Ao retornar aos aposentos de seu falecido irmão, Mikhail levou consigo o prato contendo um generoso pedaço de carne bovina e pão. Tivera de esperar os pais se recolherem para conseguir o alimento sem levantar suspeitas, no entanto, não hesitara em tomar tal atitude. Aprendera com as boas maneiras que jamais deveria deixar um hospede sem nenhuma refeição.
Durante o jantar diversas possibilidades anteriormente ignoradas vieram a mente do pequeno aristocrata. Não deveria deixar Pavel Iurievitch sozinho junto aos pertences de Petyr. Mikha conversara com o camponês apenas uma vez, há um ano atrás. Uma visita repentina soava estranho, principalmente em ocasião onde o país se encontrava de pernas para o ar, com todos aqueles ataques contra o que Andrey Petrovich costumava chamar de "famílias de bom nome".
O jovem cavalheiro revirou sua mente em preocupações, pois nunca conseguiria se perdoar caso roubassem as lembranças físicas deixadas por seu irmão. Chegou ao ponto de quase dizer toda a verdade aos pais, e apenas conteve-se ao imaginar os castigos que sofreria por permitir a entrada de um estranho na casa.
Porém, toda inquietação partiu no instante em que abriu a porta do aposento e viu Pasha, ainda no mesmo lugar, cochilando com a cabeça escorada no colchão. Mikhail não pode evitar a culpa pelo julgamento terrível e rezou mentalmente, temendo uma punição divina para as falsas acusações feitas em pensamento.
O anfitrião adentrou o ambiente e fechou a porta, em seguida, rumou até o convidado. Tocou-lhe o ombro e o sacudiu levemente, até que Pavel estivesse desperto do sono.
— Eu trouxe o jantar — anunciou.
O rapazinho de cabelos avermelhados ergueu seus olhos em direção a Mikha. Carregava a expressão desconexa diante ao despertar inesperado, mas obrigou-se a superar rapidamente a preguiça e ajeitou-se da melhor forma que podia.
— Obrigado! — Pasha respondeu antes de tomar o prato nas mãos.
Os talheres de prata e a louça de porcelana combinavam perfeitamente com o restante da casa, no entanto, formavam um contraste cruel com Pavel Iurievitch. O camponês, retirado de seu contexto, sequer era capaz de perceber tal coisa, mas a diferença de classes residia ali, dentre os dois garotos. Perambulava entre eles e fazia com que Mikhail reparasse na falta de modos e rapidez com que Pasha devorasse cada um dos alimentos. Karev passara a vida tendo de se portar a mesa: a postura adequada, a forma como se segura os talheres, onde colocar os guardanapos...
Apesar de tal reparo na diferença de hábitos, nem mesmo o espectro social invisível foi capaz de destruir a inocência do momento. Após algum tempo, Mikhail deu de ombros e deixou de se importar com a falta de boas maneiras em Pavel, afinal, nenhum de seus supostos amigos de famílias importantes se preocupou em escrever para lhe prestar as condolências, enquanto o camponês estava ali, em presença física. Isso pesava muito mais do que qualquer senso de politesse.
Guardaram ambos as palavras, enquanto Pasha continuava a fazer sua refeição. Mikha aproveitou o tempo para se ocupar de seus tesouros particulares: o já citado anel de pedra verde, um relógio de bolso e um pequeno caderno com lições de francês. Petyr emprestara as anotações ao irmão antes de partir, sob a promessa de que o conteúdo ali presente o ajudaria nas detestadas aulas de idioma.
— Você disse que seu pai já é falecido... — o anfitrião comentou, sem conseguir desviar dos assuntos mórbidos que vagavam pelos corredores da casa há uma semana — Do que ele morreu?
— Ah! Sim... — Pasha disse enquanto mastigava um último pedaço de carne e deixava o prato vazio entre os dois, ao lado da vela que os separava — mamãe conta que ele feriu-se com uma foice.
YOU ARE READING
Um Conto do Leste
Historical FictionRussia, 1914, a revolução bate na porta e o pânico da Primeira Guerra Mundial se espalha por toda Europa. Neste cenário nasce uma improvável amizade entre Mikhail de oito anos, filho de uma família de aristocratas, e Pavel, um camponês da mesma idad...