- Esconder? – Perguntei de forma imediata. Do que ele estava falando, não tinha o Lobo me trancafiado nesse lugar para me punir?!
O homem riu. – Como se isso fosse o suficiente. O que nosso Mestre estava pensando a deixar uma ovelhinha tão graciosa sozinha nesse cercado? – Disse, sua dissimulação só não era maior que sua altura, podia ter dois metros ou mais.
Quanto tempo eu havia dormido? Não parecia ser muito, mas de novo eu estava presa no completo escuro impossibilitada de sentir a passagem do tempo. Tochas fracamente iluminavam o corredor e o contorno dos dois homens. Não havia espaço para fugir com ele e seu companheiro ocupando toda a passagem.
- E disseram que você foi a responsável por surrar Ângela. – O homem prosseguiu, dando dois passos para dentro da sela. – Deveríamos mesmo acreditar nisso? – Perguntou, olhando de relance para seu companheiro que sorriu mostrando dentes alvos.
- Acredite no que quiser. – Falei. Eu não sabia o que eles pretendiam, mas podia sentir que suas intenções não eram das melhores. – Quem são vocês? Subordinados insatisfeitos do Lobo? – Propus com falsa arrogância. Talvez fossem mandados de Ângela, mas ela era orgulhosa o suficiente para me finalizar com suas próprias mãos e não mandar capangas.
- Insatisfeitos? – Ele repetiu, fingindo parar para pensar. – Não, essa não é a palavra correta. O garoto nos deixa desocupados e em troca nós o obedecemos na medida que os mais selvagens do nosso clã conseguem. 'Não ataquem os humanos das vilas', 'Não invadam o território de outros Mestres', 'Não se alimentem de humanos'. É um bom acordo, não acha? – Perguntou, agachando-se a minha frente.
- Sim. – Falei na defensiva, lembrando-me das palavras de Kohina: Mesmo um Mestre como você não pode reinar em absoluto sobre os Selvagens. Eles esquecem muito mais rápido do que aprendem, principalmente a seus jovens Mestres.
- Errada! – Ele gritou. – Não somos cães para ficarmos sentados, somos lobos. Somos selvagens. Se queremos uma coisa, nós a tomamos, dilaceramos e no fim comemos até que nossa besta interna esteja saciada. – Disse.
- E o que vocês querem no momento? – Perguntei, segurando a respiração. O homem me encarou, apesar da fraca iluminação pude ver quando seus olhos mudaram de um profundo preto para um castanho luminoso.
Instintivamente virei meu rosto, evitando olha-lo. Podia estar certa sobre como a magia funcionava de diferentes formas em cada Lican, mas aquele não era nem o momento e nem a hora mais propicia para testar minha teoria.
- Não é obvio? Restaurar o equilíbrio das coisas. Humanos são caça, não semelhantes. – Respondeu, jogando sua mão em direção ao meu pescoço sem nenhum aviso. Me esquivei a tempo de evita-la, mas não o suficiente para impedi-lo de segurar meu cabelo.
- Que gracinha, pensando que poderia escapar. – Falou, me puxando consigo até que estivéssemos de pé.
- Solte-me! – Gritei, tentando me livrar de sua mão, em contrapartida ele puxou meu cabelo com mais força, até que minhas costas se chocassem contra seu corpo musculoso.
- Foi assim que derrotou Ângela?! Debatendo-se como uma galinha sem cabeça? Ou você implorou por ajuda? Uma criatura tão patética como você nunca conseguiria fazer nada sem ajuda, então me diga a verdade humana. – Exigiu.
Tentei pensar, tentei imaginar se mentir o satisfaria ou pelo contrario só agravaria minha situação. Se eles não achavam que eu tinha sido capaz de derrotar a toda poderosa Ângela que fossem ao inferno com isso! Então eu me lembrei, lembrei do que estava amarrado na cintura daquele homem.
- Bem, já que não vai nos contar. Gostaria de deixar algum recado para seu querido noivo? – Perguntou, virando-me para ver o sorriso debochado em seu rosto.
- Pode dizer a ele – Comecei, com toda a calma do mundo, aproveitando a sensação reconfortante do peso em minha mão. – que era melhor ter aceitado o acordo. – Falei, sua mão instantaneamente me soltou quando eu finquei a faca que tinha roubado em sua perna, em segundos que foram fácies de mais pegar o objeto quando ele me virou.
Então eu aproveitei parte daquela arrogância e sussurrei naqueles segundos preciosos enquanto ouvia o som de pele e carne ceder. – Sabe qual é o problema dos cães selvagens? É que eles se distraem facilmente.
Sem perder tempo girei a faca em sua perna e a puxei, nada melhor para dificultar a cicatrização de um corte.
De longe não tinha sido a decisão mais inteligente, mas era o melhor que eu podia fazer para equilibrar as coisas. Incapacitando um dos dois minhas chances de fuga aumentavam consideravelmente.
