vocês estão procurando um lugar para ficar permanentemente eu vos sugiro irem para a cidade do reino. Lá vocês podem vender o cavalo e alugar um quarto em uma hospedaria até conseguirem um trabalho para poderem comprar comida todos os dias. 

— É uma ótima ideia. — Eurene virou-se para ele. — Mas acontece que nós não sabemos como chegar lá. 

— Ah, mas isso não será um problema, basta seguirem pelo norte. Vocês atravessarão longas pradarias, alguns vales que encerram a trilha do Rio Florin e por isso vocês não deverão mais seguí-lo. Pode acontecer de avistarem as árvores da Floresta Amarela mas eu aconselho que não avancem por ela porque é muito perigoso. Se não tiverem interrupções chegarão lá em cinco dias. 

Nem Eurene nem Devin souberam o que responder. Apenas permaneceram olhando para o homem falante e seu animal inquieto. 

— Você poderia nos levar até lá? — perguntou Devin.

— Eu? Ah, não, meu amiguinho. Como eu disse, não estou indo para lá. Viajo para onde me parecer mais conveniente e no atual momento a Cidade Rosada não tem nada a me oferecer. 

— Mas nós não temos para onde ir. Se ficarmos aqui teremos que dormir nessas ruas. Faz três dias que passamos frio dormindo debaixo de árvores. 

— Mas dormir debaixo de árvores nunca me pareceu tão ruim assim. Acredito que em todos os anos de minhas andanças, árvores têm sido minhas melhores companhias nas noites de sono. Quero dizer, árvores e você, Filo. 

O animalzinho inclinou a cabeça e levantou as orelhas. 

— Você não entende? Faz três dias que estamos comendo frutas que encontramos por aí, estamos famintos. Somos estranhos aqui, vai demorar muito até alguém aceitar nos dar um trabalho. A gente precisa chegar até a cidade do reino. 

— Eu sei que precisam, por isso eu vos aconselhei e lhes indiquei o caminho de como irem para lá. Não há porquê se alarmar. 

— Então nos leve até lá! 

— Sinto muito, crianças, mas viajar para a Cidade de Asmabel não está nos meus planos. Vamos, Filo, temos que arranjar mais algumas coisas para irmos embora daqui. 

Com um rápido sorriso Idarcio deu as costas para os dois irmãos e afastou-se em passos frenéticos. Eurene o seguiu com seus olhos e somente após alguns segundos percebeu que ele levava consigo um bastão idêntico ao do falecido andor Malfen do Vilarejo Erban. 

— Ei! Você é um andor conselheiro, não é? 

— Se você está se referindo àqueles bajuladores de nobres, então eu não sou. Sou apenas um andor andarilho. Foi muito bom conhecer vocês, crianças. Tenham uma boa noite e nos vemos por aí.

A noite caiu e com ela veio os ventos gélidos. Os moradores do Vilarejo Cimonell já haviam se retirado para suas moradias encerrando assim mais um movimentado dia de trabalho. Os vendedores ambulantes desmontaram suas bancas e recolheram-se para suas carruagens a fim de se prepararem para o dia seguinte. 

Tudo estava calmo, as casas mantinham seus donos ocupados preparando refeições e contando as estórias do dia. E esse, era o momento oportuno para se conseguir comida. 

Filo escalou a parede da cozinha com admirável maestria, seus movimentos eram silenciosos e sua presença quase invisível. Uma senhora mexia sua panela com uma colher de pau estando de costas para a janela. Foi nessa brecha que o astuto animal infiltrou-se na cozinha, subiu numa mesa, pegou um salame e saiu correndo com ele janela a fora. O maior barulho que ele fez em sua ação furtiva foi o de suas macias patas pisando no chão, o que por si só já era inaudível. Dessa maneira, Filo tornava-se o melhor ladrão que havia nas proximidades. Correndo com a comida na boca, o astuto animal levou o salame até seu dono que o aguardava num estreito vão de uma casa no fim da rua. 

