Capítulo 30 Independente Do Que Acontecer

18 2 0
                                    

Sábado de manhã, acordei ainda muito atordoado com tudo que havia acontecido. Eu não podia acreditar fui sequestrado depois que todos os fatores apontavam que nada podia dar errado. Mas eu estava enganado, mesmo o impossível pode acontecer. Quando é para dar merda é inevitável impedir. O que mais me preocupava era Rebecca, afinal, era ela quem era procurada pelas autoridades por todo o mundo. Mesmo eles seguindo apenas a sombra dela, de alguma forma aqueles homens chegaram perto de descobrir tudo. Aquilo era ruim, muito ruim. Eu não conseguia parar de pensar que Rebecca teve que matar aqueles homens para salvar nossas vidas. Sentia que aquilo me atormentaria para sempre. Pois aquelas mortes de alguma forma também eram minha culpa.

Naquela noite de sexta, Rebecca e eu estávamos muito abalados com tudo que aconteceu. Por isso, optamos por não viajar. Rebecca preferiu não conversar mais sobre o assunto, estava estranhamente quieta de mais e sua testa enrugada e o olhar vago me fizeram supor que era melhor eu ficar na minha. Ela não respondeu nenhuma das minhas perguntas, nem mostrou alguma animação apenas se deitou na minha cama e dormiu. Fiquei mais um tempo acordado a olhando, tentando entender o que se passava na mente conturbada de Rebecca. Fiquei a olhando dormir, estava tão linda que eu não aguentei e tirei uma foto. Pelo menos uma foto da minha namorada eu tinha que ter no meu celular. Mas logo fiquei cansado de ficar pensando no sequestro e em todo o resto. Aquilo estava me fazendo mau. Por isso, mais cedo do que de costume, dormimos abraçados.

Na manhã seguinte, quando já eram umas dez horas, enquanto eu assistia televisão com a minha mãe — tentando agir o mais normalmente possível —, recebi uma mensagem de Tiago. Ele dizia ter se lembrado daquela nossa aposta de que se ficássemos com as meninas pagaríamos um refrigerante para o outro. Eu nem me lembrava mais daquela aposta sem noção. Mas seria divertido sair com meu amigo, conversar e esquecer um pouco o que havia acontecido. Então topei na hora.

Depois do almoço avisei minha mãe que iria me encontrar com Tiago e sai de bicicleta. Nos encontramos em uma lanchonete no centro da cidade, e quando cheguei o fresco estava tomando um açaí.

— Iai? — disse eu assim que adentrei o estabelecimento e me aproximei de Tiago.

— Que cara feia é essa, maluco? — perguntou surpreso, assim que virou o rosto para trás e me olhou.

— Não vim aqui para falar da minha cara feia — respondi enquanto me sentava na cadeira a frente dele. — Vamos acabar com essa aposta logo, afinal nós dois conseguimos o que queríamos — comentei sorrindo de lado. — Garçonete, duas latas de coca! — gritei para a moça que atendia um casal mais a adiante.

— Brindemos à isso — brincou Tiago.

— Você principalmente — comentei me espreguiçando na cadeira. — Conseguiu até namorar com a sua vítima. No meu caso eu só tomei no cu.

— Não fala assim, você aproveitou também — disse Tiago, sorrindo maliciosamente.

— Se você chama ser feito de otário "aproveitar" — enfatizei.

— Você ainda não superou muito isso, né? Eu sei que você gostava da Alana, mas ela não era a certa.

— Disso eu tenho certeza — disse rapidamente, olhando para o lado de fora da lanchonete pela vidraça. — Mas enfim, quando você vai conhecer os pais da Cris?

No mesmo momento, nossos refrigerantes chegaram. Tiago e eu pegamos a carteira e pagamos. Por fim, a aposta estava paga.

— Amanhã — respondeu ele, abrindo a latinha.

— Já? — comentei surpreso.

