Perna de Magia

By PriscilaBarone

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Toni Maro é um jovem com uma doença incurável, problema que lhe ocasionou a perda de uma das pernas. Com o us... More

Prólogo
01 - Encontros e esperança
02 - Magias e dimensões
03 - Curiosidade, quartos vazios e rancor
04 - Segredos e ironia
05 - Desespero e calmaria
06 - Confissões e resoluções
08 - (Des)Encontros
09 - Rotina, mentes e descobertas
10 - Passado, história e objetivo
11 - A véspera
12 - Conflito, fogo e calor
13 - Lembrança
14 - Elementais, artefatos e conjurações
15 - Batalha e sangue
16 - Pacto, loucura e júbilo
17 - Luta, gelo e água
18 - Passado, morte e vida (parte 1)
18 - Passado, morte e vida (parte 2)
19 - Acontecimentos inesperados
20 - Consciência, poder, despertar
21 - Enfrentamentos e ilusões
22 - Aparências e embates (Parte 01)
22 - Aparências e embates (Parte 02)
23 - Medindo forças
24 - Pesquisas e decisões
25 - Jóia brilhante
Epílogo
Comunicado
Aviso Rápido!
Capítulo Extra - Ren - Sobre Elementais e Fatasmas - Parte 01
Capítulo Extra - Ren - Sobre Elementais e Fatasmas - Parte 02
Capítulo Extra - Irene - Sobre Mentes e Magia - Parte 01
Capítulo Extra - Irene - Sobre Mentes e Magia - Parte 02
Prêmio Wattys 2016

07 - Lutas e partida

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By PriscilaBarone

O dia em Rio Contrário transcorreu normalmente. Pessoas iam e chegavam, trabalhavam e se ocupavam de suas obrigações. Cidade de três rios, sua população vivia basicamente da pesca. Como conseguiam controlar a água e modificá-la ao ponto de solidificação, exportavam seus peixes a várias cidades e vilarejos vizinhos, sem medo que estragassem na viagem. Levavam o produto de seu trabalho em caixas, carregadas por carroças comuns. A tecnologia não era o forte do local, e eles mal conheciam máquinas a vapor mais avançadas como os carros, que eram coisas comuns em Kailotron.

As crianças estudavam na única escola local. Todos os habitantes eram letrados. Havia um único horário para estudos, na parte da tarde.

A própria Irene fundara Rio Contrário, dizia-se, há séculos. A história da cidade contava que, depois de um longo período de jornada e andanças sem rumo, Irene havia chegado àquela região com um grupo de pessoas, onde encontrou os três rios. Ali decidiu assentar-se e, por muitas gerações, ela perdurou. Os anciãos de Rio Contrário podiam ratificar que Irene esteve lá desde sempre, pois ouviram relatos de seus avós ou bisavós.

Com o tempo, pessoas de diversas raças, credos e opiniões foram sendo incorporadas à população do vilarejo. Irene não fazia diferença de ninguém, permitindo que qualquer um entrasse na cidade, desde que agregasse valor ao todo, e não prejudicasse a vida em sociedade. Até hoje, Rio Contrário é procurada por pessoas rejeitadas, que não conseguem se desenvolver plenamente entre seus próprios povos seja por diferenças de opinião ou aparência.

Irene cuidava para que todos os cidadãos tivessem sempre as mesmas oportunidades e desenvolveu leis a serem seguidas para todos que quisessem adentrar o local e viver pacificamente. Injustiças, segregações e discriminações não eram toleradas sob nenhuma hipótese, e aquele que mantivesse quaisquer destas posturas, mesmo depois de advertido, era convidado a se retirar da cidade. Na verdade, a política funcionou tão bem que as pessoas oriundas de Rio Contrário realmente acreditam que a mistura de raças é benéfica, e tentar convencê-los do contrário era arrumar confusão.

Toni e Ren ficaram sabendo de toda essa história naquela mesma tarde, através de Letícia. Analisaram, mais uma vez, como Irene disfarçava tamanha importância. O mistério ao redor dela apenas aumentava. Quem seriam "os Antigos", de quem ela se escondia?

