XIV - A SUSPEITA DO ACÓLITO

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Vinst não soube bem o que o acordou, se foram as badaladas do sino ou as batidas à porta, mas decerto se não voltou a dormir no curto intervalo após despertar, sem saber se sonhava e de olhos ainda cerrados, deveu-se somente à dor que lhe rachava a cabeça.

— Capitão? — chamou a voz da porta. — Capitão Vinst?

A voz lhe era conhecida de algum lugar, soube por reflexo, mas as memórias se perderam nos sulcos da mente dolorida enquanto o capitão vestia a roupa. Pôr-se de pé provou-se uma tortura desmedida, e voltou a sentar-se de imediato, amaldiçoando-se por subestimar o vinho do sul.

— Sim? Um— — interrompeu-se Vinst, massageando as têmporas. — Um minuto!

Tentou levantar-se mais uma vez — e mais uma vez voltou a sentar-se, a dor explodindo a mente. Na terceira tentativa teve mais êxito, e cambaleou até a porta, o semblante contraído e os olhos semi-cerrados. Do outro lado da porta estava Teriá, o jovem acólito do magíer de Vulkermónt, envolto na túnica arroxeada, surrada pelo uso e ostentando aqui e ali estrelinhas e meia-luas. Os olhos mostravam-se menos encovados agora, mas a íris negra e opaca ainda destacava-se no rosto pálido, emoldurado pelo cabelo desgrenhado e pelo gorro pontiagudo que caía-lhe pelos ombros. Teriá fez uma mesura breve.

— Capitão Vinst, muito me agrada vê-lo! Achei que tivesse partido com o Viúva, e quando soube do juramento, tive que vir vê-lo por mim mesmo — ao notar a expressão de dor no rosto do outro, iluminado por seu archote — os corredores daquele labirinto eram escuros mesmo pela manhã! —, Teriá perguntou: — Mas o que tem, capitão?

Vinst, a quem não agradava encenação ou qualquer coisa do tipo, deu alguns bons passos para trás e deixou-se cair na cama e afundou a cabeça nas mãos. O acólito compreendeu de uma vez e riu:

— Ora, capitão, dois odres de vinho e uma bela refeição, é o que posso ver, mas e quanto à água, nem tocou, como vejo, pois a jarra mostra-se transbordante, e um sopro seria o bastante para fazer a água escorrer até a cômoda — observou. 

— Dormi antes que pudesse pensar em bebê-la — defendeu-se o capitão.

O acólito deu a volta na cama e sacou do bolsinho da túnica um frasco de vidro; dentro agitava-se um pó ocre, que ardia sobre a luz do archote, e o acólito despejou-o na jarra e misturou por um tempo. Por fim, serviu-a na taça e levou ao capitão.

— Beba, capitão, e o incômodo passará em pouco tempo: tão pouco que vai querer ter algo do meu cicrômolo consigo aonde for — disse o acólito, e riu. — Vamos, segure e beba, capitão — pediu, e Vinst, ainda de cabeça baixa, forçou-se a pegar a taça e sorveu com alguma dificuldade seu conteúdo salgado como os umbrais. — Um pouco de ar fresco nos jardins vai ajudar, o que me diz? — perguntou o acólito, ao que Vinst assentiu.

Vinst seguiu o acólito sem dizer palavras, e, enquanto descia as escadas da torre, volta após volta, já sentiu a mudança de ares: o frio e o frescor do inverno, mesmo que amenizados pela iminência da pequena-primavera, ainda assim descoraram-lhe as bochechas um tanto, e foi somente na falta que Vinst percebeu o enjoativo e adocicado cheiro que impregnava o quarto trancado: queimara todas as velas-de-cheiro e incensos na noite e decerto devia parte do enjoo àquilo. O acólito era meia cabeça maior do que Vinst, e se aprumasse as costas arcadas pelos dias de leitura pesada e experimentos diversos, seria ainda maior. A cintura era envolta por um cinturão escuro, repleto de bolsinhos e algibeiras e de um lado pendia alguns frascos de vidro que tiniam com suavidade enquanto o acólito descia as escadas. 

Patamares seguiam patamares e pouco antes de postular a infinita sucessão de degraus, surgiu diante deles o longo corredor mal iluminado. Vinst não soube quantas vezes viraram à direita ou à esquerda, ou quantos bom-dias foram lançados aos serviçais que atravessavam-lhes o caminho, mas não deixou de sentir os olhares curiosos que os serviçais laçavam contra ele: o capitão cabisbaixo, o rosto coberto pelo chapéu negro de abas largas, cambaleante como uma mula recém liberta de sua carga, e que mais seguia o som dos passos do que via o acólito de fato. 

VIRMÍRIA I {REVISÃO}Onde as histórias ganham vida. Descobre agora