— Pois é, eu estou apavorado, cara. Tenho certeza que vou fazer muita merda. Olha para a Cris e olha para mim. Os pais dela são advogados. Vão me odiar. Isso está óbvio!

— É simples, só não fala a metade das merdas que você costuma disser. Faz isso que vai dar tudo certo — aconselhei.

— Está sugerindo que eu seja como você?

— Não. Só não faça a menina se sentir constrangida. Fica mais na sua. Os velhos gostam de pessoas mais quietas — respondi.

— Isso pode dar certo — disse Tiago, tomando um gole do refrigerante. — Vou tentar falar menos merdas o possível, a Cris pode até gostar assim. Mas os pais dela são rígidos, ela disse.

— Hum — respondi indiferente, levando a latinha até a boca.

— O que você tem, cara? — insistiu Tiago.

— Não tenho nada — respondi rapidamente.

— Está com cara de cu desde que chegou. Por acaso está puto porque eu tenho namorada e você não?

— O quê? — perguntei escandalizado. — Claro que eu não estou com inveja de você! Está maluco?

— Eu não tenho culpa se você não consegue uma mina! — disse ele ainda chateado.

— Ah, então é assim? — indaguei já sem paciência.

Então me lembrei que Rebecca havia dito que eu poderia dizer para Tiago sobre o nosso romance.

Rapidamente me levantei e tirei do bolso do moletom o celular, entrei na galeria. E mostrei para Tiago a foto que havia tirado na noite anterior — a única foto que eu tinha tirado dela durante todo aquele tempo, que fiz por impulso mesmo. Nela mostrava perfeitamente Rebecca deitada na minha cama dormido.

Os olhos de Tiago se arregalaram quando esfreguei o celular na cara dele.

— Quando você tirou essa foto? — perguntou ainda incrédulo.

— Ontem à noite — respondi enquanto voltava a me sentar.

— E desde quando você está pegando ela? — Ele estava pasmo.

— Logo depois que terminei com a Alana. Só não te contei nada porque a Rebecca quis que ninguém soubesse, por causa da mãe dela que é o cão — respondi olhando seriamente para ele.

— E vocês já transaram? — Cada vez ele parecia mais surpreso.

— Claro que sim, várias vezes. Mas isso não é da sua conta — respondi sério.

— E você só me fala isso agora, cara! — disse ele animado.

— Ela pediu para guardar segredo.

— Ah, que safados. Agindo como amiguinhos na escola mas se pegam secretamente — comentou ainda mais animado.

Dei de ombros.

— Então quando você disse aquela vez que ela havia aparecido no seu quarto era verdade? E ela continua invadindo seu quarto com muita frequência? — perguntou maliciosamente.

— Todas as noites. E  naquela vez nós não tínhamos nada ainda. Como eu disse, só ficamos quando eu não estava mais com a Alana — respondi.

— Mas esse é o cara! — exclamou. — Por isso que você não joga mais a madrugada toda. Arrumou um brinquedinho muito melhor!

— Pode se dizer que sim — respondi simplesmente.

— E quando vocês vão oficializar?

— Ela deixou eu contar só para você. Rebecca está esperando um tempo para contar para a mãe. Depois disso vamos oficializar.

— Você faz tudo que ela manda! — Ele gargalhou. — Nos tornamos dois gados supremos!

— Isso eu tenho que concordar.

— Mano, eu ainda não entendi a sua sorte. Todos achando que você estava na pior depois que  perfeitinha te colocou chifres enormes. E enquanto isso, você está pegando a gatinha de cabelos azuis. Esse meu amigo é mesmo muito foda!

— Fazer o quê? — Dei de ombros. — Se ninguém sabe ninguém estraga.

— Comendo quieto esse tempo todo, em? Se não fosse a foto eu mesmo iria achar que você inventou isso para se vangloriar.

— Ela não é um prêmio para mim. Não tenho a necessidade de sair mostrando para todos que estou transando com a mina mais gata que já existiu — falei.

