Eu me levantei, forçando um passo para esconder a lamina na bota novamente. Não olhei para o Lobo, mesmo consciente de que ele me observava.
Eu simplesmente não sabia o que falar. Um obrigado enquanto eu ainda conseguia ouvir o suave gotejar do sangue em seus dedos parecia profano demais para ser dito. Hipocrisia minha, sim, eu sabia. Também havia sangue em meus dedos e boa parte dele não era meu. O que era bom de alguma forma retorcida.
Na verdade eu ainda estava assustada, não pelo fato de que para ele, era tão fácil ceifar uma vida. Mas pelo nosso falso acordo. Eu teria ido adiante, mesmo que não quisesse admitir, eu seria capaz de matar sem ressentimentos para me proteger.
Mas como eu me protegeria daquilo? Como eu podia ter proposto um acordo quando estávamos tão distantes em nível de poder?!
- Por quê? – Perguntei finalmente, quebrando o silêncio quando fui capaz de falar sem colocar o restante do meu estômago para fora.
- Porque eu o matei? - Ele perguntou. Simples e raso.
Balancei a cabeça, já tinha ouvido seus motivos e por mais terrível que parecesse, eu simplesmente não conseguia me importar com a morte de alguém que havia tentado me matar.
-Por que eles acharam que poderiam o derrotar quando você pode apenas os subjulgar e arrancar suas gargantas fora? – Falei, criando coragem para enfrentar seus olhos. E lá estavam, mais anormais que sua cor natural, vermelhos como o sangue em nossas mãos.
Quando ele não me respondeu arrisquei um passo, dissipando a tensão em meu corpo.
- O que não está me contando Lobo? Eles disseram que eu o tinha enfraquecido! Pensei que fosse pela flecha de prata, mas não foi isso, não é?! Porque realmente precisa de mim? – Insisti, continuando a andar em sua direção à medida que falava.
Ele permaneceu em silêncio, sendo sua vez e talvez a primeira vez que ele desviou seu olhar. Isso me deteve, antes mesmo que ele pronunciasse as próximas palavras ou que seus olhos tivessem voltado à cor original.
- Meu julgamento foi precipitado, não achei que Barno tramaria usando você como um meio para me atingir. Acredito que dessa vez tenho alguma culpa sobre essa situação.
Minha boca caiu aberta, ele não podia estar falando sério.
- Dessa vez?! - Eu quase gritei. – É a quarta Lobo! A quarta maldita vez que quase morro por sua culpa. Sabe isso realmente me deixa mais tranquila, agora posso parar de pensar em você arrancando minha garganta, porque sei que vou morrer bem antes disso. Em mais uma dessas situações – fiz aspas com os dedos – não causadas por você! E mais uma coisa eu não precisava que tivesse vindo, estava lidando muito bem sozinha com ambos! – Antes que percebesse estava batendo meu dedo em seu peito, face a face, encarando furiosamente seu rosto neutro. – Não pense que serei grata por isso. – Falei por fim, dando um passo para trás. Ele segurou meu braço, antes que eu completasse o movimento. E me puxou de forma bruta, até que meu corpo estivesse junto ao seu.
- Não quero que seja grata. Não me importo com o que pensa de mim. Ou mesmo se me odeia. Continue a endurecer seu coração, se necessário. A única coisa que quero de você é que continue viva até completar meu objetivo. – Disse, falando em meu ouvido. Trinquei meus dentes, incomodada com sua força. Incomodada que estivesse cansada e sagrando o suficiente para não lhe oferecer resistência.
Eu já estava pronta para amaldiçoá-lo quando ele me soltou rapidamente, me empurrado para trás.
Antes que eu caísse em uma poça sanguinolenta, só pude pensar em como era estúpida. A acreditar mesmo que por um momento, que o Lobo até teria me trancafiado para minha segurança.
- Estava me perguntando por quanto tempo você continuaria fingindo. – Disse, sem soar sentido algum.