Desde que chegou no vilarejo alguns dias atrás, Idarcio passava suas noites nos becos que dividiam as casas pelas ruas. O local não fornecia nenhum conforto, mas com alguns objetos e algumas artimanhas ele conseguia transformar um beco frio em um aquecido cômodo para dormir. 

O andor terminava de acender uma esfera de luz branca que ele projetou através de sua mágica. Fincou um galho ereto no chão terroso e fez com que a esfera pairasse na ponta do galho. Com a iluminação estabelecida, Idarcio ajeitou sua longa capa marrom e sentou-se num tronco deitado. Foi quando Filo chegou trazendo consigo um apetitoso salame. 

— Não acredito... desta vez você me surpreendeu, Filo! Eu esperava um pão ou um queijo... mas um salame inteiro?! — O andor pegou o alimento da boca de seu companheiro e acariciou sua cabeça peluda. Virou-se para o lado e puxou para perto de si um barril oculto nas sombras. — Vamos ver se encontramos alguma coisa interessante aqui dentro. 

Após destampá-lo e vasculhar seu interior, Idarcio retirou um enrolado de pano que mantinha unidades de algo macio. Ao descobrí-lo, revelou se tratar de dois grandes pães com cobertura de açúcar. O andor também pegou uma faca dentro do barril e com ela cortou algumas fatias do salame usando-as assim para rechear os pães. 

— Aqui está, meu astuto amigo. — Ele entregou o alimento pronto na boca de Filo que levantou-se nas patas traseiras para abocanhá-lo. — Mas segure sua fome por mais alguns instantes, acho que tenho alguma coisa para beber aqui. 

Vasculhando o barril ainda mais, retirou uma garrafa com metade de seu líquido, pegou uma pequena vasilha e despejou o suco para entregá-la ao companheiro que aguardava faminto. 

— Olhe que inesperado, eu peguei essa garrafa com um vendedor de frutas. Dá para acreditar que uma fruta tão insignificante como uma ameixa possa fazer uma bebida tão saborosa?! — A princípio o flito pareceu relutante em tomar a bebida escura na vasilha, farejou e olhou novamente para o dono. — Não gosta de suco de ameixa? Até que não é tão ruim. Tem um gosto meio amargo mas eu também senti a mesma coisa quando provei vinho pela primeira vez. Você se acostuma. 

Dito isso, o andor virou a garrafa na boca e bebeu um bom gole do suco. Entretanto, Filo hesitou em comer o pão com salame em sua frente, tampouco a bebida na vasilha. O pequeno animal virou sua cabeça para trás e permaneceu assim por quase um minuto. 

— Mas o que é que você tem? Nunca te vi demorar tanto assim para comer. O salame está cheirando mal? 

Filo olhou para seu amigo com um olhar que transmitia tristeza. Abaixou suas orelhas e virou-se novamente para a rua vazia atrás de si. Idarcio abandonou sua refeição e deu alguns passos para averiguar o que o flito tentava lhe dizer. Quando olhou para o outro lado da rua escura, viu três figuras diante da cerca de uma casa; um cavalo amarrado no pequeno portão e duas crianças sentadas juntas no chão. 

— Ah, não. Não me diga que está com pena daquelas crianças, Filo. — O animalzinho olhou para seu dono e tornou a virar sua atenção para o outro lado da rua. — Sim, eu sei que eles estão sozinhos! E sim, a noite está meio fria hoje. Mas o que você quer que eu faça? — Filo ignorou seu dono e permaneceu observando os jovens. — Ahhh, deixe essas crianças para lá. Nós temos que deixar esse vilarejo daqui algumas horas, lembra?

O animal tornou a ignorá-lo. 

— Você quer mesmo que eu os ajude, não é? — A reação de Filo foi imediata, virou-se para seu dono e ergueu as orelhas. — Está bem, seu animal teimoso. Mas isso vai atrapalhar nossos planos e a culpa será toda sua. 