— Esse é o meu garoto, estou orgulhoso — disse Tiago, levantando-se rapidamente e me dando um tapinha no ombro enquanto sorria. — Para dois gamers feiosos nós estamos bem de namoradas.

— Boa sorte amanhã, você vai precisar — disse eu.

— Obrigado. E pode deixar que vou guardar o seu segredo.

— Acho bom mesmo. Você não vai querer ver a Rebecca brava — alertei.

— É tão ruim assim?

— Pior do que você imagina.

— Oxi!

(...)

Cheguei em casa um pouco mais tarde do que esperava. Eram quase sete horas da noite e minha mãe me xingou por isso. Não discuti, não tinha cabeça para isso. Apenas jantei quieto e fui para o quarto esperar por Rebecca. Que estava atrasada, quando finalmente senti seu perfume de jasmim no meu quarto eram onze horas.

Estava animado para dizer para ela que havia contado sobre nós para o meu amigo. Assim que a vi, sentada na minha poltrona, seus olhos azuis estavam frios como quando ela matou aqueles homens. O que me fez ficar um pouco receoso, com vontade de fugir, admito.

Rebecca continuou sentada imóvel, apenas seus olhos me seguiam, estava começando a ficar assustado.

— Está tudo bem? — perguntei.

Ela já estava estranha desde a noite passada, mas aquela hora estava pior.

Não teve como eu escapar, quando Rebecca chegou me olhando daquela forma como se fosse me matar, e em seguida caminhou até mim e me beijou ferozmente.

Ela apoiou uma mão no meu pescoço e a outra no meu peito. E seus lábios pareciam querer arrancar os meus. Ela estava diferente, Rebecca sempre foi muito temperamental, mas nunca mordeu meus lábios com tanta violência.

— Você me ama? — Rebecca perguntou, depois de separar nossos lábios com uma mordida.

— Claro que amo — respondi sem entender nada. Passei a mão nos lábios e olhei para o sangue nos dedos. — E por que fez isso? É algum fetiche com sangue?

— Você me ama? — repetiu Rebecca. — Mesmo eu senso assim, essa pessoa terrível? Ou me ama só quando eu sou divertida e te levo para os lugares legais? — perguntou duramente.

— Eu já me acostumei com você. E te amo em todos os momentos do dia, até quando você parece um psicopata. Pois eu já sei que você faz tudo com boa intenção. E que pergunta idiota é essa? Eu te dei algum motivo para duvidar?

— Eu não sou boa pessoa. Tem certeza que ainda vai suportar as merdas que eu vou fazer daqui para frente? — disse ríspida.

— Que papo chato, Rebecca! — reclamei. — É claro que eu vou apoiar todas as suas maluquices. Na verdade é que eu estou começando a gostar delas.

— Do modo como reclama, não estou muito convencida disso — disse ela, irritada.

— Eu não quero brigar com você. Não precisamos discutir, o pior já passou.

Andei até Rebecca e a abracei.

Ela apoiou a cabeça no meu peito e aos poucos foi se acalmando.

— Aconteceu mais alguma coisa para te deixar assim alterada? — perguntei.

— Nada de mais, só mais uma briga com a minha mãe — murmurou ela.

— Vamos para a cabana, aí eu faço aquilo que você gosta e você fica bem calminha — disse eu, deslizando a mão para baixo da saia preta que ela vestia.

— Tarado! — Rebecca ficou vermelha e me deu um soco no ombro. — Mas eu acho bom que faça direito.

— Pode deixar — Sorri maliciosamente e em seguida fomos para a cabana.

(...)

Segunda feira, cheguei na escola mais animado do que nunca. A noite de sábado e de domingo foi bem aproveitada com Rebecca. Ela estava meio calada e emburrada. Mas concluí que pudesse ser uma TPM, ou culpa por ter matado aqueles caras somando com a briga que havia tido com a sua mãe. Eu também não estava 100℅, mas não ficava pensando naquilo o tempo todo. Domingo fomos para Tenebris, e antes de ir para o quarto com Rebecca. Conversei com Dimitri e ele me confirmou que não havia sobrado nenhum rastro das investigações daqueles caras. O que me fez dormir mais tranquilo.

