XIV.III - RELATOS DO SARHÁJO

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— Ardiýon! — exclamou o sarhájo. — Há seus motivos, se querem saber, e talvez um dia lhes segrede parte deles. Amo a vida e as festas, como veem, e mesmo que tenhamos perdido muito naqueles dias, conto a história com o fulgor das batalhas antigas, nas quais, por mais que se diga que sim, Arkik pouco ou nada fez pelos seus, e o curso da vida seguiu feliz e sinistro, como há de ser. Em pouco tempo seremos três homens marchando contra — ou para Hájen — acrescentou, olhando para Manúr — e há pouco que possamos fazer agora para mudar isso. Pelo menos não com honra.

Encheu um corno de vinho até transbordar e sorveu todo seu conteúdo de uma vez. Quando levantou, arrastou a cadeira com alarde, mas dessa vez ninguém lhe lançou qualquer olhar: tinham ouvidos para a balada, apenas, que contava a história de uma moça amaldiçoada pelos locis antigos e que, por fim, parira morcegos como filhos.

— Uma brisa fresca me fará bem aos humores, bons sores, e bem longe de Salomëi e seus morcegos! — disse, e sumiu, cambaleante, em meio aos arbustos.

Àquela música seguiu-se outra, um pouco mais animada, que foi sucedida por outras tantas baladas românticas, e a Vinst e Manúr sobrou pouca escolha senão aplaudir de quando em quando e beliscar e bebericar o que lhes era servido.

— O fumo, senhoras! — ordenou o príncipe, já no fim da noite, e logo vieram as serviçais trazendo consigo grandes recipientes de vidro contendo água aromatizada, ervas de fumo e outras especiarias adoçadas como era do gosto dos vulkers. Em seguida conectaram os recipientes com mangueiras, espalhando-as entre os visitantes. Sobre as ervas, contidas num fornilho acima do conjunto, puseram carvões em brasa e sais coloridos, que estalavam e soltavam faíscas. Já no primeiro trago o capitão sentiu-se inebriado. A fumaça preencheu-lhe os pulmões e a mente, e por alguns instantes o mundo tornou-se escuro e revolto: Vinst gostava daquilo.

Manúr quebrou o silêncio:

— Digo-lhe com sinceridade, capitão — continuou Manúr, aceitando a mangueira do capitão — nós que amamos nossos kais deveríamos nos unir! — e encheu os pulmões de fumaça, puxando com tanta força e os carvões transformaram-se em chamas. — Estamos perdendo tempo lutando nossas lutas sozinhos: Vvysenia, Këalia, Sarhajandr, Blorijke, até mesmo Domêria, apesar de estar meio caminho ao norte. Nós, os Reinos da Noite, unidos, imagine só! Não metamos os Reinos do Sol nisso, é o que penso: aqui eles nada têm a ganhar, não participariam das nossas lutas, e nós só teríamos mais dívidas, é como é! O que me diz, capitão? Lutaria por Vvysenia como luta pelos vulkers, não é mesmo? — perguntou o guerreiro, deixando escapar uma densa linha de fumaça pelas narinas.

— A cada dia convenço-me mais de que não importa em qual lado lutar se os inimigos são haxens — respondeu Vinst, aceitando a mangueira e tragando. — Ignoro qualquer pretensão de nosso kai de unir-se a qualquer outro reino, e se posso dizer uma coisa com certeza, é que não há qualquer união cá no sul como vemos no norte: lá os reinos funcionam como partes de algo maior, um império ou algo assim, como sabe, e aqui, bem— — interrompeu-se Vinst, escolhendo as palavras: — Aqui lutamos cada qual nossas lutas, como bem disse. 

— Mas temos inimigos comuns, não é mesmo, capitão? Nós, vulkers, e vós, vvysenos.

— De certa forma — concordou Vinst. — Não que tenhamos sido atacados por Skjaldrövík como vós, veja bem, mas não é novidade que o dedo negro daquele reino, o Pontal da Bruxa, como chamam aquele braço de terra obscuro, estica-se em direção ao meu reino, e sabe muito bem a tendência das coisas ruins.

— Elas se estendem.

— Se estendem para sempre, é como é — completou Vinst. — Alastram-se como o frio ou a água salgada e envenenam o que tocam: tal é nossa antipatia contra o reino skaal — respondeu, tragando a fumaça doce. — Mas existe um porém.

— E qual é, capitão?