Na residência de Afonso, eles se preparavam para partir. O curandeiro de meia idade não apreciara a partida às pressas do rapaz, recomendando que permanecesse por pelo menos mais três dias. Em vista da recusa e vendo que não havia como impedir, aconselhou que não se esforçasse demais. Ainda pensativo, o homem esperou que a irmã se afastasse dele, em busca de qualquer objeto esquecido em seu quarto. Assim que Letícia lhe serviu uma última xícara de chá, agarrou-lhe pelo punho e o arrastou até a sala, o líquido quente respingando na pele de ambos.

- Olha o desperdício, senhor Afonso. Me queimou todo aqui! - exclamou enquanto tentava soprar a área atingida, de olhos arregalados.

- Pare com as gracinhas, garoto. Apenas me diga. Pretende fazer alguma besteira nessa viagem?

Toni pousou a xícara na mesa de centro e mirou os olhos dele, de repente muito sério.

- Não se preocupe. Pode ser que haja outra solução. Por isso, renovei a aposta. Só não vou deixar a fé tola me abraçar de novo.

- Tem certeza?

- Bem... Enquanto eu puder me mexer, vale a pena tentar.

Sentiu o escrutínio de Afonso sobre si, averiguando se poderia confiar em suas palavras. Era quase como se ele olhasse dentro de sua alma, despido de qualquer barreira física ou moral. Então, inesperadamente, o senhor se adiantou e o segurou pelos ombros, as duas grandes mãos firmes, fazendo com que prestasse total atenção nele.

- Toni, prometa que vai tentar tudo ao seu alcance. Ainda que não tenha fé, não desista sem ter explorado todas as possibilidades. Vamos, prometa.

Pego de surpresa com a reação emocional do curandeiro, o rapaz da perna mágica ficou sem saber o que dizer de início. Mas apreciando a preocupação paternal, também pousou uma mão em seu ombro e sorriu francamente.

- Está bem. Eu prometo. Não se preocupe.

Afonso soltou-o, mas continuou observando seu semblante fixamente.

- E, por favor, livre-se desse pensamento de "fardo". Eu conheço apenas Ren, mas pelo que posso inferir da sua índole, acredito que sua família toda devote a você o mesmo respeito que tem por ela. Não creio que pensem em você como um peso. Não há motivo para achar isso de si mesmo.

- Senhor Afonso... Eu...

A conversa foi interrompida com a entrada de Araí. Toni perdeu a linha de raciocínio e encarou sem graça o curandeiro, que também ficou sem ação momentaneamente.

- Tio! A tia tá te chamando lá fora no barco de vocês!

Acompanhando o pequeno para fora da casa, Toni deu um aceno de cabeça para Afonso. Não que a última parte de seu bonito discurso tivesse feito com que mudasse de opinião. O homem jamais poderia saber como ele se sentia. Mas lhe devia algo pelas boas intenções.

Do lado de fora, correu para checar Newcomen, e verificar se estava tudo certo para a partida naquela noite. Eles pretendiam ir embora sem avisar o povo, assim evitando alarde no vilarejo por causa de sua patrona. A família de Afonso era a única que sabia que o trio partiria.

******************

Irene retornara à sua própria casa havia algum tempo, e durante esse período, Gerson não parou de rodeá-la. Tinha a impressão de que ele queria dizer algo, mas sempre recuava no último segundo e permanecia calado. O homem lhe dava nos nervos.

Ela tinha permitido, há seis meses, que ele se tornasse seu assistente pessoal com um objetivo. Mas até aquele momento, o magricela não revelara ainda ao que tinha vindo. Como o homem não se manifestava, Irene o ignorou e continuou a cuidar de seus preparativos. Depois de duas horas de hesitação, enquanto arrumava uma mochila com seus pertences pessoais, Gerson finalmente dirigiu-lhe a palavra.

- Você vai deixar a vila de novo, Irene?

Não passou despercebido que ele a chamara pelo nome. Normalmente só se referia a ela por sua alcunha, "Dragoa das Águas".

- Que perspicaz, Gerson.

- Talvez eu deva alertá-la de que essa não é uma boa hora para ausentar-se novamente, Dragoa.

- Pode me dizer por quê?

- Bem, a senhora acabou de retornar ao lar e as pessoas ficariam muito chateadas em ver que você se foi novamente. E não acho que deva se juntar com a gentalha que são aqueles dois, Dragoa.

- É mesmo? E por que eles são gentalha, Gerson?

- Porque não são como eu ou você. Sou um mago habilidoso a seu serviço, e a senhora um ser poderosíssimo...