Quando subi as escadarias solidárias da escola, depois de chegar atrasado como sempre. Fiquei feliz em rever meus amigos. Feliz por voltar a minha normalidade depois de quase ter morrido. Rebecca foi a primeira a vir falar comigo quando cheguei. E Tiago sorriu convencido quando nos viu tão próximos. Rebecca sabia que eu havia falado com ele. E mais tarde ela me disse que teve com ele também uma longa conversa. Eu podia jurar que tinha ameaça ali. Mas isso era tão óbvio que eu nem perguntei.

Quando nos sentamos lado a lado nas classes. Fiquei um pouco envergonhado do modo como Cris e Tiago me olharam. "Será que ele contou para ela? Mas é claro, até parece que ele não contaria para a própria namora." Pensei.

Tentei desviar o olhar dos dois. Mas parecia impossível.

— Você está vermelho — disse Rebecca depois de tirar seus cadernos surrados da mochila.

Não disse nada. Apenas olhei rapidamente para o casalzinho atrás de nós. Na esperança que Rebecca entendesse.

— Ah, isso? — disse Rebecca, sorrindo. — A Cris já sabe faz duas semanas. Não é só você que pode fofocar com seu amigo.

— Ah?

Rebecca olhou para os dois atrás de nós e ambos começaram a sorrir.

— Mas por favor, não digam para ninguém. — Rebecca pediu a eles.

— Pode deixar, amiga — respondeu Cris.

E Tiago assentiu, enquanto ambos sorriam

A aula do terceiro tempo era educação física. Mais uma vez debaixo do sol escaldante. Eu não entendia como no inverno, os únicos dias quentes eram os de educação física.

Eu não precisava trocar de roupa, só tirei o casaco. Tiago fez a mesma coisa, mas as coisas com as garotas são diferentes. Elas precisavam ir no banheiro e trocar as calças jeans por calças leggings. Eu não tinha o que reclamar, Rebecca odiava mas ela ficava incrivelmente sexy vestida daquela forma.

— Me empresa uma camisa sua — pediu Rebecca, quando as duas finalmente saíram do banheiro.

— Ué, por quê? — indaguei.

Rebecca revirou os olhos impaciente.

— Quando nós passamos o professor olhou para a bunda dela — respondeu Cris.

Olhei para Rebecca, que estava muito irritada.

— Você tem uma camisa reserva? — perguntou ela de braços cruzados.

— Foda-se se ele olhou para a sua bunda — comentei. — Ele não pode fazer nem falar nada para você. E eu vou ficar de olho e se ele fizer de novo, tiro uma foto e a gente mostra para a diretora.

— É o que eu falei para ela, não precisa ficar se escondendo. Se eu tivesse esse seu corpão não iria me envergonhar, amiga.

— Que mané foto! Me empresa logo uma camisa! — insistiu Rebecca. — Não quero nenhum velho nojento me olhando. Isso é desconfortável!

— Eu tenho uma camisa reserva no armário — disse Tiago. — Não se preocupe que está limpa. Eu te empresto e acabou a discussão, nossa turma já está indo para as quadras e o velho tarado vai nos xingar.

Tiago abriu rapidamente seu armário e retirou uma camisa vermelha que Rebecca vestiu rapidamente por cima da camisa do uniforme. E em seguida, jogou a mochila nas costas — não precisávamos levar mochilas para a educação física, mas Rebecca não confiava nas trancas das portas. Lamentei por não ter uma camisa no armário, pois ela ficava muito mais bonita vestindo as minhas. Com a camisa de Tiago ela mais parecia estar usando uma lona de circo como vestido.

