Capítulo XII: A Morte Não Discrimina (Parte 1)

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Sair sorrateiramente para escapar das obrigações diárias nunca foi um grande problema para Mikhail e Pavel. Consideravam-se mestres na arte da fuga. Seus dons desenvolvidos desde os anos mais longínquos de suas infâncias nunca falharam, bem como a astúcia ao desviarem da atenção de todos prováveis supervisores que poderiam frustrar seus planos.

Já tratavam as aventuras com confiança, de forma que naquela manhã, prepararam-se para sair sem ao menos bolar um plano e não tardou até que conseguissem, sem causar alarde algum, ultrapassar a trilha por entre o bosque e chegar na estrada principal.

A extensa faixa de terra batida conectava todo o mundo que os jovens conheciam, de forma que o destino da jornada só começou a ser discutido no momento em que as solas das botas tocaram a superfície lamacenta deixada pela neve derretida.

Se tomassem os rumos do sul em poucas horas chegariam a estação de trem. Se em duas verstas antes da estação mudassem os passos para leste, em pouco tempo estariam na vila grande.

Ao norte existiam ainda outras duas possibilidades: o antigo posto da casa senhorial e os velhos trigais, agora pertencentes a fazendeiros mais ricos que empregavam os camponeses nas épocas de plantio e colheita. 

O rio, localizado a leste, logo foi descartado por Mikhail, que argumentou o difícil acesso por entre o bosque, além do perigo devido às cheias do degelo. Pavel não fez objeção quanto a isso e os dois seguiram caminhando lado a lado pela estrada, de forma natural e sem objetivo, pois ainda tramavam um destino que lhes soasse digno de uma aventura épica.

Às margens da estrada haviam os portões mirrados para as fazendas novas. Podia-se parar para pedir um pouco de água, ou em caso de viagens mais longas, conseguir uma hospedagem, geralmente paga com grãos.

É claro que nem Mikha e nem Pasha precisariam da ajuda dos vizinhos. Nunca se distanciaram muito de casa e nem pretendiam fazê-lo, pois existia certo senso de segurança que parecia rondar a isbá minúscula em que residiam.

— Podemos entrar na antiga casa dos Vozroditsky. Dizem que os fantasmas ainda vagam pelo local. Não seria emocionante? — propôs Mikhail após diversos planos descartados. O mundo pequeno caia aos poucos na mesmice.

Pasha enfiou as mãos nos bolsos do casaco que outrora pertencera a seu pai. Os ombros do rapaz encolheram-se diante ao nome dos falecidos vizinhos e um arrepio pavoroso lhe percorreu a espinha. Lembrou que o fantasma de Vozroditsky provavelmente conhecia seus pensamentos tidos como impuros e a culpa, até então obstruída pelo objetivo momentâneo, voltou a aparecer.

— O que há de emocionante em perturbar o descanso dos mortos? — indagou Pavel em tom repreensivo — deixe que fiquem em seus caixões! Os coitados já sofreram demais nesta vida.

— Pare de falar como Tânia. — respondeu o outro, retribuindo o tom de voz empregado pelo amigo

Ficaram em silêncio depois das réplicas, sem nunca deixar de caminhar. Passaram neste instante pela entrada que desembocava nas plantações e um único destino fez-se possível: o local onde outrora se encontrava a casa dos Karev.

Há muito tempo não se ia para aqueles lados da estrada, de forma que a relva, ressurgida de seu manto branco, tomava as pedrinhas demarcadoras e o caminho se estreitava sem os cavalos, as rodas e as lâminas das conduções.

Pinheiros, que retomavam sua cor original aos poucos, serviam como oficiais do exército, postados ao lado da tumba de um companheiro que recebe suas honras fúnebres, um último adeus, em direção ao lar de Mikhail Andreyevitch Karev, o garotinho que já não existia, bem como sua família.

— Você sabe onde essa estrada vai dar, não é? — perguntou um Pavel receoso, conforme avançavam pelo caminho que daria no nada que provavelmente restou do lar de infância de Mikha.

Um Conto do LesteWhere stories live. Discover now