Capítulo II: O Intruso Moscovita

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Rússia, Outono de 1915.

Rurik Fedorov, viera de Moscou para negociar a colheita. Como já era rotineiro, entre o fim do verão e o início do outono, ele desembarcava na estação, ia a cavalo até a casa dos Karev e, por fim, passava no vilarejo dos camponeses, onde pernoitava antes de voltar para a cidade.

Se tratava de um senhor com bastante dinheiro e com boa lábia, um vendedor nato, com um os ditos ares ingleses herdados da mãe, uma britânica russificada que vivia em um palacete localizado ás margens do rio Volga em  Tsarítsin.

Era um homem razoavelmente jovem quando assumiu os negócios de seu pai, morto na guerra contra o Japão. Hoje, precocemente, os fios de cabelo branco já começassem a se ressaltarem entre as mechas castanhas de Rurik e os primeiros sinais de calvisse apareciam nos cantos de sua testa.

Fedorov não parava de reclamar por um instante sequer a respeito da situação nas cidades: as constantes greves nas fábricas e nas ferrovias, os protestos e toda movimentação denominada por ele como "caótica". 

"Vocês precisam ver como as coisa estão em Petrogrado... Na semana passada, prenderam dois terroristas por uma tentativa de assassinato ao imperador" dizia com ares indignados, enquanto passava a ponta dos dedos pelo bigode bem aparado.

Rurik odiava o movimento do campesinado, e condenava severamente os homens, que incitados por um grupo de intelectuais, queimaram verstas e mais verstas de plantação de trigo durante uma noite há alguns meses. Além disso, não podia ouvir falar de sindicatos e acreditava que todo comunista deveria ir para a Sibéria, junto aos judeus e qualquer outra parcela da sociedade que costumava denominar como "escória".

No dia em que Rurik Fedorov chegava, Tânia Kresnikovna se obrigava a deixar o trabalho mais cedo. Seus ombros caíam, os olhos se perdiam pelos cantos e a mulher jovem dos longos cabelos de cobre murchava, como se fosse uma planta exposta na geada.

A vida de viuvez precoce exigia certo sacrifícios, principalmente em épocas de guerra, onde a produção de alimento ou era confiscada ou vendida e apenas os restos dos restos chegavam às casas da vila. Pasha precisava comer, Tânia precisava comer e ambos necessitavam de lenha antes que o inverno chegasse... Rurik pagava bem pela hospedagem e a pobre senhora não tinha condições de recusar dinheiro, embora sonhasse com o dia em que jogaria cada tostão em Fedorov e o proibiria de adentrar sua casa novamente. 

Em noites assim, quando Rurik aparecia por ali, Pavel Iurievitch costumava se hospedar na casa de Dasha Kuznetsova, uma mulher ríspida que sempre deixava Pasha sob os cuidados de Anya, sua filha mais nova, uma moça de quinze anos que adorava exibir sua pequena amostra de autoridade.

Naquele dia, quando a notícia da presença do moscovita chegou aos ouvidos de Tânia Kresnikovna, parte do trabalho se concentrava em uma floresta de pinheiros, que derrubariam para abastecer as casas de lenha durante o inverno que se aproximava. Geralmente, este era um trabalho masculino, no entanto, a maioria dos homens adultos ou lutava na guerra ou morrera nela e as senhoras, os idosos e as crianças tiveram de empunhar os machados naquele ano.

Pavel Iurievitch, muito pequeno e sem força para segurar o instrumento de trabalho, carregava junto com as demais crianças a função de levar os troncos de madeira até as carroças. A tarefa não era das piores, muito melhor do que ceifar trigo no sol quente. Ao menos ali, as copas das árvores faziam sombra e um vento fresco soprava, tocando uma sinfonia mesclada ao som das machadadas.  

 Já passava do meio-dia quando em uma conversa,  dois senhores já idosos, citaram o sobrenome "Karev" que se destacou aos ouvidos de Pasha apesar do barulho ao redor. O menino parou o que fazia e aproximou-se dos dois, como se esperasse para transportar a lenha que os velhos cortavam.  