- Gerson, quantas vezes tenho que lhe dizer que aqui a origem e etnia das pessoas não importam? E daí se são mais fortes, mais fracos, mais brancos, verdes ou azuis? É contraditório dizer isso, logo você que veio aqui há seis meses desesperado por minha ajuda, dizendo que não era aceito por sua família... Que seu filho tentou matá-lo quando soube que você mexia com magia. Pensei que soubesse como é ser marginalizado...

- As pessoas da minha família são tolas supersticiosas, Dragoa... Enlouqueceram quando descobriram meu interesse por magia, achavam que eu estava amaldiçoado. Mas eles não eram caipiras de uma vila minúscula. Temos estirpe, éramos uma família muito tradicional. Quem são esses dois irmãos? Apenas dois anônimos sem importância. É por isso que digo, senhora. Os tolos devem ser deixados para trás, esquecidos. Por favor, é melhor para a senhora deixar esses dois partirem sozinhos o quanto antes.

- E quem é você para dizer a mim o que fazer, Gerson?

Enquanto Irene pronunciava a última frase, todo o ambiente dentro da casa mudou vertiginosamente. A temperatura caiu a zero, enquanto o frio enregelante atravessava as roupas de Gerson e adormecia seus ossos. Ele começou a tremer imediatamente. Os olhos que o encaravam eram mortais como o gelo, e transmitiam o desagrado sentido. Toda a intenção assassina era traduzida através do ar gélido que parecia envolvê-lo com o único fim de embalá-lo até a morte. Não conseguia mais se mexer. E não identificou se era devido à temperatura ou ao medo.

Do mesmo jeito que veio, o frio se dissipou. Irene enfiou os últimos objetos na mochila, fechou-a e deu as costas para Gerson, afastando-se.

Quando ela entrou e bateu a porta de seu quarto, o magricela ainda tentava recuperar a respiração perdida.

******************

À meia-noite, como combinado, os três se encontraram aos pés de Newcomen.

Com a vila em profundo repouso, o luar encarava-os silenciosamente, e as estrelas brilhavam de forma intensa. Tudo facilitava a viagem. Após uma rápida conversa para decidir quem pilotaria e que direção tomar, Ren subiu a bordo. Puppet estava funcionando a pleno vapor e acompanhou a dona.

O navio havia sido atracado numa espécie de clareira, próxima à entrada da estância. Irene solicitara que dois de seus guardas de elite permanecessem junto à embarcação, em caso de qualquer eventualidade. Naquele momento, no entanto, não havia ninguém fazendo a segurança, também a seu pedido. Não seria necessário em vista do pouco tempo que levariam para preparar a partida.

Próxima de pular a amurada, Irene notou que Toni se demorava observando o caminho que levava ao centro da vila. Entreouviu um pequeno suspiro do jovem.

- O que houve, Perna de Magia? Gostou tanto assim de Rio Contrário que não quer partir?

- Não vou negar. Aqui é um bom lugar. Gostaria de ter visitado mais lugares, afinal, fiquei a maior parte do tempo em uma cama - respondeu, sem se virar para a interlocutora.

- Mas não é isso que o incomoda, não é?

- Não. Gostaria de voltar e conversar com o senhor Afonso, quando tudo isso acabar.

Irene soltou uma risadinha.

- Não se preocupe, Perna de Magia. Afonso exerce esse poder em praticamente todos aqueles com quem conversa. Que tal irmos?

Toni finalmente girou o corpo em direção à nau, com um meio sorriso. Quando estavam se preparando para entrar, ouviram uma voz baixa, quase sussurrante.

- Você não vai com eles.

Irene reconheceu o tom e voltou-se para a origem da voz. Gerson caminhava até eles, com alguma coisa na mão. À meia-luz que a lua fornecia, tudo que podia ser visto era que se tratava de um objeto redondo. Toni ficou de sobreaviso ao lado da mulher. Já não gostava do magricela. Ele aparecendo no meio da noite e falando daquela forma com Irene, não parecia significar coisa boa.

- Então, finalmente decidiu se revelar, assassino?

Gerson hesitou por dois segundos, depois pareceu colocar o objeto esférico mais à frente do corpo.

- Quem é você para falar de assassinato, Dragoa das Águas? Mas agora estou curioso. Se já sabia disso, por que me aceitou em sua vila?

