Capítulo XV: A Queda do Mundo (Parte 1)

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República Socialista Soviética da Rússia, Moscou, Outubro de 1939.

A carta chegou em uma tarde de outono para acabar com os dias de cotidiano corrido, onde o medo da situação mundial existia, mas se abalava diante à rotina e ao desenho da realidade íntima de cada um. Antes da chegada da carta, a vida andava em passos estagnados, com mudanças curtas no que concerniam à perspectiva das cinco pessoas que dividiam o apartamento no subúrbio moscovita.

Mas a carta chegou, e com ela, veio a materialização da realidade ampla, aquela que se estendia para além das vinte e quatro horas de um dia, que afetava muito mais que os detalhes e preocupações financeiras... a carta veio como uma representação suprema do caos, como uma verdade que já não não podia mais se esconder por trás da barreira do "fora do alcance" ou das "preocupações do governo".

Apenas um mês antes a Alemanha de Adolf Hitler invadia a Polônia, dando início ao que seria o confronto mais brutal do século XX. Na República Socialista Soviética da Rússia, Mikhail, ao ler a manchete do Pravda sobre o ocorrido a 1400 quilômetros dali, no entanto, apenas bufou e deu de ombros, desacreditando a possibilidade de uma invasão germânica devido ao tratado de não agressão, firmado entre os dois países.

Pavel, por outro lado, ficou apreensivo. Confiar em um pedaço de papel lhe parecia tão seguro quanto confiar que uma folha de vidro poderia sustentar o peso de um ser humano. Estudou o suficiente para manter a lembrança de que tratados se quebravam do dia para a noite e que, portanto, a invasão nazista deveria preocupar Mikhail, tal qual deveria preocupar a todos cidadãos soviéticos e ao governo.

A verdade era que Mikhail, como forma de proteção, tentava fingir que a guerra não existia, ao menos não em sua realidade. As lembranças de infância o colocavam em um estado de negação permanente... lembrava-se do irmão, em sua farda, partindo para o oeste, inflado por um mito nacionalista que não o salvou. Aos 33 anos de idade, Mikha já podia dizer que viveu mais que seu irmão mais velho. Petyr, morto aos vinte anos, saiu da casa Karev inflado de sentimentos e perspectivas juvenis. Nunca pode perceber as coisas que seu irmão mais novo percebeu no decorrer daqueles treze anos... os treze anos que o fizeram ultrapassar Petyr... treze anos era mais tempo do que Mikha tinha convivido com aquele que se tornara o maior símbolo e a melhor lembrança dos anos em que foi um Karev.

Preferia, pelo temor da repetição, permanecer acreditando na segurança de um pedaço de papel assinado anos atrás. Preferia seguir a vida, ainda que os fantasmas de Petyr e Gregor aparecessem, por vezes, para sussurrar o que ele não desejava ouvir.

Enquanto isso, Pavel se valia das propagandas do partido. Se aprendeu alguma coisa durante os anos sob as botas de Stalin, era que as propagandas diziam muito. Tudo o que era publicado no Pravda, as palavras usadas, as imagens nos cartazes espalhados pela cidade... tudo ditava o que o governo pretendia que o povo acreditasse e como um oráculo, aquelas coisas previam as decisões vindas do Kremlin.

Uma sombra se aproximava, mas Pasha não externava suas preocupações em respeito a Mikhail e Anya, pois o casal preferia se manter, por motivos diversos, crendo em dias de paz.

Mas a sombra se materializou em outubro, em forma de envelope lacrado com a insígnia do Exército Vermelho, entregue na portaria do prédio, onde permaneceu até a chegada de Pavel Iurievitch.

O senhor voltava, como sempre, da obra em que trabalhava no momento (um prédio de apartamentos perto dali, construído para abrigar a população que, cada vez mais, deixava o campo e migrava para as cidades). Com as mãos enfiadas no casaco de meia-estação e os olhos voltados para o assoalho, Pasha quase não deu atenção a Vassily que o chamou mais de uma vez antes de ser atendido pelo interlocutor.

Um Conto do LesteWhere stories live. Discover now