— Perfeito — disse Rebecca. — Sem olhares tarados para mim. O único que pode me olhar daquele jeito é o Arthur — murmurou ela, próxima de Cris.

— Segredo, lembra? — falei em voz baixa.

Rebecca sorriu e levou um dedo até a boca. Tiago e Cris sorriram em cumplicidade.

Corremos atrás da nossa turma que já estava muito adiantada. Sendo assim, inevitavelmente ficamos para trás.

Quando finalmente chegamos, estávamos suados como se tivéssemos corrido uma maratona.

Logo o professor chamou Tiago e eu para jogarmos. Nos xingou por termos perdido o alongamento. Mas mesmo assim, teríamos que torrar nossos crânios correndo vinte minutos atrás de uma bola.

Depois que toda a energia do meu corpo foi sugada por uma quadra fervente. O professor chamou outros alunos para jogar enquanto nós estávamos liberados para beber água e descansar em alguma sombra.

Quando estávamos livre, Tiago e eu procuramos as meninas. Cris havia acabado de terminar de jogar vôlei, e estava fazendo uma pausa também.

— Onde está a Rebecca? — perguntei, olhando em volta a procura dela.

— Ela andou para lá — disse Cris, apontando para o alto de um morro repleto de árvores. — Disse que queria ficar um pouco sozinha. Não sei porquê. Ela está bem estranha hoje, por acaso você fez alguma coisa?

— Que eu me lembre, não — afirmei.

— Acho melhor você ir atrás dela, cara — aconselhou Tiago.

Assenti e segui pela trilha de terra feita pelos maconheiros, que subiam aquele morro para fumar no alto. A cada passo eram vinte bitucas de cigarro no chão. O que Rebecca tinha na cabeça? Por que estava querendo se esconder. Eu sabia que ela havia sofrido o mesmo trauma que eu. Mas se isolar não adiantaria em nada.

Subi a trilha íngreme com certa dificuldade, quando já estava em uma altura que conseguia ver meus colegas jogando futebol. Olhei em volta nas árvores e avistei uma clareira. Era a primeira vez que eu me aventurei a subir o morro do fumo e não fazia ideia que aquelas árvores mais eram um labirinto.

Rumei até a clareira e encontrei Rebecca, de costas para mim, mas de frente para a vista abaixo. Me aproximei e vi que ela estava concentrada escrevendo em seu caderno de capa de couro.

— O que você está escrevendo aí? — perguntei.

Rebecca se assustou e fechou o caderno rapidamente.

— Que susto, Arthur! Já te falei para não fazer mais isso! — resmungou ela.

— Desculpa — murmurei enquanto me sentava ao lado dela no chão. — Por que você veio aqui?

— Queria ficar sozinha. Não estou de bom humor — respondeu olhando para a quadra lá em baixo.

— O professor olhar para a sua bunda te abalou tanto assim? Eu não acredito que a menina mais corajosa do universo vá dar importância para isso!

— Você não sabe o que está falando. Não sabe como isso é nojento — resmungou.

— Te lembrou o dia na praia, né? Mas isso já faz muito tempo.

— Eu lembrei de outra coisa também. Algo nojento que eu queria tanto me livrar.

— Do que você está falando?

— Eu quase não falo dos meus problemas para você, meu bem. Você já tem tantos. Não quero que você se preocupe com minhas bobagens.

— Pode me contar o que quiser. Eu sou seu namorado, pode desabafar comigo — falei docemente.

Rebecca engoliu em seco e começou a falar nervosamente.

— Eu tenho que dizer que menti para você. O cara da praia não era um completo desconhecido. Na verdade quando aquilo aconteceu ele era quase um estranho. Mas depois deixou de ser.

— Ele era o professor? Meu Deus!

— Não. Ele não era o professor. Embora seja igualmente nojento. Ele era o meu atual padrasto — disse envergonhada.

Fiquei chocado e olhei nos olhos cheios de lágrimas dela.

— É por causa dele que você está assim? O que aconteceu? — perguntei.