Notando a demora e agitação abaixo, Ren se atirou da amurada, pousando entre Toni e Irene, com Puppet em seus calcanhares. Endireitou-se e dirigiu a palavra à outra mulher.

- Do que ele está falando, Irene?

- Eu te aceitei, Gerson, porque a princípio não sabia de sua história. Não sabia que você era um Omag. Um mês depois de você ter chegado aqui, recebi notícias de Emon, que dizia que os elementais da água estavam inquietos, como se planejando algo. Aproveitei e pedi que ele investigasse você também, sua origem. Qual não foi minha surpresa ao descobrir que você é um Omag que assassinou seu primogênito para obter um segundo Coração de Magia? E que sua mulher enlouqueceu com isso, e seu filho mais novo tentou te matar? E, vejam vocês, sua ganância por poder ainda cresceria mais, a ponto de você fazer um pacto com os elementais da água, para me levar de volta até eles. O que eles te ofereceram, Gerson? Um parceiro?

- Sim, o contrato diz que, se levá-la de volta até a comunidade deles, eu terei um parceiro elemental em troca, e poderei utilizar seus dons como assim me convier. Eu sempre achei que a magia fosse o futuro, e tentei desesperadamente enfiar isso na cabeça do velho patriarca de minha família. Mas nunca me deram ouvidos. Agora, com o poder que possuo e um ondina me ajudando, posso mostrar a eles a evolução, e fazê-los dobrarem-se à superioridade de um Omag. Quem sabe até eu consiga me livrar daquele velho moribundo e me torne o novo patriarca... Eu mereço essa posição, sou o mais forte e capacitado para isso!

- Mas não o mais sábio. Esses Ondinas tolinhos... Essa mania de não fazerem nenhuma distinção moral é um problema...

- Ora, você tem a descendência deles, não? Procura fazer o mesmo aqui em sua vila...

- Não seja idiota. Sei distinguir muito bem uma pessoa comum de um canalha como você.

A gargalhada de Gerson quebrou o fino silêncio da noite. O homem chegou até a engasgar brevemente, devido ao deboche.

- Não me faça rir, Irene! Se você é assim tão esperta, por que permitiu que eu ficasse aqui por tanto tempo?

- Queria ver por quanto tempo você levaria adiante esta farsa, e também queria conhecê-lo melhor. Seus trejeitos, atitudes, manias... Os guerreiros de elite de Rio Contrário já estavam avisados para ficarem de olho em você. Estava só aguardando ansiosamente o momento em que você agiria, e como agiria. Mas você é um idiota. Me interpelar quando estou ao lado destes dois gênios da luta?

Toni e Ren estavam entendendo muito pouco da conversa, mas trocaram olhares risonhos ao ouvir "gênios da luta".

- Na verdade, antes de ter que apelar a estes métodos brutais, eu queria chamá-la à razão, Dragoa das Águas. Esqueça o Perna de Magia e a Ira dos Sons. Os elementais estão se mexendo. Os Antigos estão se mexendo. De repente todos resolveram ficar em alerta. Mas isso não me interessa. Os Ondinas querem reunir a todos, você inclusive. Me disseram que você já ignorou várias vezes o chamado. Minha missão é unicamente levá-la até eles. Mas tive que adiar meus planos porque de repente você resolveu sumir da vila. Fiquei muito preocupado com sua demora. Eu teria que esperar por quanto tempo? Sabia que você tinha um informante fora daqui, e só pude imaginar que você tinha ido atrás dele, porque algo deu errado. Eu acho que ele descobriu o que não devia, certo? Talvez a Next Machina...

Atrás dos três, Puppet soltou um bip alto e seco. Que não foi notado por ninguém.

- Emon é um problema meu, Gerson. E eu não vou voltar para os Ondinas. Já disse isso a eles há muito tempo. E, muito menos, quando isso significa que uma pessoa como você terá um deles como parceiro.

O homem magricela se empertigou, como se ultrajado. Esticou o braço que segurava a esfera, e então eles conseguiram ver que se tratava de um globo de gelo, tão liso e bem trabalhado que parecia vidro. Uma esfera de gelo eterno. Um vislumbre de preocupação perpassou o rosto de Irene: era um artefato elemental.

