XVII - COLINA ABAIXO

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A pequena-primavera havia enfim tomado a cidade de assalto. Não fazia seis dias completos desde que a grande lua azul aparecera no céu ao norte e as flores começaram a irromper por todas as esquinas: algumas diminutas como cabeças de alfinete, colorindo arbustos e vinhas; outras exuberantes e selvagens, atraindo uma enxurrada de besouros e abelhas. O pouco de neve ainda acumulada nos beirais dos telhados oblíquos e cantos de estrada derreteu-se de vez, resultando num lamaçal que ocupou até o mais jovem dos vulkers nos esforços de varrê-la para os portos, onde a massa escura escorria escadarias abaixo até encontrar o Tulinver. O rio crescera e tornara-se tão revolto naqueles primeiros dias que o trânsito foi interrompido por algum tempo. Os percalços e problemas iniciais, porém, de nada diminuíam os afazeres daquele curto tempo entre invernos, pois eram dias de reparar o quebrado e redobrar os estoques.

Não que o sol tivesse ficado mais brilhante ou volta-se ao seu caminho rumo ao zênite dos Reinos do Noite, todos sabiam, pois viam-no passar no horizonte bem ao norte, longe das terras dadas à escuridão e às sombras que se tinha no sul, e a noite ainda caía cedo e raiava tarde. O que trazia aquela amenidade era a brisa. Não o vendaval vindo do sul, gélida como os próprios këalis, nem aquele vapor úmido e asfixiante dos charcos e pântanos das regiões além das Montanhas Azuis, não: a brisa quente e primaveril que soprava vinha das Terras Verdes e cheirava a grama cortada e flores silvestres; era morna e constante, trazendo consigo bandos de aves sazonais que se aproveitavam do pequeno degelo para revolver o solo à procura de alimento, sorver o sal das rochas e cair sobre os cardumes de peixes que abundavam naquela época. Os vulkers, por sua vez, revesavam-se para enfeitar os alpendres com flores, mirtilos e grinaldas, e nas noites mais quentes acendiam piras nos jardins da grande Velaria de Vulkermónt a fim de prolongar a noite, entoando cantigas à lua e ao próprio Arkik para que o inverno fosse brando e a primavera de além, próspera e bela.

O sol, a meio caminho de se pôr, encontrou o capitão Vinst a descer a colina da cidadela em seu palafrém — presente do próprio príncipe. Apesar do clima ameno, trajava a pesada capa de viagem, negra como o chapéu de abas largas. Ao seu lado, montado num animal lustroso, de passos largos e rápidos, vinha Marëll Hárszárv, o sarhájo, com as tranças loiras presas num laço azul em homenagem à data, pois rumavam à cerimônia solicitada pelo príncipe na grande Velaria.

Marëll, falante por natureza, encontrou em Vinst um bom ouvinte. Já havia notado a disposição do capitão em falar pouco, alfinetando aqui e ali com uma declaração astuta e incisiva contra o otimismo exagerado do literato, principalmente no que tangia seu antigo reino — tema recorrente em sua fala lírica — e pouco se importava com isso, o sarhájo. Já Vinst, que por motivos maiores evitava permanecer sozinho consigo mesmo por muito tempo, cedia de bom grado os ouvidos. Além disso, as histórias que lhe eram contadas pelo dito romancista eram em sua maioria relatos de suas aventuras, e falavam sobre lugares que Vinst amaria conhecer. 

Assim como Vinst, Marëll era grande conhecedor dos reinos de Era, dos quais passavam os últimos dias a palestrar longamente, cada qual sobre sua esfera: enquanto Vinst conhecia os homens de negócios e os dignatários de grandes guildas comerciais, Marëll figurou nas círculos mais nobres, pois era de boa nascença, além aparência descente e a voz doce como a flauta que carregava no alforje: usava-as ao seu benefício e sem qualquer escrúpulos para cear nos grandes salões das Terras Trínias, onde as três capitais erguiam-se ante os contrafortes dos Uraës, e dormir nas camas mais confortáveis da Gilderônia — nem sempre sozinho, segredou-lhe o homem. Se era verdade ou não, Vinst ignorava, mas fato era que o homem tinha tamanho talento de narrativa que ele chegava ao ponto de perguntar-se se toda aquelas lendas de mesmerização e morte, sobre a qual conversavam à caminho da cidade, poderiam não ser apenas histórias.

— É como digo, meu capitão, e o que digo tem sempre fundamento, não se engane: não o diria de outra forma, então peço que confie em mim! Li, senhor, com os próprios olhos — exclamou ele —, relatos há muito abandonados num pequeno forte em meio às salinas de Alsávia. Já esteve lá, não é mesmo, capitão?

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