XX.I - PERTURBAÇÃO

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Vinst caiu contra o haxen em meio a uma maré de entulhos. Mal teve tempo de avaliar as múltiplas contusões que o corpo lhe relatava por meio da dor e foi jogado para o lado. Bateu com força contra um móvel pesado, ao que o bruxo pulou de pé, as vestes negras cobertas por poeira, arranhões e rasgos, e começou a revirar as o monte de cacos e entulhos em busca de algo. O artefato!, Vinst soube, e adiantou-se: desenterrou o sabre pelo punho e estocou com destreza contra a mão do haxen, que já mirava o artefato contra ele. Viu quando a lâmina cortou pele, carne e ossos, e o homem soltou o objeto com um grito de dor, e então Vinst avançou contra ele, pronto para lhe trespassar o torso com o sabre, mas o homem desarmado e de mão dilacerada acertou um chute na lâmina do capitão, girou e acertou-lhe um soco na têmpora, ao que Vinst viu-se por alguns instantes desnorteado. A visão escureceu por um tempo e todo o corpo protestou: sangue empapava-lhe a bota direita e os cotovelos pareciam em carne viva. Quando o capitão voltou-se contra o haxen novamente, o sabre pronto para outro golpe, tudo que pôde ver foi a capa do bruxo segui-lo cômodo afora, com um drapejar maldito, e sumir num corredor escuro.

Vinst fez menção de seguir o haxen porta afora, mas parou quando viu o artefato caído, coberto de sangue, sobre o tapete antigo; pegou-o sem hesitar, escondendo-o nas vestes, temendo que o bruxo voltasse para reavê-lo. Precipitou-se como uma flecha corredor adentro até ver-se perdido na escuridão sinistra. Uma corrente de ar percorreu o recinto e Vinst sentiu a presença maldita do haxen a ameaçá-lo a cada passo, com medo de que — por meio de qualquer arte haxeniana — o bruxo se materializasse na sua frente e o golpeasse no rosto ou cortasse seu pescoço — ou pior: que o haxen viesse por trás, como um pária trapaceiro, e o apunhalasse sem que tivesse a menor chance de defesa.

O medo que lhe sitiava o corpo assumiu proporções inimagináveis, e cada fibra do corpo retesou-se e doeu, pois acabava de lhe ocorrer novamente que nada se sabia sobre a natureza do mal que enfrentava. Diferente dos inimigos da sua antiga vida — uma vida longe em tempo e espaço —: se por um lado as tempestades do mar, terríveis em sua fúria, ameaçavam levar o Viúva para os reinos profundos e gélidos, Vinst se gabava de conhecê-las tão bem que podia gritar aos ventos que aquele era o seu elemento, e que nem o próprio Leviatã viraria ao avesso o navio que herdou do pai se tivesse ele os pés plantados na madeira úmida convés ou as mãos firmes no mastro.

Enclausurado no corredor escuro e enfrentando um inimigo de poderes desconhecidos, Vinst concentrou-se contra as garras do pavor, respirando fundo e sentindo a mente clarear um pouco, pois tinha o sabre empunhado firme e vestia o negro, o que o fazia desaparecer na escuridão, enquanto o outro estava desarmado. Encheu os pulmões mais uma vez, estreitou os olhos como fazem os predadores nas noites sem lua e seguiu pelo corredor até o fim, de onde surgia uma luz pálida de uma porta entreaberta, pela qual entrou.

Olhos animalescos saudaram-no novamente das paredes: era a sala dos troféus onde estivera há poucos minutos; em algum lugar ali deveria estar a porta para a ponte levando ao outro prédio, mas antes de poder divisar melhor as esquadrias do ambiente, a escuridão atrás dele solidificou-se e sentiu uma pancada tão forte na nuca que rolou para frente, caindo no meio da sala escura. O bruxo avançou contra o capitão caído, um pedaço grande de madeira projetando-se das mãos, mas Vinst, guiando seu corpo contundido como um mestre de marionetes, virou-se para o lado e atingiu-o no flanco, o sabre rasgando a pele macia.

O bruxo soltou um gemido de dor, deixando a arma improvisada cair — um atiçador de lareira, Vinst notou — e rumou, meio andando, meio mancando, para a ponte longa e estreita traspassada por janelas — todas escancaradas e empenadas; continuou a andar, lançando olhares de esguelha para trás, até que o capitão Vinst alcançou-o, agarrando-o pelas vestes contra o parapeito de um janela — e sentiu que não conseguiria matar aquele homem; aquele bruxo, que quase o matou e o mataria naquele instante, sem hesitar, se o objeto que agora o machucava na cintura — aquele artefato estranho e longo, retorcido como um galho de árvore — estivesse em sua mão. Mas o rosto, tomado por machucados e sangue vívido, bem como o corpo injuriado, magoado e ferido, coberto com o manto maltrapilho, tocava de forma tão estranha a alma do capitão ensandecido que ele só pôde parar e observar o outro sob a parca luz do luar, o sabre ainda firme numa mão enquanto a outra segurava a gola do haxen. 

Vinst deu por si afundado num dos mais elevados sentimentos de respeito: aquele que se tem pelos rivais mais odiados.