- Eu tentei fazer isso da forma mais simples, Irene, que foi tentar me tornar seu amigo...

- Uma pessoa tão ensebada e grudenta como você dificilmente cativa alguém.

- ... então terá de ser do jeito mais drástico. Não se preocupe, Irene. Eu só terei permissão de usar este objeto integralmente assim que arrastá-la até lá. Mas me disseram que se você não quisesse voltar, poderia chamá-los para me ajudar...

Um clarão originou-se da esfera de gelo, ofuscando o trio. Sequer tiveram tempo de se recompor, quando notaram dois seres flutuando ao lado de Gerson.

Toni e Ren mal podiam acreditar em seus olhos. Nunca haviam visto um elemental antes, a não ser gravuras em livros. Um se apresentava em um corpo masculino e o outro possuía formas femininas. Eram incríveis em sua serenidade, a água cristalina que os formava circulando o ar, como num ciclo. Filamentos de magia os envolviam, dando unidade e impedindo que a água se dispersasse. O líquido respingava nas roupas de Gerson, que estava entre eles. Encontrá-los ao vivo era sempre um espetáculo impressionante, mesmo para quem já estivesse acostumado à sua presença. Por isso mesmo, o magricela encarava-os maravilhado, com um sorriso meio torto, que enviesava sua boca.

O corpo de Gerson percebeu antes que seu cérebro. Um frio congelante dominou o ambiente num milésimo de segundo, arrepiando os pêlos dos braços do homem. Antes de ter qualquer reação, o elemental com formas femininas estava congelado, a ponto de trincar, e soltando fumaça. O magricela não entendeu o que houve, e ainda estava sorrindo quando desviou o olhar na direção de seus antagonistas.

Uma aura branca, como uma espécie de neblina enregelante, envolvia Irene, e ela estava com a mão espalmada, mirando na elemental. Seus olhos eram pura concentração implacável. A friagem terrificante parecia não incomodar os irmãos ao seu lado, que olhavam embasbacados a estátua de gelo, onde antes estava aquele ser de água pura.

- Puta merda, ela congelou um elemental! - gritou Ren, em sua surpresa.

No mesmo segundo, Irene virou-se para o outro elemental, com a intenção de fazer o mesmo. Mas foi impedida em seu ímpeto quando uma esfera de gelo voou em sua direção. Pega no meio de uma ação, ela não respondeu a tempo, e quando a bola tocou a aura que a circundava, criou um campo de força ao seu redor. Ato contínuo, foi como se não pudesse manter sua forma. Os braços caíram junto aos flancos, semi-transparentes. O frio amedrontador foi diminuindo de intensidade. Todo seu corpo foi perdendo a solidez e cor. Em instantes, tudo o que podia ser visto dentro do campo de força era água. Água com forma humana. Água que com seus braços líquidos tocou a parede formada entre ela e o mundo. E que encarava o homem magricela com extrema raiva, com seus olhos aquosos e sem globo ocular.

- Vou matar você! - Todos viram apenas a boca de Irene se mexendo. Todos, com exceção de Ren. Ela ouviu uma voz gorgolejante, como de uma pessoa se afogando.

Gerson, rígido pelo frio que congelava seus ossos até um segundo atrás, ainda estava com a mão à frente após ter lançado a esfera, e sentia-se exultante por ter acertado. Não podia permitir que ela congelasse o outro elemental, ou estaria em séria desvantagem.

Irene sacudia a sua prisão, batendo como um tsunami contra a parede. Estava furiosa, como se odiasse ficar naquela forma.

O elemental que restara tomou a frente. Aproximando-se de sua irmã congelada, colocou a mão em seu ombro e depois no rosto, num gesto terno. Em seguida, seu braço se alongou em uma forma fina, como um chicote. E então, a partir da cabeça, cortou-a ao meio, num movimento perfeito que a dividiu em duas partes exatamente iguais. Cada metade caiu para um lado, e assim que tocaram o chão, transformaram-se em milhares de cacos.

Toni, Ren e Gerson fizeram caretas de incredulidade e nojo, ao mesmo tempo. Irene, em sua forma líquida, permaneceu impassível.

- Em partes menores, ela poderá retornar à natureza e se recompor mais rapidamente. Preciso mesmo explicar isso?

O elemental, numa voz gorgolejante semelhante à que Irene havia produzido, dirigiu-se a Gerson. Desta vez, todos ouviram. Voltou o olhar à prisão, encarando a mulher liquefeita ali retida.

