XXVIII - O CAPITÃO DESPERTA

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O mundo era um lugar muito, muito escuro, mas isso não impedia outras coisas — e outros seres! — de serem ainda mais escuros: era nesse mundo que Vinst caminhava.

Os sentidos já não faziam mais parte do que era o capitão, da mesma forma que ele, que era tanto o mundo quanto o homem que o descobria, não mais contava o tempo como o fazia antigamente — muito, muito antigamente —: o tempo agora passava com as badaladas do sino que ele mesmo comandava.

Senhor do tempo, o homem de negro parou suas andanças no mundo, pois já não mais conseguia divisar uma coisa da outra, e, certo de que chegara a hora da escolha — não qualquer escolha, ele sabia, mas a escolha! —, caminhou até a grande torre negra, onde já estivera algumas vezes.

A chuva, que caía do céu plúmbeo, ricocheteava nos altos telhados e era recolhida em torrentes pelas calhas que desciam com toda a água até as gárgulas e quimeras: demônios de pedra que vomitavam a chuva para longe da pedra, amaldiçoando-a no caminho e trazendo infortúnio a todos aqueles que dela consumissem — e era sob uma dessas torrentes de água que Vinst punha-se, o chapéu já encharcado dobrando-se nas abas enquanto um fio grosso de água perpassava suas vestes e fazia sua pele arrepiar-se.

Trovoadas, brandas como reflexos de outra vida, balançavam o mundo de quando em quando, mas nada o afastaria daquele momento: era a hora de fazer a escolha, pois o titã voltava, ele sabia, e com ele sabia! Sentia suas asas, maiores que reinos, avançarem no escuro; suas mandíbulas, cerrada por dentes que mais se assemelhavam a torres de telhados altos, contorciam-se: Wirmyir também era escuridão, assim como ele.

Precisava vê-lo, decidiu Vinst, mas para isso tinha que trazer aquele momento até onde estava.

Ordenou que o sino badalasse, e assim ele o fez: uma, duas, três vezes. Não contente, ordenou que continuasse, até que o décimo segundo badalo ressoou e a cidade, perdida no esquecimento, carente de sons e cheiros e coisas para ver, pareceu prender a respiração por um instante.

A grande porta da Velaria de Vulkermónt se abriu diante do capitão, oferecendo, além de abrigo para a chuva, a escolha. Seu interior era negro como nada antes visto, pois ali dentro manifestava-se o que havia de mais assustador dentro de si, de forma que seu interior erguia-se como uma parede tão insondável quanto impenetrável, de onde surgiram criaturas esguias que ofereceram ajuda ao capitão.

Vinst, confuso, pôs-se a observá-las, pois acreditava que tais criaturas já não mais vivessem em Era, e, no entanto, alheias à sua vontade — pois aquele era o seu mundo —,  os seres antigos saltaram de lá de dentro, deixaram as túnicas cair e revelaram sua verdadeira fisionomia, em nada diferente das estátuas e imagens que o capitão havia visto em outros tempos — em outra vida.

— Capitão Vinst, aguardávamos por sua decisão: dê-nos a chance de acompanhá-lo mais uma vez, sim? — disse uma delas, a voz ecoando pela cidade, ricocheteando nas muralhas.

— Não! — respondeu. — Não tenho tempo. Além do mais — hesitou —, não conseguiria passar por essa escuridão — e, dito isso, os seres simplesmente curvaram-se diante do capitão, os rostos forçados contra o chão.

Vinst, certo do que fazer, rumou à velaria — não às portas, mas às paredes externas, cujas pedras, assentadas com esmero e perfeição pelos mestres inores, abriram deliberadamente brechas em sua alvenaria, nas quais o capitão pôs-as mãos e, ágil como um gatuno do mar que era, começou a escalar. 

Pé ante pé, mão após mão, Vinst venceu a altura que antes o separava do topo daquele grande anexo; não sem qualquer desventura no caminho, porém: por vezes, pendurado apenas por uma mão, sentia a pedra mordê-lo, esmagando-lhe os dedos apenas para depois tornar-se novamente firme ao toque, pois as pedras — ente elemental essencialmente mal —, apesar de facilitar-lhe o caminho ao topo, gostavam de pregar peças e alegravam-se com os gemidos de dor.

VIRMÍRIA I {REVISÃO}Onde as histórias ganham vida. Descobre agora