A música e o barulho do salão invadiam o apartamento de Pasha, apesar do alçapão fechado. Ninguém, além das crianças mais novas, se encontrava nas moradias, pois o primeiro de maio comovia a todos com o tempo de folga prolongado.
A bebedeira, a fumaça dos cigarros, a dança, as almas à mostra de todos aqueles que Pavel Iurievitch via todos os dias, mas que mantinham-se sempre fechados demais, apesar de viverem praticamente na mesma casa.
Pavel quis, por um instante, enquanto observava Mikhail terminar sua subida, ater-se a estas coisas e conseguir participar delas da mesma forma que o outro fazia... tão comunicativo e vivo como se pode ser em um feriado como aquele.
Pavel entendia que Mikha não poderia ficar por muito tempo, tinha Anya e os olhares sempre a espreita dos vizinhos, que buscavam a todo custo uma novidade, no entanto, apenas o fato dele tê-lo seguido causava uma sensação que beirava o orgulho.
— Achei que estava se divertindo — Pasha colocou em um tom mais baixo, ainda que suficiente para se fazer ouvido.
Mikhail concordou com a cabeça e começou a vagar pelo quarto alheio, como se vislumbrasse os detalhes pela primeira vez em sua vida. As cobertas da cama desarrumadas, a escrivaninha de madeira que anteriormente ficava em um canto abandonado da casa de Gregor, o estado das quatro paredes recém pintadas de branco... o mundo que pertencia apenas a Pasha e a mais ninguém. Mikha sempre se sentiria protegido ali, pois cercava-se de Pavel por completo.
— Sim, eu estava me divertindo... — o visitante respondeu tardiamente — e você também parecia estar...
— É apenas o cansaço, não há motivos para a preocupação.
— Não minta para mim! — a repreensão, como sempre, não soava fria na voz de Mikha. Pavel já reconhecia a intonação como um detalhe quase único de seu amigo de infância, algo que se perpetuava pelas décadas vividas em contato.
— E o que você quer que eu diga? — Pasha tentou imitar a maneira alheia de falar, mas falhou completamente, caindo em um tom que soava mais afrontoso do que deveria — É tarde demais para eu dizer alguma coisa e tarde demais para você fazer alguma coisa.
Pavel terminou de tirar o casaco e o pendurou nas costas da cadeira. Tentava fingir que a presença de Mikhail não afetava sua vontade de buscar pelo conforto da cama e do sono.
O ciúme pesava mais do que qualquer outra coisa e mostrava-se com a mesma intensidade dos primeiros tempos. Sentir-se assim era em vão, uma vez que o universo não trataria de voltar no tempo para que resolvessem as questões em épocas anteriores... e para falar a verdade, Pavel nem sabia se gostaria que Mikhail tomasse um outro rumo, pois observava sua devoção para com os filhos e observava a maneira como a convivência rotineira o deixava feliz... Anya fazia parte daquela felicidade e contribuía, inclusive, para que Pasha se sentisse em casa entre os moscovitas.
Doía pensar, mas talvez, fosse melhor assim.
— Anya está linda — Pavel comentou com um sorriso melancólico nos lábios — ela sempre foi... com todo o respeito com sua senhora, é claro! Você sabe que eu não...
— Ela detesta quando falam que ela é bonita, diz que a beleza é efêmera e não importa — Mikha desviou o olhar enquanto escorava-se na escrivaninha e cruzava os braços contra o peito — eu costumo dizer que ela é a pessoa mais... teimosa que eu já conheci. Isso, por algum motivo a deixa feliz...
— Não quero ouvir...
— Espere, me deixe concluir! — os olhos de nuvem se ergueram e encontraram Pavel como alvo — Eu sou grato a ela... por ser tudo o que ela é. Eu não mereço Anya. Eu nunca a mereci... eu até posso ter me mantido longe das camas de outras pessoas durante todos estes anos, mas isso não me impediu de...
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Um Conto do Leste
Historical FictionRussia, 1914, a revolução bate na porta e o pânico da Primeira Guerra Mundial se espalha por toda Europa. Neste cenário nasce uma improvável amizade entre Mikhail de oito anos, filho de uma família de aristocratas, e Pavel, um camponês da mesma idad...