- Irmã, você precisa retornar conosco. Temos muito que conversar...

Toni se colocou à frente do cárcere. Após um segundo de hesitação, Ren o acompanhou. Ainda se sentia relutante por estar ajudando Irene. O irmão não parecia ter dúvidas.

O elemental ficou sem ação por um momento. Era um elemento da natureza sustentado por magia, mas não tinha instinto agressivo. Apenas elementais com um pacto atacavam, obedecendo aos comandos de seu parceiro. Quando humanos se colocavam deliberadamente contra eles, quando não havia uma ordem a seguir, não sabiam como proceder, pois não faziam distinção entre bem e mal. Para eles, todo ato era isso: apenas um ato. Não era bom nem ruim. O único instinto que tinham era o de permanecerem unidos.

- Por que se colocam a minha frente? Ela é uma ondina como nós, deve estar conosco.

- Ela não quer ir com você, não percebeu? - Toni devolveu.

O ondina, que era como os elementais se chamavam entre si, ficou confuso. Ele não entendia muito bem questões de vontade e livre arbítrio, pois só seguia o movimento da natureza.

De repente, enquanto o elemental pestanejava, Toni soltou um grito. Ele lutava contra a grama que havia crescido mais que sua própria altura, e se enrolava ao redor de seus braços, pernas, tronco e pescoço. Ren desviou o olhar do elemental para mirar Toni e deste para Gerson, que ainda fazia gestos com as mãos.

- Não adianta conversar com eles, ondina, temos que agir! Ataque!

Agora, com um comando claro, o elemental de água saiu rapidamente do torpor. Caiu como uma enxurrada em cima de Ren, desferindo vários golpes com seus braços em forma de chicote. Enquanto desviava das lâminas de água por centímetros, a garota de cabelos negros teve a presença de espírito de usar uma das imposições de mão que Irene lhe ensinara em sua estadia em Rio Contrário. A um movimento de sua mão, foi como se uma navalha passasse aos pés de Toni.

Liberto da grama que o segurava, ele partiu para cima de Gerson, numa velocidade tão grande que parecia voar. Sabia que não devia abusar de seu corpo naquele instante, mas não tinha opção. A densidade da perna de magia oscilou por um centésimo de segundo enquanto ele juntava a energia necessária para envolver o braço. Este adquiriu um aspecto muito semelhante à perna.

Gerson notou que o rapaz manipulava a magia de maneira a construir uma espécie de armadura ao redor de seu corpo. Na falta da perna esquerda, a armadura funcionava como suporte.

O homem magricela, mesmo não sendo tão ágil quanto seu adversário, pulou para trás e escapou do alcance do braço mágico, que procurava seu pescoço. Quando pretendia contra-atacar, foi surpreendido pela mão em sua traqueia. Continuava fora do alcance de Toni, mas não de seu braço mágico, que esticara um metro para poder cobrir a distância entre eles. Descobriu da pior forma possível que o jovem podia conceber a forma de sua magia como quisesse.

Forçando a garganta do homem, Toni girou 180 graus, dando um puxão que o tirou do chão, fazendo com que voasse por sobre sua cabeça, terminando por arrebentar o Omag franzino contra o solo. Puxou rapidamente o braço de volta, até o tamanho normal.

- Maldito Perna de Magia! Como pode ser tão habilidoso, sendo um reles nível 1?

Ren estava aterrorizada frente ao elemental. Ele atacava com a fúria de uma tormenta, e ela mal conseguia se desviar a tempo das lâminas. Usava o ruído que ele fazia no ar para tentar antecipar um pouco seus movimentos, mas o ser era muito rápido. Seu ouvido captava, mas o corpo quase não respondia a tempo. Um corte particularmente doloroso em seu ombro ardia enquanto o sangue brotava.