— ...a carta chegou semana passada, pelo que eu soube — disse um deles, ao passo que jogava o machado com força contra um tronco caído do pinheiro — Os malditos só enviam cartas quando os ricos morrem.

Falavam do filho mais velho de Andrey Karev.

Ao que parecia, Petyr Karev, o herdeiro de vinte anos, morrera no campo de batalha, bem como acontecia com a maioria dos jovens que iam ao fronte.  Derrota após derrota, baixa após baixa, o povo passava a repudiar mais os conflitos. O nacionalismo da partida para uma suposta luta honrosa se dissipava como neve derretendo na primavera, e a revolta crescia ao passo que fome, peste e morte, de mãos dadas com sua irmã a oeste, andavam pelos campos sem nenhuma clemência.

A primeira coisa que passou pela mente de Pasha quando soube da notícia, fora a lembrança já embaçada do companheiro de aventura do verão anterior: o garoto decidido a ir até a guerra para procurar o irmão.

 Pavel não conseguia entender muito bem a complexidade da morte, no entanto, por algum motivo, sentiu o peito se apertar ao pensar em Mikhail Andreyevitch.

"O que mamãe faria em uma situação assim?" Pasha se perguntou, enquanto voltava os olhos para uma Tânia com ares tão mortos que se estivesse deitada, ao invés de cortar a lenha, o menino chegaria à conclusão equivocada de que se tornara oficialmente um órfão.

Ele pensou: "Mamãe e Dasha Kuznetsova se conhecem desde a infância e quando Dasha tornou-se viúva, mamãe lhe fez visita. Devo ir até Mikhail Karev para lhe prestar os pesares pessoalmente?"

Pavel Iurievitch estreitou as sobrancelhas em sua estranha expressão corriqueira de dúvida. Se pudesse, escreveria uma carta, mas sequer conhecia alguém alfabetizado para que ditasse suas palavras e mandasse-as através do cocheiro. Além disso, Pasha nutria certo desprezo pelos adultos (com exceção apenas de Tânia) o que significava que jamais pediria ajuda a alguém. Provavelmente, se fizesse, seu recado seria ridicularizado e o mandariam voltar para o trabalho, como sempre.

O garoto acreditava piamente que em algum momento da vida os adultos perdiam a capacidade de esperteza para se metamorfosear naquele tipo de pessoa que jamais ouvia as crianças e que passavam as horas a reclamar de assuntos estranhos como por exemplo "a tirania do Czar", "a necessidade do aumento do salário" e "as novidades sobre sabe-se lá quem".

Com seus nove anos, Pasha era incapaz de entender, embora vivesse todos os dias na prática, que as decisões de um homem que morava num palácio longe dali afetavam sua vida, além do mais, seu salário sempre era recebido por Tânia e Pavel não compreendia as revoltas, pois ainda não associava as condições de vida com as pautas reivindicadas.

— Vai ficar aí com essa expressão de quem bebeu leite coalhado? Os tocos estão se acumulando, faça por merecer sua sopa! — exclamou Dasha Kuznetsova ao passar por Pasha, carregando a madeira nos braços fortes.

Ele suspirou, preferia passar uma noite com o próprio demônio a ter de aturar as ordens e broncas de Anya e Dasha: "Pare de falar enquanto dorme" "Não fique olhando para a janela assim, pois traz mau agouro" ele podia ouvi-las com suas vozes de tempestade de neve.

Anya mostraria sua superioridade: ordenaria que Pasha desenredasse as lãs de sua costura, o faria colocar mais lenha no fogão de barro e gritaria caso ele cometesse algum erro nesse processo.

A lembrança de sua inquisidora adolescente bastou para convencer Pavel. Ele esperaria Tânia partir e daria um jeito de se esgueirar pelas árvores até chegar a estrada, então caminharia a casa de Karev e prestaria seus sentimentos para com a morte de Petyr Andreyevitch. 

Voltaria pela manhã e sua mãe nunca descobriria nada, pois contava que Dasha Kuznetsova nunca se dignaria a admitir que deixara o garoto perdido a noite inteira e ninguém teria coragem de se aproximar da casinha onde moravam enquanto Rurik estivesse por lá.

Crianças! Sempre com a certeza cega de que nada pode dar errado em seus planos mirabolantes.

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