E então ainda menos sentido fez sua camisa a se desfazer em cinco cortes, caindo como papeis esbranquiçados no chão. Foi quando notei, observando o lento movimento que faziam, que o segundo homem, aquele a qual eu tinha apagado com apenas um chute, não estava mais lá.
- Huh, Barno realmente não teria pensado em tudo sozinho. Mas quem diria que haveria um infiltrado em meu clã. – O Lobo continuou, sangue havia eclodido do ferimento, em finas linhas, quase como se as garras não tivessem o tocado, mesmo sem ele mover um passo.
Quis não entender o motivo. Que a razão dos cortes serem tão finos era porque no fim das contas, ele não era o alvo.
- Aysha Nowak, é esse o seu nome? – Um sussurro e então pânico gelado cobria minha pele. Novamente eu não tinha visto aquele Lican se locomover, sequer havia notado sua presença, como minutos atrás, quando ele havia me derrubado no chão. E mesmo assim, sem nenhum explicação, ele estava ao meu lado, usando um de seus dedos transfigurados para apanhar algum sangue do ferimento em minha testa. - Não me de todo o crédito Mestre Mondavarius, apesar de minha atuação ter sido acentuadamente fiel, eu não esperava ser atingido por minha própria toxina. Sua noiva aqui, foi quem conseguiu essa façanha. Quando ela me derrubou, o frasco acabou quebrando. Mas eu consegui guardar um pouco em minhas unhas como bem deve estar sentido agora. – Disse, agachado ao meu lado. - Então, estou errado? Esse não é o seu nome, mulher? – Falou lentamente, lambendo o sangue que tinha pegado de mim. – Penso ter escutado esse nome enquanto você ria no chão depois de fazer um belo estrago nas bolas daquele cara. Devo me considerar um Lican de sorte? – Perguntou, mostrando sua mão ferida. O ponto onde eu havia fincado a faca parecia estranhamente menor.
- Deve se considerar um Lican morto. - O Lobo refutou, suor corria por sua testa e a sensação inquietante de sua magia havia desaparecido por completo.
- O que fez com ele? – Perguntei, encarando o Lican pela primeira vez, eu não tinha tido tempo para pensar que de fato havia sido muito fácil apaga-lo. E esse foi meu pior erro, tinha-me deixado ser surpreendida duas vezes.
- Nada que ele já não tivesse previsto. – Disse, levantando-se. – Mesmo com a pouca quantidade de toxina que cosegui injetar, é impressionante que ainda esteja de pé, Mestre Mondavarius.
Surpreendentemente, o Lobo deu uma risada sem humor.
- Não me compare a sua fraqueza, uma simples toxina paralisante não é capaz de me matar.
- Apesar de não importar em fazer tal coisa, não foi para isso que fui pago. – Disse o Lican, andando a minha volta. Um pensamento muito alegre de que estivesse preocupado comigo tramando alguma coisa circulou minha mente.
- Quem e por quanto o pagaram? – O Lobo perguntou. Mesmo estando completamente imóvel, ele não parecia estar sofrendo com a toxina. Não deveria ser letal, ao que tudo indicava.
O fato de que o outro Lican houvesse nos confessado ter ficado sob seu efeito por alguns minutos acalmou minha mente. Ou talvez, eu estivesse completamente errada, toxinas em sua maioria não agiam instantaneamente, os efeitos secundários demoravam mais do que apenas alguns minutos para agir. E em nosso momento de distração aquele Lican poderia muito bem ter tomado algum antídoto.
- Não posso trair meus Mestres, onde ficaria minha credibilidade? – O escutei falar.
- E quem disse que quero comprar sua lealdade? – Outro sorriso falso, cruzou seus lábios. - Só preciso saber com qual quantia e para onde devo enviar com seu cadáver. Afinal, nós Mestre ficamos bastante aborrecidos quando quebram nossos brinquedos.