Ren emitiu um som em alta frequência, um incômodo silvo agudo. A vibração do ar atingiu o peito do ondina, e a água que havia ali explodiu em direção às costas, deixando um enorme buraco redondo. No mesmo segundo, a criatura aquática preencheu com mais água o local, e foi como se nada o tivesse acertado. Simultaneamente ele voltou à carga, assumindo uma forma mais abstrata, que conseguiu envolver o corpo da garota. Ela agora estava totalmente imersa, com exceção da cabeça, que tentava desesperadamente manter fora do líquido. Quando o manto tentava cercar seu rosto, explodia um estridente barulho com a boca, o que fazia com que aquela parte do líquido espirrasse para longe. Mas estava entrando em pânico. Por mais que se mexesse, o fluido a acompanhava, e não permitia que se livrasse. Movia os braços, como se tentando espadanar a água para longe, mas ela insistia em permanecer ao seu redor.

Subitamente, perto de seu ombro, o elemental assumiu forma. Porém apenas a cabeça e um braço. Cansado daquele jogo, calculou o tempo entre os gritos da garota, e meteu o braço todo na boca dela, de modo que a água preenchesse a garganta e os pulmões, assim impedindo-a de soltar aqueles berros tão irritantes. Enquanto sufocava, Ren ouviu o elemental se dirigir a ela.

- Não se preocupe, só quero que você fique inconsciente...

Mal tendo tempo de concluir a frase, o ondina sentiu uma enorme quantidade de energia colidindo com a água que formava seu corpo, e uma boa parte desta se evaporando instantaneamente. Foi obrigado a puxar o braço de volta da goela da humana, para preencher as partes danificadas, onde era mais necessário. Enquanto Ren dobrava os joelhos no chão, tossindo espasmodicamente, água saindo da boca e nariz, o elemental se virou para a origem da energia que o queimara. Deparou-se com Toni, que acabara de desprender uma bola de energia de suas mãos. Logo em seguida, o rapaz teve de voltar sua atenção a Gerson, que o atacava com uma espada feita de madeira e grama. O ondina ficou sem reação por um momento, indeciso entre voltar e imobilizar a humana ou ajudar seu parceiro com o outro humano.

- Venha aqui e me ajude com esse nível 1 nojento!

E então ele não precisava mais se decidir.

Ren ainda tossia nervosamente, paralisada. Não só devido a seus pulmões que queimavam pelo líquido que ainda não havia saído, como também pela crueldade da investida do elemental. Aquilo não parecia significar nada para ele, pela naturalidade com que falou.

- Não fique impressionada, Ira dos Sons, ondinas têm exatamente esse modus operandi. Eu disse que eles não fazem julgamentos morais.

Ren olhou na direção da voz. Era uma frequência tão alta que o ouvido humano não captaria. Encontrou os olhos aquosos e sem expressão de Irene, dentro de sua prisão.

- Olha só! Um tiro no escuro e funcionou! Então você consegue escutar magia!

A irmã de Toni só conseguiu encarar Irene, aturdida. O som de sua voz era estranho, que mesmo Ren tinha de prestar muita atenção para conseguir distinguir. Mas não era estranho de todo. Era bem familiar, na verdade.

- Essa é a frequência com que a magia vibra e produz som. Os ondinas - e qualquer ser mágico, na verdade - a usam pra se comunicar entre si. Claro que eles usam uma língua própria, mas também podem falar a língua-mãe de Novea sem problema, apesar de soar meio estranho.

A garota conseguira se controlar um pouco, e agora tossia com menos violência e erguia-se devagar. Ainda estava chocada, sem a menor ideia de como agir.

- Mas chega de conversa, Ira dos Sons! Você estava indo bem contra o elemental, mas é muito delicada! Pare de concentrar sua magia em pequenos pontos do corpo do ondina. Isso não ajuda em nada, porque ele pode sempre recompor a área que se separou dele, como você pôde observar. Use toda sua força vibratória pra atingi-lo por inteiro!

Toni, alheio a toda a conversa, continuava o embate. Gerson não era rápido, podia facilmente se esquivar das investidas dele. Mas o elemental estava agora na jogada. Lâminas de água e de madeira voavam contra ele, e havia golpes que não conseguia impedir, sendo obrigado a fazer magia crescer velozmente em forma de armadura no ponto atingido. Esses pontos já estavam ficando doloridos, enquanto tentava revidar de alguma forma.

Decidindo concentrar suas forças no oponente mais acessível, desviou-se de uma lâmina de água particularmente letal desferida em seu pescoço, e acertou um murro com a mão coberta de magia bem no meio da face de Gerson.

O homem voou para trás por pelo menos três metros, e o nariz, além de esmagado, estava chamuscado.