- Vou mata-la! – O homem gritou, movimentando um punho fechado para me acertar. Sem dificuldade movi a faca para me proteger, o metal mal forjado era mais afiado do que aparentava.
- Conte-me uma novidade. – Incitei, vendo o buraco que havia feito em sua perna. – Não foi para isso que veio até aqui? – Falei recuando, olhando para a porta, procurando o outro homem. Não podia se ter ido, então se não estava a minha vista, queria dizer que...
Fui derrubada, tão abruptadamente que minha testa se chocou contra o chão. Eu não tinha o visto se mover tampouco o escutado fazer.
- Ouvi boatos de que era Dominante, não achei que fosse verdade. – O outro homem falou, ele havia me imobilizado. Tinha um pé sobre minhas costas e outro no braço em que sustentava a faca.
- Não importa, preciso do coração dela antes que ele volte.
- Não vai querer meu coração, há um bocado de coisas nele e nenhuma delas é boa. – Falei. – Imagine só o gosto, vai lhe dar náuseas.
Pelo tom de voz deles, sabia que não era uma brincadeira, mas ser sarcástica era uma das minhas formas de proteção, de não digerir a verdade de uma só vez.
- Veremos se vai continuar tão espertinha quando a abrirmos. – O homem que eu havia acertado falou, sua perna ainda jorrava sangue.
Mesmo com meu braço preso, consegui passar a faca para os meus dedos, era um movimento arriscado, mas eu simplesmente não podia ficar parada os escutando discutir modos de como arrancariam meu coração.
- Pegue a faca dela.
Era tudo ou nada. Empurrei a faca com os dedos e estiquei meu outro braço para alcança-la, precisava ser rápida. Meu movimento não passou despercebido e o homem que me imobilizava se abaixou, ainda mantendo o pé em minha coluna, tentando recuperar o objeto.
Felizmente o cabo chegou até mim e sem nenhuma hesitação eu afundei a lamina em sua mão, prendendo-a ao chão. Então impulsionei meu corpo para o lado escapando e me levantei. Acertei um chute lateral em seu rosto o derrubando inconsciente no chão e corri para a porta. Mas de novo, naquela velocidade sobrenatural, fui surpreendida quando o homem que eu tinha esfaqueado a principio ressurgiu bloqueando a passagem.
- Muito bem, parece que a subestimamos. – Ele falou.
- Não são os primeiros a sangrar por isso. – Informei.
- Deve ser mesmo noiva daquele bastardo arrogante.
Da forma em que falou, quase pareceu um elogio.
- Sim, eu sou, então se me permitir desejo passar, não vão querer arranjar mais problemas com o Mestre não é mesmo?! – Falei, tentando soar razoável apesar de já saber que a razoabilidade de nada funcionaria com Licans selvagens.
Ele sorriu, o que foi horripilante.
- Problemas é tudo que desejo provocar essa noite. Primeiro mato você e depois ele.
- Você o chama de arrogante, mas são todos maças do mesmo cesto. – Falei, estava tão certo que ia matar a nós dois, seriam todos os Licans arrogantes? Comigo ele até poderia ter razão, mas com o Lobo...ele não seria considerado o Mestre por pouco e eu já havia visto uma amostra do seu poder, quando ele tinha o usado contra as Mímicas na Cidade do Leste.
- Não é arrogância, na verdade eu deveria agradecer a você por ter o enfraquecido o suficiente para que pudéssemos desafia-lo.
- O que quer dizer com isso? – Perguntei até me lembrar novamente da flecha prateada, dos movimentos lentos do Lobo e da macha vermelha em seu ombro depois que ele tinha me carregado até a cela, seu ferimento ainda não tinha se curado.
- Veja pelo lado positivo, você não estará mais aqui para vê-lo morrer. – Falou.
Ótimo, como se isso de alguma forma fosse me reconfortar.
Mas outra pessoa que levará ao tumulo? Aquela maldita voz soou novamente em minha cabeça. Junto com parte das lembranças que tentei reprimir, frascos de veneno no chão, um garoto de cabelos vermelhos espiando pela janela, flores vermelhas caindo na grama.
- Cale-se. – Rosnei, não para a evidente ameaça a minha frente, mas para a coisa em meu interior. Eu já tinha tido o suficiente dela por um dia.
- Não adianta mais bancar a corajosa humana, esse é o seu fim.
É melhor assim, você é fraca, todos morrem a sua volta por que você é fraca Aysha Nowak.
- Eu não sou fraca. – Falei, balançando minha cabeça, espantando a minha voz, sussurrada pela caixinha obscura em meu peito. – Eu não sou fraca. – Repeti com mais força, mesmo quando o homem segurou meu pescoço e meus pés deixaram de tocar o chão.
Então prove.
Tarde de mais, pensei, quando o ar sumiu dos meus pulmões e minha visão falhou até que eu tivesse alucinações de ainda estar entregando frascos de medicamentos a Ethan, dois anos atrás quando ele falou que tinha comprado algo muito interessante dos mercadores que visitavam Sweney Pines naquela primavera.