— Somos um punhado de ilhas, nós em Vvysenia, e há pouco o que plantar e colher, se comparado a grandes reinos como Goldäer, Gilderônia ou Terânia. Tampouco controlamos um mar inteiro, como o fazem na Grênia. Resta-nos pouco senão o bom comércio, e nossos cargueiros e nautos fazem inveja a qualquer nação, é como é! — vangloriou-se o capitão. — Como dizem as boas línguas, sor, o comércio é cego, e nossas frotas partem numa manhã de outono, abastecem os porões arqueados nos reinos mais ensolarados a norte e, antes que o inverno acabe, Skjaldrövík já nos comprou todos os sortimentos de pimenta-negra para seu svárte, ou grandes remessas de frutas secas, cravo, tinturas, poções e reagentes, dondaï e fumo gilderão e vinho doce das Terras Trínias. Lá nossos porões voltam-se a encher de cereais fortes e minerais raros e poderosos, tão caros aos khemis do norte — explicou Vinst.

Mantiveram-se em silêncio por algum tempo, passando a mangueira de um para o outro e ruminando sobre conversa e implicações do que Vinst acabara de dizer, até que Manúr voltou a quebrar o silêncio:

— Temos um kai fraco em Jenár. Como vê, marchamos a sós para Hájen, e mesmo que não haja mais nada contra o que lutar por lá; mesmo que a cidade esteja limpa e bela como um dia fora e que de lá não emane a força indizível e terrível, como dizem, ainda assim há um Mal por aí, capitão. Pode senti-lo na pele e no olhar dos homens e na alvenaria fria das muralhas. Somos todos rijkeanos, há de se dizer, mas somente os vulkers lutam contra o Mal! — Manúr olhou de esguelha por sobre os ombros e desceu a voz a um meio-tom: — Que eu vire um dermequim, capitão, se me tomar por um sem-pai, ou um tolo delirante, pois outros compartilham minha visão. — O olhar do guerreiro estreitou-se e a íris abandonou os traços castanhos e tornou-se negra como o breu quando disse: — Temo uma grande conspiração!

Vinst esvaziou os pulmões em grossas lufadas de fumaça rodopiante. Era a segunda vez no dia que lhe contavam de conspirações e pela segunda vez no dia o capitão se perguntou onde estaria se metendo. Se metade do que suspeitava o acólito estivesse certa, qualquer pessoa naquela mesa poderia estar tramando contra a campanha — e contra o reino inteiro. Vinst estudou as expressões dos convidados, todos muito à vontade na ocasião, sorridentes e bem trajados, aparentando tão pouca culpa quanto suas posições lhes permitiam. Voltou-se para Manúr:

— Como?

— Creio que os haxens já tenham Jenár e que o kai não esteja do nosso lado, é nisso que creio!

As implicações do que Manúr lhe dizia eram infinitamente mais perigosas do que as suspeitas do acólito àquela tarde. Vinst sentiu a boca seca; a fumaça agora tinha um gosto amargo. Manteve o semblante calmo, pousou a mangueira de volta na mesa e disse:

— Explica-me, sor.

— Vejo que não o surpreendo, capitão. É alta traição o que digo, ora se não é!, e qualquer outro me repreenderia. Talvez me entregassem por dizer o que digo — mas não o senhor! — disse o guerreiro. — Pois bem, capitão, bem no começo do outono, ainda antes da lua azul trazer o frio consigo, fui pessoalmente a Jenár a mando do príncipe, e não sozinho, veja bem: ao meu lado estavam o próprio magíer de Vulkermónt, o grande Raërn, e seu acólito, o mestre de poções. Estávamos lá nós três, eu encarregado pelo próprio rei de protegê-los — disse o guerreiro, ainda a meia-voz, quando olhou de relance para o alto, preparando-se para retornar à fala, e estacou. O rosto assumiu de uma vez expressões conflitantes como se o homem tivesse visto um penado. 

Vinst voltou o rosto para o alto e viu o motivo do choque: havia um grande olho brilhante passeando pela cúpula da torre magíera, esquadrinhando a cidade e os campos, e talvez muito, muito além.

OLHEM LÁ O QUE VEJO! — gritou o guerreiro apontando para a torre.

O grito causou comoção instantânea vindo de Manúr, pois sua voz potente ecoou pelos jardins e a cabo de segundos estavam todos de pé, inclusive o príncipe e sua família, olhando e exclamando.

— O Magíer! — gritavam uns.

— Ele está de volta! — exclamavam outros.

— Chamem-no, chamem-no!

— Jiorde! Trate chamar o magíer, vá! Traga-o, Jiorde, depressa!

Antes de Jiorde mover-se, outro gritou:

— Não precisa! Lá vem ele!

Lá de baixo viram as seteiras, uma a uma, iluminar e apagar, enquanto o magíer descia as escadinhas da grande torre.

Finalmente saberiam o que acontecera a Raërn durante o seu misterioso sumiço!

VIRMÍRIA I {REVISÃO}Onde as histórias ganham vida. Descobre agora