— A briga que tive com a minha mãe foi por causa dele. Ela não vê, Arthur! Ela não vê que aquele homem me atormenta desde que se juntou a ela. É por causa dele que eu tranco a porta do meu quarto e ela não me chama mais. É por isso que eu fujo todas as madrugadas. Você não tem noção de como é maravilhoso poder fugir de uma realidade terrível e poder viver uma vida diferente e feliz mesmo que seja por poucas horas. Quando eu teletransporto para fora daquela casa, eu não preciso mais fingir ser quem eu não sou, não sou fraca como a minha mãe pensa, e quando estou em qualquer outro canto do mundo, não preciso agradar ela a cada segundo. Eu posso ser livre. As vezes penso que não seria nada sem o teletransporte, ou já teria sucumbido a muito tempo. Ele é a chave que eu só posso usar de noite para abrir o cadeado da minha prisão. Mas durante o dia tenho que atuar para sobreviver. Isso é sufocante. — disse ela, secando as lágrimas.

— Vai por mim, eu sei. Você me mostrou isso, graças a você eu sei o que é a liberdade, mesmo que seja por pouco tempo. Nem me lembro de como era minha vida sem você. Se um dia você quiser fugir, não vou pensar duas vezes em ir — falei.

Rebecca me olhou seriamente.

— Todos temos correntes que nos impedem de voar. Assim como eu ainda não me mandei por causa da minha família de merda. Você não vai querer deixar sua mãe sozinha. Ela precisa de você, Arthur. Talvez mais do que eu — disse ela.

— Verdade — concordei.

— Eu queria tanto poder fazer meu padrasto desaparecer. Jogar em um vulcão ou algo assim. Mas ele é o pai do Robert. E eu não quero fazer meu irmãozinho sofrer.

— Deve ser difícil mesmo.

— Difícil? É péssimo! Eu não suporto aquele nojento tentando me assediar a anos. Quando aconteceu aquilo na praia, ele ainda era namorado da minha mãe. Ele não deve se lembrar muito bem como eu consegui fugir das garras nojentas dele na época, pois era um viciado. Deve pensar que teve alguma alucinação ou algo assim. Eu nunca tive coragem de contar para a minha mãe o que aconteceu naquele fim de tarde. Mas ela sabe, sempre soube das coisas o que ele faz e prefere fechar os olhos. Muitas vezes eu pensei que talvez ela não me amasse. Não como ama esse maldito homem.

Não tinha o que dizer, Rebecca chorava e o meu peito ardia em raiva de pensar que alguém era capaz de ferir aquela doce criatura. Então tudo que fiz foi abraça-la.

Aquilo também explicavam muitas coisas sobre Rebecca. Os motivos dela ser revoltada e ao mesmo tempo ser apegada na família, o que na verdade não era necessariamente sua família por completo e sim seu irmãozinho Robert, que provavelmente era a única pessoa que ela se importava de verdade.

— Um dia você vai se ver livre disso tudo, meu amor. E eu vou estar com você.

— Não é engraçado? — disse Rebecca afastando o rosto do meu peito. — Eu poderia ter sumido a anos e não fiz isso. Nem eu mesma entendo por que não. Talvez eu não seja a garota mais corajosa do universo como você falou. Sou apenas mais uma medrosa que teme de ficar sozinha, por isso te convidei a viajar comigo. Naquela época estava prestes a desaparecer para sempre e por sua causa não fiz isso. Você me deu uma razão para continuar.

— Você também se tornou minha razão — falei acariciando os cabelos azuis de Rebecca. — Antes de você minha vida era um tédio. Só aprendi o que é viver quando você me levou para longe de casa pela primeira vez.

— Te mostrei a parte divertida da vida — disse ela, me olhando nos olhos sorrindo discretamente.

— E a louca também. E isso que eu mais amo em você — adicionei.

Rebecca sorriu e as lágrimas desapareceram enquanto ela rumava seus lábios contra os meus.

