Tudo havia mudado para melhor. Dois dias haviam se passado desde que Eugus levantou-se de seu leito e deu pulos de alegria por toda a casa. O homem afirmava através de suas ações e palavras que realmente estava curado e que sua terrível enfermidade havia finalmente ido embora.
Nirene certamente o indagou sobre o que ele sentiu após beber o chá com as ervas medicinais mas, por algum motivo, o homem recusava-se a afirmar que as responsáveis por sua cura foram as ervas fornecidas pela maliciosa Molline. Afinal, se ela supostamente estava aliada a sua rival, Senhora Lolene, na artimanha de lhe eliminar, por que diabos Molline o ajudaria a melhorar?
Ora, quase todos os vizinhos espantaram-se quando viram o rechonchudo homem sair de sua casa andando por si só. Naquele mesmo fim de manhã, este, acreditando fielmente que já estava completamente são, deu alguns passos na frente de sua casa e cumprimentou alguns de seus vizinhos que pararam seus afazeres para admirar a alegria do homem.
— Então se curou do pé-de-gigante? — perguntou o respeitado Senhor Esmerol que trabalhava em um ornamentado móvel em seu quintal.
— Não me diga que é assim mesmo que se chama essa coisa horrível? Pé-de-gigante? Pensei que era invenção da imaginação do meu filho, Devin.
— Bom, foi o próprio menino quem me contou que você estava com um pé de gigante, meu amigo. Agora, se esse é realmente o nome dessa coisa fedida aí, eu já não sei.
Algumas horas atrás o comentário poderia ter chateado Eugus. Mas pelo contrário, o fato de não possuir mais a dita coisa fedida o fez alegrar-se ainda mais.
— O Devin — O alegre homem tentou continuar. —, realmente tem uma imaginação muito fértil.
E de fato tinha. Pode-se dizer que surgira da imaginação de Devin um bolo em forma de colmeia. E este não era um bolo comum, em seu interior mantinha mel e uma fina camada amarela recobria a superfície de dentro e de fora para que o saboroso líquido não infiltrasse na fofa massa. O Delicioso Bolo de Colmeia era o trunfo da Padaria de Eugus e nenhuma outra senhora ou senhor naquele vilarejo conseguiu repetir a tão desejada receita de Nirene.
Devin sempre demonstrou um estranho apreço por pequenos animais que encontrava pelo seu caminho durante seus momentos de diversão por toda extensão do vilarejo. Enquanto corria pelo campo próximo à correnteza do rio, ele deparava-se com pequenos anfíbios e insetos curiosos que chamavam sua atenção. Salamandras com cores entre preto e bolinhas da cor laranja serviam de inspiração para os mais diversos bolinhos e doces. Balas em forma de joaninhas vermelhas e besouros azuis eram as sugestões que ele levava aos ouvidos de seus pais que confiavam em sua criatividade e buscavam preparar toda a receita de acordo com o gosto do menino. E, de certa forma, pode-se dizer que a estratégia estava sendo bem sucedida.
A sugestão havia sido dada, e o trabalho estava a todo vapor. Eugus contou para Nirene todos os seus novos desejos em relação à padaria e as tortas eram o que mais a surpreendera. A falta de contato com uma apetitosa torta era a principal desculpa da confeiteira.
— Ora, como eu vou preparar várias tortas sendo que nem me lembro da última vez em que comi uma? — Nirene mostrou-se duvidosa de todos os argumentos que lhe foram ditos.
— Eu tenho certeza que você se sairá muito bem, querida. — A simples resposta que o sorridente marido lhe deu não a animou nem um pouco.
O ávido casal estava na pequena cozinha retangular onde Nirene, diante da rústica mesa, batia e amassava agressivamente uma massa crua de pão. Seus braços estavam cobertos por farinha de trigo e suas mangas estavam dobradas próximo aos ombros. Eugus, por sua vez, observava-a de pé ao outro lado da mesa e em suas mãos segurava seu livro aberto numa página de receitas.
— De onde você tirou essas baboseiras sobre fazer torta? Sempre fizemos bolos. São nossa especialidade. É por isso que a nossa padaria vende os melhores bolos desse lugar. Acho que somos tão bons em fazer bolos que talvez devêssemos vender só bolos!
— Por que diz isso? Não gosta de preparar os pães e os doces?
— Não gosto de ficar batendo massa de pão, Eugus. É cansativo e estressante.
— Pensei que bater massas de pães poderia um alívio para você.
— Não imagino o porquê de bater esta massa seria um alívio para mim.
— Ora, imagine que essa massa é o meu rosto e bata nela para que descarregue todo o estresse que passou por ter cuidado de mim enquanto estive doente.
— Não passei estresse nenhum, Eugus. Já lhe disse isso.
— Eu sei disso, minha adorável esposa. Não posso brincar com o seu estresse?
Nirene apenas o olhou de soslaio.