Ainda no frenesi, Toni sentiu o braço não protegido por magia ficar gelado. Num átimo, pelo canto do olho, verificou que o elemental usava o mesmo procedimento que tentara com sua irmã. Ele queria afogá-lo.

"Morrer afogado em terra firme? Ridículo!"

Toni ainda teve tempo de pensar, antes de fazer a armadura mágica migrar de um braço para o outro, fazendo a água ao redor entrar em ebulição. O elemental emitiu um som bizarro, como se gritasse. Sua boca continuou aberta num grito, mas Toni já não ouvia mais nada.

O elemental se inflou como uma onda, caindo sobre a cabeça do rapaz da perna de magia. Segurando a respiração, Toni se preparou. Foi quando sentiu todo o ar ao seu redor vibrando.

Ren, caminhando resoluta em direção a eles, emitia uma ressonância tão forte que todo o líquido do elemental tremia. Toni conseguia sentir seus ossos chacoalhando. A vibração fazia com que as moléculas de água sacudissem cada vez mais rápido, tornando a forma do ondina instável. E então, num rompante, várias porções de água se espalharam pelo ar, ferventes. Ren foi tornando cada uma ainda menor, até que sumissem por completo ou fossem absorvidas pela terra. Um último grito estridente foi lançado quando a cabeça do elemental desapareceu entre vapores escaldantes.

Os irmãos se encararam. Uma sorrindo e o outro bestificado. Nunca vira a irmã usar uma parcela tão grande de seu poder.

- Não! Não! Malditos nível 1, como se atrevem? Eu tenho um objetivo, e vocês não vão me impedir! Preciso mostrar aos meus confrades a evolução!

Gerson partiu como um louco para cima de Toni, a espada em riste. Ainda tentou envolvê-lo com a grama, para que não se desviasse do golpe. Mas o jovem, vendo o gesto feito pelo magricela e a magia viajando de sua mão até o solo, antecipou o ponto onde a grama subiria para prendê-lo. Fazendo um zigue-zague, invadiu o espaço pessoal do adversário, acertando-lhe um soco no meio do peito. O homem ofegou alto e se apoiou em Toni, segurando-o pelos ombros. Este o afastou com um safanão e, enquanto o corpo despencava, notou que os dois focos de luz na altura do esterno - seus corações de magia - apagavam e acendiam, como algo falhando. Quando atingiu o chão, eles se apagaram por completo.

- Hum. Que estranho. Isso deveria acontecer? - perguntou, mais para si mesmo.

Quando Ren estava próxima de perguntar do que ele estava falando, o artefato elemental que aprisionava Irene emitiu luz mais uma vez, junto a um som de algo que trincava. Subitamente, o objeto se desfez em líquido, que caiu sobre a água que era Irene, finalmente liberta.

- Pacto desfeito. Pois é, Gerson, você falhou em sua missão.

A mulher em forma líquida aproximou-se de onde estavam os irmãos, com Gerson a seus pés. Aos poucos ganhava cor e se solidificava, reestabelecendo sua condição humana. Os cabelos cor de palha, que ela sempre trazia presos, vinham agora soltos e úmidos. Só quando Irene emparelhou com eles foi que perceberam que ela estava nua. Ao mesmo tempo, os primeiros guardas começavam a chegar, junto com os moradores da vila, atraídos pela balbúrdia da luta.

- Irene, o que é isso?! Vá pegar suas roupas, mulher!

- Ah, me desculpe, Ira dos Sons. Como ondina, eu acabo esquecendo desses detalhes...

Enquanto Irene dava as primeiras instruções a Gabriel, capitão de seus guardas de elite, que não parecia nem um pouco incomodado com sua nudez, Afonso, que também havia notado a confusão nos arredores e veio correndo, apanhou a roupa dela. Enquanto isso, Toni não se fez de rogado e deu uma boa olhada no traseiro da mulher. Tomou um tapa da irmã no braço.

- Você tome vergonha!

- Ah vá! Sou cego eu, por acaso?


__________________________________________________________


Oi, pessoal, é a Priscila de novo! O que estão achando da história? Se vocês estiverem curtindo, não esqueçam de fazer a alegria da autora comentando sobre isso! Podem dar críticas e sugestões também, sou toda ouvidos!

Qual o personagem favorito de vocês até agora?

Não esqueçam de deixar um votinho também! =P

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