O Lican avançou, se o intuito do Lobo era irrita-lo ele tinha alcançado seu objetivo com sucesso, apesar de não entender o porquê, soube instantaneamente que havia algum plano por trás daquela provocação.
- Sabe, acabei de reconsiderar se não dou um bônus aos meus empregadores levando sua cabeça como presente. Ainda não se deu conta Mestre Mondaravius, é você quem esta em apuros.
Eu não podia continuar assistindo, apesar do meu corpo me dizer que não éramos capazes de fazer nada, minha consciência continuava a me alfinetar. O Lobo tinha me tirado da linha de perigo, e dessa forma eu tinha que ajuda-lo de alguma maneira...
- Deveria ter fugido na primeira oportunidade. – O Lobo falou, em um tom muito solene. Nenhuma preocupação evidente em sua voz. Foi o estopim para o Lican, a neutralidade ou mesmo a indiferença do Lobo para e com sua presença.
Ele levantou a mão, a mesma que eu tinha ferido e seus dedos se curvaram, lentamente, um a um, como se ele aproveitasse a sensação. Tão subitamente eu sabia o que ele faria em seguida, fosse pela forma da curvatura do seu cotovelo ou pela posição do seu ombro. Era como apunhalar alguém, a uma curta distancia, com cinco afiadas laminas.
Meu corpo se moveu, não por minha força de vontade, mas por um desejo cruel. Lembrando-me como projetar a lamina da bota, foi mais fácil fazê-la uma segunda vez. Prendi a respiração e então arfei uma vez antes de mirar em suas costas.
Ele bloqueou meu chute. Virando-se surpreendentemente rápido.
- Não pense que esqueci de você. – Falou.
- Sim. – Respondi, talvez muito tardiamente para que houvesse entendido. – Meu nome é Aysha Nowak e se alguém tem algum direito de matar o Lobo, não é você. – Complementei.
O choque em seu rosto foi quase cômico, nenhum dos dois parecia ter esperado aquelas palavras. Mas eu quis dizê-las com toda a certeza do meu corpo ferido, porque se alguém tinha o direito para isso era eu. Que tinha sido atormentada minha vida inteira por medo de sua figura. Além de ter sido sequestrada por ele e enfiada em lutas contra minha vontade por sua culpa!
Respirei fundo, arrancando uma das ataduras de minha mão, eu podia fazer isso, podia suportar só mais uma luta para ver minha consciência limpa e para provar de uma vez por todas que era capaz de estar no mesmo nível.
- Pode tentar mata-lo se quiser, mas antes vai ter que terminar o que começamos. – Falei, soando incrivelmente confiante para quem poderia muito bem desenvolver uma anemia profunda por perda de sangue em um par de dias.
Mas, puff, porque raios eu me preocuparia com uma anemia quando podia muito bem não passar do dia de hoje?!
- Pois bem, realizarei o seu desejo. De uma forma ou de outra só preciso levar o seu coração. – Falou, andando ao meu encontro.
Era uma chance única e quase impossível, mas eu não podia voltar atrás, não podia demonstrar minha insegurança. Segurei o pedaço da atadura com as duas mãos, a esticando até que ficasse firme.
Sem aviso, assim como eu previa, ele atacou. Por pouco consegui enrolar a atadura em seu punho, mudando o curso de sua mão. Mas ele seguiu meu próprio raciocínio e usou a atadura para me desequilibrar. Tentei acerta-lo com a lamina da minha bota, mas ele tinha se posto fora de alcance, ciente da minha tentativa.
Eu estava parcialmente pendurada em seu braço e uma de suas mãos estava livre. Foi o pensamento que me salvou. Quando ele estava prestes a me cortar com a outra mão, soltei a atadura, caindo no chão sem nenhum apoio. O som do meu crânio se chocando no terreno irregular foi tudo que pude ouvi por alguns segundos. Minha visão saiu de foco e eu esperei o golpe final.
Mas ele nunca veio.
Porque quando pisquei novamente, havia alguém segurando o punho do Lican, a centímetros do meu peito.