Interlúdio: O Purgatório (parte 3)

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Conforme erguia-se o sol, Pavel Iurievitch e Edik Edikovitch viram as demais pessoas acordarem, com seus semblantes apagados e desgastados; com os olhos sugados pelos tempos difíceis.

O jovem e o senhor já não conversavam mais, pois mesmo os monólogos insistentes do velho eram incapazes de sobreviver aos longos silêncios de Pasha, portanto, bastou poucas horas para mergulharem em uma torturante quietude constrangedora que permeou todo o local com o conhecido ardor do vazio desconfortável.

As janelas lacradas com barras de madeira não deixava a luz solar adentrar completamente o espaço, de forma que apenas alguns raios escapavam do bloqueio para tocar o assoalho da casa com a fraqueza anêmica comum do inverno... Pavel observava, como quem olha para o ponteiro de um relógio, o resquício de claridade avançar pelo chão, anunciando que o tempo passava, que não estavam parados no mundo do gelo... bastava sobreviver, estação após estação, sempre a espera da primavera.

Ergueram-se, aos poucos, os corpos alheios e reposicionaram-se logo em um círculo para decidir os passos daquele dia. Alguém acreditava que poderiam deixar a vila e seguir rumo a oeste, já outro sugeria que ficassem pela região até o fim do inverno... Pasha não se importava, ao invés disso, ocupava o mesmo posto das crianças do grupo e deixou o destino a encargo dos mais velhos.

Independente da decisão ele acataria.

Sua prioridade não focava-se nas coisas mais complexas e ele voltava-se a si mesmo, como se observasse em um espelho subjetivo a degradação, o ser irreconhecível de seu reflexo, tão ímpar a figura revolta dos anos da adolescência. Manifestava-se internamente contra a barba longa, o cabelo oleoso e as roupas gastas e sujas, de forma que a sensação de conforto afastava-se ainda mais dele.

Sua casa - a isbá destruída da vila pequena - aparecia a todo momento em sua mente: seu leito, os lençóis, o abraço forte do pelego que o aquecia nas noites mais frias, as camisas de linho e as calças no velho baú de madeira, a bacia esmaltada, a água quente, a sensação da lâmina contra a pele do rosto, os pequenos cortes que faria acidentalmente no queixo, a toalha áspera... sonhava, como quem sonha um futuro brilhante, ter acesso a qualquer uma daquelas coisas.

Diante dele formava-se uma discussão mais afincada sobre o rumo que tomariam... divididos, os membros do grupo digladiavam-se em argumentos, cada um com sua crença do que seria o melhor a fazer... ir para um lado ou ir para o outro... chegaram a erguer as vozes, sem encontrar uma solução simples para o problema.

O jovem Pasha, distante do assunto, como as crianças, reconhecia a importância e o peso da decisão, mas isso, porque não podia prever o próprio futuro... Já o senhor Pavel Iurievitch, anos mais tarde, conhecedor dos eventos que sucederam a pequena briga, escreveu "Imagino que não voltei a presenciar uma discussão tão inútil em minha vida."

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Demorou ainda algumas horas para o fim da deliberação e para que os nômades juntassem as suas coisas e deixassem para trás a isbá que os abrigou durante duas noites.

Pavel já começava a sofrer da sonolência matinal: a maldição dos que não conseguem dormir durante a noite, aquele momento em que a necessidade de repouso finalmente aparece, mas se torna inadequada visto que o sol encontra-se alto no céu.

O rapaz já recebia em seu corpo a letargia, que o permeava como água no tecido. Suas pernas pesavam, seus olhos imploravam pela oportunidade de fecharem-se, o mundo travava no processo de ser compreendido com consciência e todas aquelas coisas, somadas,traziam a ele uma dificuldade maior do que a dos outros em desbravar a neve funda e o vento forte que tentavam a todo custo levá-lo para trás.

Um Conto do LesteWhere stories live. Discover now