Os irmãos permaneciam em completo silêncio sentados e escorados na cerca de uma casa. O dono da propriedade não os viu até então pois certamente já teria os expulsado dali. O cavalo bufava e esticava o pescoço ao máximo para conseguir pastar alguma grama no quintal além da cerca. Devin estava balançando com as mãos nos joelhos a fim de se distrair e sua irmã mostrava-se pensativa demais para querer conversar. 

— Ei, mana. 

— Que? — resmungou a menina. 

— Eu estava pensando no que aconteceu naquela noite. 

— Então é melhor que pare de pensar nessas coisas senão você nem vai conseguir dormir. 

— Mas eu não estou com sono. Quero conversar. 

— Mas eu não quero. Estou pensando no que nós vamos fazer para chegar na cidade do reino. 

— Então nós vamos mesmo para lá? 

— É claro que nós vamos. Se ficarmos aqui vai demorar uma eternidade até conseguirmos dinheiro para arranjar um lugar para morarmos. 

— Eu quero mesmo ir para lá. Não é legal? 

— O que é legal? 

— A gente queria tanto sair do vilarejo para conhecer outros lugares, e estamos aqui agora. 

— Passar frio durante a noite, comer frutas podres todos os dias e andar debaixo do sol não está sendo nada legal na minha opinião, Devin. 

— Olha — O menino apontou para o outro lado da rua. — Aquele é o moço que ajudou a gente, não é? 

Quando Eurene virou-se para ver quem estava se aproximando, Idarcio já estava à poucos centímetros diante deles sendo acompanhado de Filo que avançou para cheirar os dois. 

— Peço desculpas pela minha intromissão em seu momento de diálogo, crianças. — Idarcio apresentou-se com um belo sorriso e agachou-se diante deles. 

— O que você quer? — perguntou Eurene rispidamente. 

— Eu não quero nada. Na verdade eu nem queria estar aqui. Eu estava tendo uma ótima refeição e me preparava para iniciar mais uma viagem pela madrugada nas pradarias de Asmabel. Mas meu amigo Filo aqui atrapalhou os meus planos. 

— O que quer dizer? 

— Quero dizer que ele quer que eu ajude vocês. 

— Quem quer? 

— O Filo. Meu amigo. Esse animalzinho branco que está brincando com seu pequeno irmão. 

E de fato Devin divertia-se passando a mão no macio pelo da criaturinha que ergueu-se nas pernas do menino. 

— Então... você vai nos ajudar? 

— Exatamente. 

— E como você vai fazer isso? 

— Ora, de que outra forma eu poderia lhes ajudar? Eu vou ser o seu guia até a Cidade de Asmabel. Quero dizer, isso se vocês quiserem que eu seja. 

— Vai mesmo nos levar até lá? E quanto isso vai nos custar? Cinco moedas? Dez moedas?

— Em situações normais eu teria aproveitado essa pergunta para lhes tirar algum valor, isso se eu já não tivesse observado o sarcasmo em suas palavras, moça. 

— Eurene. Me chamo Eurene. 

— Muito prazer, Eurene. Me chamo Idarcio. E então? Posso ser seu guia? — O homem estendeu a mão para ela com um contente sorriso. 

Eurene esperava que o pedinte fosse de alguma forma mostrar-se um charlatão como o Senhor Ermundo mostrou-se. Mas aparentemente, lhe arrancar dinheiro não era o objetivo do sujeito até então. 

— Sim. Pode sim. 

— O Filo vai com a gente? — Devin quase chegou ao ponto de segurar o flito no colo por tamanha fascinação que sentia. 

— Mas é claro que sim. Eu não deixaria Filo para trás de forma alguma. Além do mais, ele arranjaria um jeito de me encontrar onde quer que eu estivesse. Não subestime o focinho dessas espertas criaturas, meu amigo. Bem, o que estamos esperando? Vamos logo! Temos muito caminho para percorrer. 