- São apenas botas. – Falei, pegando o par de botas de couro marrom com fivelas. Ele pegou um exemplar da minha mão.
- Botas comuns não fariam isso. – Disse, batendo o calço da bota que segurava no par que eu tinha, tomei um susto a ver uma pequena lamina enegrecida em formato de losango surgir do bico do pé direito. – Assombroso, não é? Funciona através de um imã eu presumo. É uma lástima que sejam muito pequenas para o meu pé, então fique com elas, combinam com você.
Em toda minha ranzinza eu nunca tinha agradecido a Ethan pelo presente, apesar de nunca ter usado qualquer outra coisa em meus pés depois daquele dia. Eu era uma tola presa por sempre querer o que não tinha a ponto de deixar de lado o que já possuía.
Obrigada Ethan, por sempre ter sido um bom amigo.
Com dificuldade bati os calços da bota, a pequena lamina fez um suave barulho a ser projetada para fora. Então mirei, sem nenhum decoro, no ponto que sabia que doeria mais. Que os deuses menores da fertilidade me perdoassem.
O homem gritou, de uma forma que eu nunca tinha visto. Ele me lançou para o fim da cela no processo.
- Maldita! Porca imunda! – Disparou, segurando suas partes de joelhos cruzados.
Por algum motivo distorcido da minha mente a cena me fez querer rir, mas eu ainda estava no chão empoeirado, meus braços a um ponto de se encontrarem esfolados pela maldita roupa de combate sem proteção alguma que eu ainda usava.
- Meu nome é Aysha Nowak! – Gritei ainda no chão.
Eu não tinha mais forças para lutar, muito menos para me mover, mas ainda assim me sentia vitoriosa, tinha ganhando minha aposta mental, não de uma maneira muito digna, mas vitoria continuava sendo vitoria.
Eu ri. Ri da minha própria desgraça.
- E vocês se diziam capazes de derrotar o Lobo. – Falei. – São mais patéticos do que eu.
- Sua maldita! Eu vou mata-la, assim que, que...
Eu engasguei. Magia inundou a cela, quente, pesada e sombria. Era como se a noite mais quente do ano acompanhada por calafrios e sussurros de um vento imaginário tivesse se instalado no ambiente.
- Assim que o que Barno?
Medo. Foi a única palavra que circulou minha mente, quando vi o Lobo parado na porta, sombras o entornavam, como se ele tivesse as vestido e seus olhos cintilantes estavam vermelhos, no mais puro tom do sangue fresco.
- M-me..estre... você não deveria estar aqui.
Apenas um passo foi o suficiente para que Barno se encolhesse de joelhos. Continuei em silêncio vendo aquele espetáculo de horror, observando as sombras se moverem como se dançassem, como se desenhassem um grande...
- Claro que não. Por isso perguntei-me durante o inicio da reunião, porque o Tagger do clã, o primeiro titulo que poderia me suceder, não estaria presente para tratar de um assunto tão importante como o inicio de uma rebelião interna. Adivinhe qual a resposta Barno, o que achou que conseguiria machucando minha noiva? – Disse, cada palavra deveria exalar autoridade, mas tudo que eu conseguia captar era uma sutil ira, lenta, voraz e mortal.
- É apenas um mal entendido. – Foi a pior das respostas, quase senti pena.
- Você me traiu, Barno. - Um sussurro, lento edemorado, colocando um significado maior do que eu poderia entender naquelaspalavras. Lembrei-me da história que havia me contado, do homem odioso traídopor seus empregados.
As sombras aumentaram, consumindo o restante da luz, mas eu pude enxergar do que se tratavam. Eram sua forma feral, um leve rastro do imenso lobo de pelos escuros que podia se tornar.
Ele tocou os ombros do homem, levemente e depois os apertou por um instante. Barno tremeu com a sensação.
- Sabe o que faço com traidores? – Perguntou.
Prendi a respiração. Garras despontaram dos seus dedos, como as de Kohina, retorcidas, negras e brilhantes. Elas se enterraram na carne até que o sangue começasse a fluir, escorrendo pela pele. Era hipnotizante.
- Mestre, eu imploro, por...
- Ela implorou? – O Lobo perguntou, olhando para mim pela primeira vez desde que tinha entrado na cela. Não consegui sustentar seu olhar, ele estava assustador como o inferno.
- Não.
- Então não implore.
Um movimento.
Um toque daquelas garras negras e de repente não havia mais nada no pescoço do homem. O enjoo cobriu meu estomago e eu não aguentei. Deveria estar feliz por poder me mexer novamente e não vomitar em mim mesma, mas tudo que podia pensar era como tinha sido ingênua, ficando a vontade na presença do Lobo.
Ele poderia me destruir tão facilmente quanto tinha feito com o tal do Barno.