— Você— — começou ele, sem saber direito o que queria realmente falar. — Você é um haxen! — a voz saiu tremida e insegura e o capitão quase não a reconheceu. — Por que invadiram a cidade? O que vocês querem aqui?!

O haxen não esboçou qualquer reação e limitou-se a encarar o capitão, o rosto pétreo exibindo um misto de curiosidade e hesitação, então pigarreou e disse algo em skjaal — algo a ver com poder, pelo pouco que Vinst pôde entender daquele dialeto —, ao que se seguiu o silêncio novamente. Os dois se entreolharam, um tentando entender o que o outro tinha a dizer sem, no entanto, emitir qualquer palavra. Seu olhar ainda inspirava um tipo misterioso de medo, mas Vinst não se deixou afetar: era um palmo mais alto e tinha o sabre empunhado. Talvez seria melhor capturá-lo e levá-lo ao magíer, afinal!, pensou Vinst consigo mesmo, sem deixar a resolução transparecer no olhar cuidadoso e frio que lançava contra o haxen, quando um relinchar alto quebrou o silêncio, acompanhado por cascos apressados sobre a pedra.

O haxen moveu-se mais rápido que se podia imaginar para um homem em sua condição, estendendo a mão para a cintura do capitão, onde viu sua arma brilhar — e mais uma vez o capitão Vinst lhe antecedeu o movimento: recuou um passo para trás e, com uma pesada desajeitada, atingiu-o meio peito, meio na barriga, jogando-o contra o peitoril com tanta força que o bruxo despencou da ponte, dentro da escuridão.

Vinst desceu para a rua com a agilidade de quem já conhecia o caminho, cruzando a sala entulhada, descendo as escadas de madeira e pulando a janela quebrada, e então forçou os olhos para entender o que via, pois um cavaleiro encontrava-se de pé ao lado do trapo estirado sobre o chão de pedra que era o haxen.

— Capitão Vinst! — exclamou o outro. — Capitão! Solte o sabre, ele está morto!

Era Teriá, as rédeas do palafrém de Marëll em mãos.

Vinst pareceu não capturar a coincidência da ocasião, muito menos deu atenção à presença do companheiro ali, e limitou-se a forçar os olhos para o corpo caído, como um trapo no meio da rua: morto, sem dúvidas. Arrastou-o pela rua até perto do corpo do jovem arqueiro e observou-o sob a luz da lua, que agora iluminava quase que perpendicularmente a cidade. Seus olhos estavam abertos e leitosos e a boca, repuxada e esticada de forma grotesca, parecia prestes a gritar de pavor; a pele já se mostrava um tanto acinzentada, o que era uma mudança abrupta para ter ocorrido no intervalo de poucos instantes — se tanto! Era como se o haxen já estivesse morto há dias.

Teriá chegou puxando o palafrém e alguns instantes depois ouviram Marëll a descer do telhado, pulando para o chão com pés firmes e juntando-se a eles; os dois trocaram algumas palavras — o sarhájo parecia realmente irritado, tomando da mão do outro as rédeas do seu próprio cavalo de guerra —, mas Vinst só tinha olhos para o corpo, examinando contusões e revistando as vestes.

— Capitão, já não precisa mais disso — disse Marëll segurando-o no punho que, sem perceber, ainda encerrava com firmeza o sabre. — Fez um grande trabalho, capitão: um trabalho honroso e bom! Agora deixe que eu guarde isso— — Sim, isso, pode deixar, relaxe a mão! Isso! — Insistia o homem, pois Vinst parecia não escutar palavra. — O que tem aqui no braço? Teriá, veja só!

Os dois se aproximaram de Vinst e viram, através das vestes em frangalhos que envolviam o antebraço esquerdo do capitão, uma mancha negra tomada por sangue escuro.

— Fui atingido por uma maldição— — No telhado. Fui atingido pelo haxen— — disse Vinst, a voz embargada por algum tipo de emoção que não podia expressar com mil palavras. — Fui atingido pelo haxen! — exclamou para si —, no telhado. Lá em cima. O haxen atingiu-me com uma maldição — terminou ele, a voz um tanto débil.

— Precisamos levá-lo a Raërn — disse Teriá com urgência.

— Sim! — concordou Marëll, e voltando-se para Vinst, disse: — Capitão, ouça! Espere aqui, o que me diz? Espere bem aqui. Teriá, veja — voltou-se novamente ao acólito —, o capitão está em choque!

— Temo que não seja choque, Marëll! Ande, vamos procurar ajuda para levá-los todos daqui!

Marëll correu para os cavalos que ele e Vinst haviam amarrado numa rua próxima e logo voltou para junto do capitão, que não fez qualquer menção em mexer-se quando o sarhájo tentou pô-lo sobre a sela. Teriá não demorou a voltar, acompanhado por um homem simples, cujo cavalo marrom puxava atrás de si uma carroça estreita, e lá puseram os dois corpos e Vinst, num profundo estado de perturbação, e o grupo rumou para a cidadela, chacoalhando pelas vielas estreitas.

VIRMÍRIA I {REVISÃO}Onde as histórias ganham vida. Descobre agora