Idarcio levantou-se em um pulo e apanhou seu bastão para dar meia volta. 

— Ei! Para onde está indo? 

— Pegar tudo que levaremos nessa viagem, ora. Tem algumas coisas no meu barril que podem ser úteis como um bornal para levar comida, por exemplo. Também há dois cantis e se eu não me engano...

— Nós já vamos partir? Agora? — Eurene levantou-se sendo seguida pelo irmão. 

— Vocês querem esperar até o amanhecer? Isso nos atrasaria imensamente. 

— Mas não é muito perigoso viajar a noite? 

— Minha cara, eu já passei por essas terras umas três vezes. Além do mais, eu tenho um bastão alial bem aqui na minha mão. — Ele balançou o objeto para exibi-lo. — Transformarei em pó qualquer sujeito que tentar nos atrasar. Como podem ver, viajem comigo e sua segurança está garantida. 

— Andors podem fazer isso? Transformar pessoas em pó? O Malfen nunca falou nada sobre essas coisas. 

— Uma habilidade muito útil porém raramente usada. Mas eu já fiz isso um monte de vezes, podem acreditar. Agora chega de conversa e me ajudem a levar todas essas coisas para o estábulo daquele cretino do Ermundo. 

— Você tem um cavalo lá? 

— É claro que eu tenho. Por acaso achou que eu cheguei até aqui andando? Daqui ao vilarejo mais próximo deve levar uns trinta dias de viagem andando. 

— Nós levamos quatro dias do nosso vilarejo até aqui — disse Devin em voz alta. 

— Vão me dizer que percorreram todo o caminho andando? Aquele seu cavalo deve ter sofrido bem mais do que vocês durante a viagem, crianças. Carregar pessoas não é nada leve, eu imagino. 

— E quanto você vai ter que pagar para pegar seu cavalo de volta do estábulo? 

— Eu não vou pagar nada. Se o Ermundo tentar me impedir de pegar meu cavalo eu farei ele voltar àquele curral e comer o resto de esterco que houver lá. Mas eu duvido que ele perceba a minha presença naquele estábulo, deve estar com uma baita dor de barriga agora. Digo isso mas sem saber as consequências de se comer esterco, eu nunca vi alguém fazer isso. Mmm, acho que eu tenho aqui tudo o que vamos precisar. 

O andor vasculhou seu barril por completo até retirar um bornal escuro; o entregou na mão de Eurene que o observava. 

— Esse barril é seu? O que você guarda dentro dele? — perguntou Devin. 

— Ah, meu amiguinho, aqui eu guardo todas as coisas que preciso para manter o mínimo de conforto em minha... moradia? Acho que "beco" seria o mais adequado. — Ele sorriu ligeiramente para os dois. 

— Esse seu beco não me parece tão humilde para um mendigo — disse Eurene. — Tem até uma luz improvisada ali. 

— Oh, esqueci de apagar essa luz. Ora, você há de concordar que não se pode viver na escuridão? E por favor, não se refira a mim como um mendigo. Já lhe disse que essa palavra é desagradável. Oh, olhem o que eu achei aqui. 

Idarcio revelou ter encontrado um pano envolto de um conteúdo macio. Também tirou dois cantis de couro e uma cuia tampada. 

— Coloque estes pães aí dentro do bornal. Não vão continuar macios por muito tempo mas comida nunca deve ser rejeitada, não é mesmo? 

— Eu estou com fome — disse Devin. — Posso comer um? 

— Pode sim, meu caro Devin. É Devin mesmo, não é? Mas só há cinco pães. Não seria sábio você comer um inteiro agora antes de partirmos. — Idarcio esforçou-se em pedir ao menino da forma menos desanimadora possível. — Aqui nessa cuia tem pedaços de carne seca que porventura duram um bom tempo. Será muito útil durante a viagem. 

