XIV.III - RELATOS DO SARHÁJO

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Incursões, incursões! — repetiu o sarhájo, enquanto uma chuva de aplausos caía sobre o músico. — É só o que sabem fazer, capitão: incursões. Não há qualquer resultado nessas buscas, ou escaramuças, ou o que quer que façam lá para aquelas terras. Sabe bem que os amotinados, malditos sem-pais, vivem em moradas fortes e gigantes — literalmente gigantes! — e que ninguém lhes tira de lá. Abrigam-se em Gaduúm e Kaldufúksa e Daxákúr, fortes dos gigantes d'outrora, e o que pode um sarhájo fazer contra suas muralhas impenetráveis, tão largas quanto grandes, cravadas em montanhas íngremes como os umbrais?, diga-me! Nem árvores sobem ali, é como é! O que podem sarhájos fazer, capitão? Incursões! — bufou.

Manúr olhou para Vinst com cara de cúmplice, a mostarda escorrendo-lhe pelo queixo.

— Mas os jándr— — digo, os sem-pais — corrigiu-se Vinst com rapidez, ao que Manúr se engasgou. — Eles também lutam entre si, não?

— Um bando maltrapilhos sem instrução nem autoridade, é o que são! — replicou Marëll. — Lutam entre si, entre seus domínios; de vez em quando juntam-se para rechaçar-nos, e então voltam-se uns contra os outros! Seguem com seus exércitos mirrados de um lado para o outro das altas montanhas, os estandartes de terra suja e gemas antigas tremulando sobre as cabeças, e anunciam o sítio contra outras cidades-fortaleza apenas para descobrir que a sua também encontra-se em sítio!

— As cidades-montanha? — inqueriu Vinst.

— Como preferir, capitão! Montanhas ou fortalezas: seus contrafortes são imensos e— — E imensos! Vi-as com meus próprios olhos, se quer saber, e lutei por elas. E contra elas! — exclamou Marëll, mostrando uma grande cicatriz avermelhada que alastrava-se do pescoço ao ombro direito, perdendo-se sobre a armadura galante.

Os olhos de Vinst brilharam com um brilho renovado.

— A Batalha dos Filhos de Harim — repetiu o capitão, lembrando-se da música que Marëll cantara há pouco. Todos nos Reinos da Noite conheciam a canção na qual Harim e seus filhos 

— Harim Hárszárv era meu pai — anunciou Marëll, e Vinst por pouco não segurou o acesso de tosse. 

— Então participou do sítio de Gaduúm, sor? — perguntou o capitão, surpreso.

— Se estive presente na traição de Gaduúm, o senhor diz? — corrigiu Marëll, e assentiu. — Um dia estavam conosco e lutavam ao nosso lado contra Kaldufúksa, a Grande-Mina, e no outro viravam grandes caldeiras negras de óleo fervente sobre nossos acampamentos, escondidos em suas amuradas, os covardes! — Deixou escapar um grande suspiro. — A Traição de Gaduúm: este seria o nome da canção, mas soaria mórbido, não acha? Sou dado aos banquetes e cerimônias principescas, onde pouco se aprecia a rabeca melancólica, nem o dedilhado calmo — disse, lançando um olhar aborrecido à dupla de cantores lamuriosos que se apresentavam sobre o tablado; a música era, tal como descreveu Marëll, mórbida e melancólica a um tempo, além de dedilhada com calma. — Pois bem — continuou Marëll —, Gaduúm já sitiava a cidade-montanha rebelde de Kaldufúksa por três anos, outrora grande fonte de riqueza para Sarhajandr — a maior, se quer saber! —, e quando Mãos-de-Pedra enfim ouviu o apelo dos gaduúmos, enviou-lhes os mais bravos homens das ilhas em seu favor, sob o comando de Harim.

— Já as procurei também, capitão, e não há sinal delas — disse Manúr. Sob o olhar intrigado do capitão, explicou: — As flechadas: não há marcas nos pés, nem joelhos e mãos. Nos ombros tampouco. É apenas uma canção, como ele me explicou.

Marëll jogou a cabeça para trás e riu alto, e mais uma vez os olhos da mesa voltaram-se para ele. Seu humor, antes sinistro e impaciente, tomou os contornos de um sorriso largo e sincero, e o homem exclamou:

VIRMÍRIA I {REVISÃO}Onde as histórias ganham vida. Descobre agora