VIII - BASTIÕES

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O ampulhetário velho era uma construção à beira do seu milésimo ano e, desta forma, figurava entra as mais antigas torres da cidade portuária de Vulkermónt, às margens do rio Tulinver. A estrutura, antes cinzenta, agora coloria a cidade com diferentes matizes de verde dos líquens, que cobriram pelas pedras da torre, já quase tocando ampulheta de vidro no seu topo. As horas eram marcadas pela passagem dos grãos de areia e exatamente às três da tarde, quando o último grão de areia escorria, a grande ampulheta girava, acionando os sinos que badalavam ferozmente marcando o começo de um novo ciclo.

Os moradores, acotovelando-se um contra o outro na praça do mercado, ao redor do ampulhetário velho, mal percebiam os sinos, tampouco o vento gélido dos Reinos da Noite, que, sem permissão, adentravam entre as vestes e descorava as faces . 

Dessa vez, porém, a situação era bastante diferente de qualquer outra tarde de inverno na cidade: centenas de olhinhos colados em faces comuns observavam, com certo brilho de contentamento, o grande símbolo dos venatores — que de certa forma assemelhava-se à letra B — sendo descido do topo de uma das colunas do ampulhetário por uma profusão de cordas grossas apoiadas a polias.

Os prédios que compunham a praça do ampulhetário eram estreitos e longos; ostentavam telhados pontiagudos e das peças de cumeeira penduravam-se figuras estranhas e antigas. Dentre todas as fachadas, adornadas à sua maneira de acordo com a função na cidade, destacava-se a Guilda dos Mercadores, um edifício escuro com janelas em arco que, naquela tarde terrivelmente fria, destituía-se voluntariamente de qualquer função para servir de tablado ao discurso do príncipe de Vulkermónt, Hájenor IV, de pé numa sacada bem acima da praça, de onde olhava, altivo, para os súditos. Sua aparição causou uma comoção instantânea na multidão, virando-se apressadamente para ouvi-lo discursar.

— O símbolo dos venatores — disse, a observar o grande B que já se encontrava a poucos metros do chão — foi confeccionado por ordem dos meus ancestrais, numa época escura e tenebrosa na qual víamos — nós humanos — encurralados por seres bestiais armados com toda sorte de artifícios para destruir-nos os corpos e beber-nos o sangue! Sim, uma época escura, como disse, mas nós vulkers erigimos e fortificamos nossos lares, muramos nossas cidades e patrulhamos a região — e guerreamos! Assim nunca recorremos aos venatores: seu símbolo, honrado e digno de um ofício tão velho quanto a própria raça, nunca foi usado uma única vez. Todos esses anos provamo-nos fortes contra todo tipo de ameaça — bradou o príncipe e apontou para as grandes cabeças reptilianas suspensas em ambos os lados da sacada da sede. De chifres espinhentos e olhos esbranquiçados, as cabeças decapitadas eram um lembrete claro de que aquele mundo escuro do qual falava o príncipe, tão explorado nos contos dos literatos e peças macabras, era de fato real. Como que num esgar, as caras abomináveis e sem vida, cobertas por sangue negro, mostravam dentes finos como agulhas, quase como sorrisos por toda destruição que causaram.

O povo aplaudiu e urrou. O príncipe, com gestos suaves e precisos, embebidos por um carisma raro em sua categoria, pediu silêncio e continuou:

— Serpes são criaturas cruéis, senhores de Vulkermónt — disse ele com severidade. — Somente às bruxas que nos mandaram esses aqui desejaria uma morte tão hedionda; somente às bruxas  covardes no seu reino maldito desejaria como destino o encontro com uma dessas criaturas, na penumbra de uma noite sem luas — disse o príncipe furioso, arrancando mais aplausos; as esmeraldas da coroa brilhando sob o sol pálido de inverno e do olhar desprendia-se um brilho não menos encantador.

O símbolo, agora depositado no estrado atrelado a cavalos, seguia entre a multidão de volta para a citadela, de onde — esperavam todos — não voltaria a sair jamais.

— Os patrulheiros dessa cidade provaram sua lealdade ao enfrentar e perecer perante às serpes! Dentre eles destaco meu honroso primo, sangue de meu sangue, que liderou os arqueiros contra as bestas — os homens e mulheres de Vulkermónt assentiam em concordância já que muitos deles haviam também perdido amigos e parentes no ataque, pois nas bravas cidades do sul trazia-se muita honra às famílias tomar parte nas patrulhas e não raro via-se crianças a brincar pela rua, munidas de varas de madeira, fingindo lutar contra ladrões em nome do kai.

VIRMÍRIA I {REVISÃO}Onde as histórias ganham vida. Descobre agora