XVII - COLINA ABAIXO

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— Algumas vezes — respondeu Vinst, recorrendo a antigas lembranças. A mente, anuviada pelas beberragens e tragos dos últimos dias, no entanto, recusou-se a ceder-lhe as imagens do lugar. — É uma forma de treinamento entre navegadores. O sal sempre falta, é como se diz. Sempre falta. Empreendemos, ainda aprendizes, as tais viagens-do-sal, e não se torna um capitão sem meia dúzia delas, é como é. Os mares naquele lugar são ermos e inóspitos, como bem sabe, e as estrelas parecem enganar o mais perspicaz dentre os homens do mar. Os corais estendem os braços acima das ondas nos tempos de maré baixa; tem-se que saber ler mapas celestes, atualizados, claro, pois sabemos a disposição do mar em nos torturar, bem como a do céu de improvisar — nessas ocasiões são os tubarões a se banquetear do nosso sal! Digo o sal do nosso próprio corpo, entende? Mas é como se diz: o sal sempre falta, mesmo no mar. É um sarhájo audacioso, Marëll, é o que penso, mil vezes audacioso por ter viajado até lá!

— Aceito esse título, capitão, já que adoro aventuras, como pode ver: não marchamos juntos contra Hájen? Será a maior aventura de minha vida, meu bom Vinst, e dela escreverei histórias para contar e canções para cantar — baladas mais bem-vindas do que a que escrevi sobre os filhos de Harim. Farei cantos que serão entoados nas tavernas de toda Era; uma grande, grande aventura! Imagine só: O Príncipe, O Magíer e O Capitão! — vociferou o sarhájo, enquanto desciam as estradas sinuosas, alheio aos olhares lançados por homens que subiam à cidadela — tal era a disposição do sarhájo a passar de uma conversa à meia voz à declamação de um arauto real. — Como dizia, capitão — continuou, a voz de súbito num tom quase inaudível: — veja bem, lá estive, sim, em Alsávia, e li com esses olhos, senhor, esses olhos! — disse, indicando os dois globos de esmeralda que lhe faziam vezes de olhos. — A fortaleza teria sido, séculos atrás — mais de milênios, se contar bem — residência de um tal Galtascá— — ou Caltascár? Algo assim, capitão, perdoe a memória deste homem. Galtascá — adotemos esse nome — viveu naquele por lá, capitão, pois era um guarda, esse tal Galtascá, e não limitava-se a isso, pois aproveitava da calmaria daquele tempo para estudar toda sorte de tratados e ciências da época. Coisas obscuras, veja bem, era o que os homens buscam naqueles reinos-menores de Këalia.

"Numa de minhas investigações romancistas, como costumo chamá-las, deparei-me com um relato tão audacioso quanto extenso, no qual o homem registrava o sucesso de suas empreitadas: praticava aquela arte macabra com homens e mulheres que prendia, veja só quanta crueldade! Escrevia, em letras estranhas e garrafais, entremeadas por símbolos terríveis de se olhar, sobre almas seccionadas, mentes invadidas e confusas e de intenções ampliadas. Coisas macabras, como disse. Era comum, apesar de pouco aceitável, as artes da mesmerização naqueles reinos-menores, como li. 

Vinst nada respondeu, ao que Marëll continuou: 

— Mas já contam muitos anos desde então e sabe bem como anda minha mente nesses últimos dias: culpa do vinho ou dondaï, tanto faz! Talvez volte àquelas terras, mesmo agora odiando-as, já que empenho-me em terminar meu compêndio das lendas antigas, sabe bem.

— Será o próximo Goothe Khemis, Marëll — disse Vinst. — Tem um grande talento para os contos e narrativas, é como é. Mas é como tomo essas estórias e contos: boas lendas, nada mais. 

— Não seja tão negativo, capitão. E grave! Negativo, grave e pesado: é como o descrevo! Alegre-se agora, ora: não estamos mais no mar, onde o mundo é triste e solitário! Estamos em terra, olhe! — exclamou Marëll, indicando para a cidade que se descortinava entre os pinheirinhos e ciprestes da estrada, os telhados oblíquos e irregulares atravessados aqui e ali pelas grandes chaminés das forjas de Vulkermónt, proibidas de descansar antes que cada espada e lança, placas de peito e gorjais estivessem empunhadas por mãos habilidosas ou a proteger um guerreiro vulker. O resultado eram as grandes nuvens de fumaça e fuligem que agitavam-se sobre a cidade, além do incessante ressoar da bigorna dos ferreiros. — É o que peço, Vinst: olhe em volta de si mesmo e veja os brotos verdes e o céu azul. Cá podemos ter esperança, como vê, pois na terra tudo cresce e se aprimora. Não me olhe assim, sabe bem que sou esperançoso! Sou-o abertamente, como os simples lavradores de qualquer canto desse mundo, que gastam toda a vida na lavoura e descansam feliz, certo de que fizeram a vida! Matemos, capitão, os seres certos e tudo ficará novamente bem, é como vejo. Empenhemo-nos!

VIRMÍRIA I {REVISÃO}Where stories live. Discover now