— E estes cantis? Estão vazios. 

— Vou enchê-los na correnteza do Rio Florin que passa perto daqui. Há um poço que abastece este vilarejo mas eu não confio na pureza de sua água. Vá saber se um morador revoltado com o governante não resolva envenenar todos os vizinhos? As possibilidades são incontáveis. Acho que já peguei tudo que precisamos para comer. 

— Você me parece bem preparado para uma longa viagem. Nós tivemos que comer todo tipo de fruta que achávamos no nosso caminho vindo para cá. 

— Frutas! Sim, não podemos nos esquecer das frutas. Iremos nos deparar com algumas fazendas de famílias nobres nas terras perto da cidade, esses são os lugares perfeitos para pegarmos algumas frutas dos pomares. 

— As frutas que eu consegui pegar foram pitangas e goiabas — disse Devin. 

— Isso porque os pés não eram altos senão a altura dele não o deixaria pegar elas — Eurene esclareceu o que acabou por receber uma careta do irmão.

— Mmm, acho que tenho uma coisa aqui em algum lugar que poderá ajudá-lo, meu caro Devin. — Idarcio virou-se para o interior do beco e abaixou-se para pegar algo no chão. — Ah, ainda está aqui. Este bastão era um galho de árvore que eu encontrei jogado por esses campos, provavelmente pertencia a algum viajante como eu. Leve ele consigo, poderá usá-lo para derrubar frutas dos pés e quem sabe espantar algum bicho. Isso é, se é que vocês são dotados da virtude da coragem.

Idarcio sorriu e entregou o objeto na mão de Eurene que, por sua vez, entregou-o na mão do irmão.

— É claro que eu tenho coragem! — afirmou o menino prontamente. — Já lutei contra um soldado de verdade! 

— Um soldado? Mesmo?! E o derrotou? 

O menino engoliu suas palavras e poupou-se de responder. 

— Já podemos ir então? — perguntou Eurene impaciente. 

— Sim, já devíamos ter ido na verdade. Peguem seu cavalo, crianças, e me acompanhem até o estábulo pois meu companheiro de quatro patas aguarda o meu retorno. Não, desta vez não me referi a você, Filo. 

Dando os primeiros passos para deixar o local, o flito acompanhou seu dono e o seguiu em direção ao outro lado da rua. 

— Ei! Você deixou aquela luz branca acesa. 

— Ah, sim. Me esqueci de apagá-la. — Idarcio retornou seus passos e com um simples gesto fez a esfera desaparecer. — Agora sim, peguem seu cavalo e sigam-me, por gentileza.

Desta vez os três abandonaram o beco e seguiram em direção ao corcel amarrado na cerca. Os dois irmãos puxaram as rédeas do cavalo e o levaram ao estábulo nos campos do vilarejo. Idarcio abriu tranquilamente as altas portas do local e voltou de seu interior trazendo consigo um belo cavalo castanho. Como de costume, levou seu amigo Filo até a cela e montou no animal com uma certa dificuldade por conta do bastão e de sua capa. 

— Essa capa tem me atrapalhado mais do que ajudado ultimamente. 

Eurene subiu em seu cavalo com uma notável agilidade e Devin fez o mesmo em seguida, aprendera a montar na sela sem precisar de ajuda. 

— Não vai fechar a porta do estábulo? — perguntou Eurene. 

— Não mesmo. Se esses cavalos forem espertos eles sairão daí de dentro e pouparão seus donos de terem que pagar por nada. Agora arreiem as rédeas e me sigam, crianças! Um longo percurso está adiante de nós! 

Sendo assim, Idarcio deu início ao galope do cavalo e passou em disparada diante dos irmãos. Eurene adiantou-se em fazer o mesmo e logo os dois animais corriam um ao lado do outro afastando-se do Vilarejo Cimonell e partindo em direção à Cidade de Asmabel. 




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