XXI - A TORRE MAGÍERA

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A cidade ainda seguia na penumbra da noite. À medida que o grupo avançava pelas vielas de Vulkermónt, Marëll e Teriá à frente, abrindo o caminho a gritos, podia-se ver os moradores voltando a sair de suas casas e, ocasionalmente, aqui e ali, acendiam as lamparinas que se projetavam das fachadas arabescos de ferro.

Marëll, com o espírito ainda muito abalado pelo encontro com o haxen, lançava olhares preocupados para o homem atrás deles, o carroceiro, e além, para os corpos deitados sobre o feno ralo, trepidando e saltitando conforme as rodas da condução colidiam contra as pedras sobressalentes do calçamento. Só pôde pedir, em pensamentos, que Vinst aguentasse. O magíer — o grande Raërn, como todos o chamavam — decerto encontrará uma solução para o capitão, pensava o sarhájo. Não que tocasse flautas para qualquer um, como se dizia nas ilhas de onde vinha, mas, afinal de contas, Vinst não era qualquer um! Nele podia-se ver, dentre muitas outras qualidades — e uma mão cheia de defeitos e erros, há de se dizer —, a verdade: o capitão Vinst era para ele, acima de tudo, verdadeiro. Verdadeiro com os outros e, principalmente, consigo mesmo. Este era o Vinst, diria ele se acaso houvessem perguntado a ele do capitão, um homem verdadeiro!

Marëll era esperançoso demais e via o futuro claro como gema: Vinst, que amava a liberdade do mar, seria livre depois que se provasse digno, pois Arkik, sabiam todos, testava o coração dos homens através da guerra. Querendo o capitão ou não — ou melhor: acreditando ou não —, Marëll tinha a convicção de que estavam todos prestes a provar sua elevação perante o Deus, que certamente tinha o escudo sobre suas almas, e mesmo que morressem, seriam abraçados por Arkik e receberiam então um novo envólucro — um novo corpo, uma nova casca —, da qual fariam a sua morada e voltariam à Era para lutar a boa-guerra.

Teriá seguia ao seu lado, montado no palafrém alvo de Vinst e puxando pelas rédeas seu pangaré, que esforçava-se para companhar o trote apressado que se exigia das montarias.

— Por que teve que pegar logo o meu palafrém, maldito? — bradou Marëll ao lembrar-se do ocorrido: Teriá os deixara para trás! O acólito não respondeu; talvez nem tivesse ouvido, tal era a preocupação que se expressava em cada sulco do rosto jovem, temperado com uma forte dose de urgência. Havia no incidente do capitão algum tipo de gravidade que escapava à compreensão de Marëll, o que fez com que tremesse de medo. Tentava afastar o pior da mente quando viravam numa esquina e saíram enfim do emaranhado de ruelas. A praça da Velaria Antiga os saudou; a construção agourenta, mil vezes negra, destacava-se no céu noturno e refletia as piras que ardiam ali.

A praça estava lotada e o vozerio do grande velário sobrepunha o trote dos cavalos. Aqui e ali reuniam-se os vulkers em grandes grupos, envergando armaduras de patrulheiros ou as roupas simples dos cidadãos, segurando armas e tochas. Por todos os lados viam-se queimava piras a queimar, e além da luz ofuscante e quente, lançavam sombras oblíquas contra o chão. A cena era um âmbar sujo e amarelado, como uma pintura antiga de Era em Guerras. A fumaça que subia era escura e espessa e o cheiro, rançoso e enjoativo, pois queimavam os bruxos que haviam caído do céu — ou que sobrou deles, Marëll pensou consigo. Talvez tivessem encontrado alguns ainda vivos; e caso tivesse, então assim mereciam ser queimados: vivos! 

— Que os queimem vivos, esses malditos! — bradou ele sobre o vozerio.

Teriá, calado como uma porta, pareceu perceber que os vulkers queimavam os corpos dos haxens à vista de todos. O cheiro enjoativo voltou a atentar contra eles quando uma corrente de ar carregou toda a fumaça contra a multidão; muitos cobriram o rosto, enojados, mas a outros o cheiro rançoso parecia não afetar — e pior!, parecia mesmo encorajá-los, pois levantavam as tochas até onde suas ombreiras lhes permitiam e bradavam contra o fogo vivo, e as chamas atiçavam-se e retorciam-se no ar, como locis antigos.

VIRMÍRIA I {REVISÃO}Onde as histórias ganham vida. Descobre agora