— O que você estava escrevendo aí? — perguntei quando terminamos de nos beijar e olhei para o caderno no colo dela.

— Que vergonha de dizer. E algo de menininha, não é do meu feitio.

— A última vez que eu vi esse caderno você estava escrevendo um poema cheio de ódio sobre o Luís. Agora estava escrevendo um para o professor tarado?

— Claro que não. — Revirou os olhos. — Estava escrevendo sobre você.

— Um poema de amor? Que fofinha! Me deixa ver?

— Não! — disse ela, fazendo biquinho e afastando o caderno de mim.

— Ah, por favor. O muso inspirador tem esse direito — implorei tentando pegar o caderno das mãos dela.

— Se você prometer não rir eu deixo — disse ela apertando o caderno contra o peito.

— Até parece que vou ir de algo que você escreveu para mim.

Rebecca sorriu e me entregou o caderno por fim.

Comecei a ler. O título primeiramente, em voz alta.

— Feito Sob Encomenda.

— Que vergonha, por favor não leia em voz alta — reclamou ela.

— Tá bom — gargalhei e voltei a ler.

Feito Sob Encomenda

Passo as madrugadas em claro
Pensando em você
Daria o mundo para te ter
Ainda não me parece real
Na verdade surreal
Estou assustada
Já não tenho certeza de nada
Desisti de relutar
Vou deixar a correnteza levar
Quem diria que isso aconteceria comigo?
Eu não me daria ouvidos
Estou diferente
Você me fez ser melhor de repente

Ainda não sei o que fiz para merecer você
Só sei que não quero te perder
Sei que sou difícil, patética em fim
Não sei o que você viu em mim
Eu era fria e nem um pouco sentimental
Agora transbordo versos
Tudo me parece intenso como o universo
Não me sinto mais tão mau
Isso é normal?

Feito sob encomenda
Não sei como você me aguenta
Você é paz e eu tormenta
Você me faz sentir assim
Expõe o melhor que há em mim
Sempre esperei por alguém como você
Agora não me vejo sem te ver

Enquanto eu lia, os olhos de Rebecca acompanharam cada reação que eu tive.

— Eu amei — disse sorridente e em seguida a beijei rapidamente. — Gostei da parte que você diz que eu dê alguma forma te fiz ser uma pessoa melhor. Porém não penso seja um grande sacrifício de aguentar nem que você seja patética a ponto de não ser boa o suficiente para mim. Eu amei o poema, de verdade.  Quero que você entenda uma coisa, Rebecca. Você é a pessoa mais fantástica desse mundo e do outro também. — Ela sorriu. — E sou eu o sortudo por ter você. — Olhei mais uma vez para o poema. — Gostei que você falou das madrugadas em claro e que você se tornou sentimental por minha causa.

— Melosa como uma menina de 12 anos. Eu disse, não é minha cara — disse ela.

— Você abriu seu coração, está lindo e um pouco sombrio. Pode parecer que não, mas é sim a sua cara, Rebecca.

Ela sorriu e me abraçou.

— Eu sempre vou te amar, independe do que acontecer. Nunca se esqueça disso — disse ela.

— Eu também sempre vou te amar.

Não entendi muito bem o que ela quis dizer, mas não quis estragar o momento. Apenas a abracei e senti o cheiro de tinta de cabelo e o perfume de jasmim.

Fomos interrompidos por um barulho que veio do mato.

Olhamos rapidamente para o local de onde estava vindo o som, e vimos que Cris e Tiago estavam se aproximando.

— Vocês estão espiando à muito tempo? — perguntou Rebecca.

— Chegamos agora, amiga. O professor está procurando vocês dois. Disse que vai descontar pontos se vocês não aparecem na aula dele — disse Cris.

— Vamos, Arthur — disse Rebecca se levantando e estendendo uma mão para mim. — Ou então perderemos nossos preciosos pontos de merda

ETERNAWhere stories live. Discover now