— Que livro é esse que você anda lendo tanto? — ela perguntou. — Não é possível que seja um dos contos fantásticos de Devin.
— Não... este aqui eu comprei da biblioteca do Senhor Erban. Quer dizer, eu pedi ao Devin que fosse até lá e comprasse qualquer livro sobre pães, bolos e tortas. Estava tentando aprender mais alguma coisa sobre confeitaria que ainda posso não saber.
— E tortas foram o que lhe chamou mais a atenção? Me pergunto o porquê. — Nirene jogou a massa do pão violentamente na mesa para continuar amassando-a, assim fez com que resquícios de farinha saltassem para o alto.
— Querida, segundo estas receitas, tortas podem ser surpreendentemente mais lucrativas. Ouça o que diz aqui em um trecho. — O homem passou algumas páginas e guiou seu dedo por entre letras procurando o trecho adequado para ser citado nesse momento.
"Meus dias vendendo tortas em um carrinho pelas amontoadas vielas da fabulosa Cidade de Asmabel haviam chegado ao fim. Em uma fria manhã de inverno, a Rainha Lericell acompanhada de uma ameaçadora guarda real, aproximou-se humildemente de mim e comentou que tinha ouvido falar das deliciosas tortas vendidas por uma jovem moça de vestido simples. E para a minha surpresa e deleite, ela me convidou para integrar a equipe de cozinheiros reais no Castelo da Corte. Minhas tortas coloridas e chamativas tornaram-se parte indispensável da refeição diária da família real. Lembro-me do dia em que o Rei Erlurios declarou oficialmente que tortas seriam a sobremesa a ser servida após todas as refeições."
Nirene fez questão de parar de bater a massa do pão para ouvir atentamente a leitura do marido. Ele logo virou-se para ela quando terminou de pronunciar a última palavra.
— Percebeu? O sucesso do trabalho com tortas está nos pequenos detalhes. Ela disse aqui que as tortas que ela preparava eram coloridas e chamativas mas em nenhum momento evidenciou o sabor delas. Isso quer dizer que o cuidado com a decoração pode ser fundamental no sucesso inicial desse novo negócio.
— Quem escreveu esse livro? — A ríspida pergunta de Nirene não foi exatamente o que Eugus esperava.
— Han... uma cozinheira chamada Melina da corte do Rei Erlurios. Pelo aspecto do livro ela provavelmente já deve ter morrido.
— Não percebe o que acabou de dizer? Uma cozinheira da corte de um rei. Sem dúvida essa mulher não passou pelas dificuldades que nós passamos.
— Mas de quais dificuldades você está falando?
— Quantos tipos de ingredientes a mais teremos que comprar, Eugus? Quantas frutas para o recheio? Quantas fôrmas novas? Lembra o tempo que levou para nós comprarmos as várias fôrmas em forma dos bichos que Devin queria? Essa mulher cozinhava num castelo, provavelmente bastava pedir e todo material que precisava estava em sua mesa na manhã seguinte.
— Dinheiro não será um problema. Nessa manhã acompanhei Eurene e Devin até o curral para ver como estão os vorgos e eu vi quatro baldes serem enchidos. Tenho total certeza que não fará falta se vendermos um ou até dois baldes. Além do mais, assim que eu abrir novamente a padaria amanhã de manhã nossos queridos vizinhos irão nos prestigiar.
— E como é que você tem certeza disso?
— Ora, porque eu mesmo os convidei pessoalmente quando fui cumprimentá-los nessa manhã. Disse que apresentaremos novas receitas que encherão seus olhos de desejos. Essa, minha querida esposa, é exatamente a importância da decoração neste caso.
Nirene ainda não tomava-se por convencida. Seu constante apreço pela realidade das coisas estava em um evidente contraste com a determinação eufórica de Eugus. Por vezes, devido a insistência do marido, ela começou a pensar que devesse acreditar mais nas possibilidades.
— Você pretende reabrir a padaria ao amanhecer, mas será que eu vou conseguir preparar alguma dessas tortas até lá? Já lhe disse que não me lembro nem da última vez em que...
— Não se preocupe — ele adiantou-se antes de sua amada esposa concluir. — Eu vou arranjar todos os ingredientes ainda hoje e, juntos, nós dois vamos preparar essas tortas.
— Ah, é? — A mulher mostrou-se alegremente surpresa e duvidosa com a declaração do marido. — Você vai me ajudar a preparar as tortas? Você? Que assou aquele bolo de cenoura com as cascas dos ovos dentro da massa?
— Aquilo foi um pequeno erro causado pela minha distração. — Uma leve risada envergonhada sucedeu a explicação.
— Muito bem então, Senhor Confeiteiro. Quer me ajudar a preparar as tortas? Então pode começar batendo esta massa para mim. — Nirene jogou a massa de pão coberta de farinha para o marido e este deixou seu livro cair para poder pegá-la. — Depois que seus braços estiverem doloridos de tanto bater essa massa, nós começaremos com as tortas.