XI parte 3

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Por volta de uma da manhã as garotas começam a bocejar. Havia colchonetes na despensa, mas ninguém estava com vontade de se aventurar para fora do quarto de Camila. Este cubo pintado artisticamente é como um pequeno abrigo quente e acolhedor em meio ao vazio gelado da Antártida. Mani fica com a cama e Camila e eu no chão. Mani faz sua lição de casa por mais ou menos uma hora, então apaga a luz e logo começa a roncar como uma delicada e pequena serra elétrica. Camila e eu estamos deitadas de costas sobre um fino cobertor, com pilhas de roupa dela embaixo, como colchão, por cima do chão duro como pedra. É uma sensação estranha estar completamente rodeada por ela. A essência vital dela está em tudo. Ela está em mim, abaixo de mim e ao meu lado. E como se o quarto inteiro fosse feito dela.
- L.- Ela sussurra, olhando para o teto. - Tem desenhos e frases ali pintados com tinta que brilha no escuro.
- Sim.
- Odeio isso aqui.
- Eu sei.
- Me leve pra algum outro lugar.
Faço uma pausa, ainda olhando para o teto. Queria conseguir ler o que ela escreveu lá.
Como não consigo, finjo que as letras são estrelas e as palavras são constelações.
- Aonde você... quer ir?
- Não sei. Algum lugar bem longe. Algum país distante onde nada disso está acontecendo. Onde as pessoas apenas vivam em paz.
Fico em silêncio.
- Um dos amigos mais antigos de Matt era piloto... Poderíamos pegar seu avião/casa e ir a qualquer lugar, seria como voar em um trailer!- Ela vira de lado e sorri para mim.- O que acha, L? Poderíamos ir ate o outro lado do mundo.
A excitação em sua voz me faz estremecer. Espero que ela não possa ver a sombra nos meus olhos. Não posso afirmar, mas tem algo no ar, um silêncio mortal quando passei pela cidade e suas cercanias que me diz que os dias de fugir dos problemas acabaram. A praga cobriu o mundo.
- Você disse...- Começo, me esforçando para expressar um pensamento complexo. - Você disse... que...
- Força agora.- Ela me encoraja.- Use suas palavras.
- Você disse que... o avião não é... um mundo fechado.
O sorriso dela desaparece. - Como assim?
-Não dá... pra flutuar... acima da confusão.
Ela faz uma careta.
- Eu disse isso?
- Seu pai... caixas de concreto... paredes e armas... fugir não é melhor... que se esconder. Talvez seja pior.
Ela pensa por um momento.
- Eu sei.- Ela diz, e me sinto culpada por destruir a breve fantasia dela.
- Sei bem disso. E o que venho dizendo a mim mesma há anos, que ainda existe esperança, que podemos mudar as coisas de algum jeito e blá, blá, blá. Só que... está ficando muito difícil acreditar nisso nos últimos tempos.
- Sei.- Falo, tentando esconder as falhas na minha sinceridade. - Mas não pode... desistir.
A voz dela fica meio sombria e ela paga pra ver o meu blefe.
- Porque ficou tão cheia de esperança de repente? O que está pensando de verdade?
Não respondo nada, mas ela lê o meu rosto como a manchete principal de um jornal, daquelas que anunciam a bomba atômica e as mortes de presidentes em letras maiores que vão ficando menores.
- Não tem para onde fugir, não é?
Quase imperceptivelmente, faço que não com a cabeça.
- O mundo inteiro... você acha que está todo morto? Todo dominado?
- Acho.
- Como pode saber isso?
- Não sei. Mas... sinto isso.
Ela respira e solta longamente o ar, olhando para os aviões de brinquedo pendurados acima da gente. - O que devemos fazer então?
- Temos que... consertar.
- Consertar o quê?
- Não sei. Tudo... acho.
Ela se apoia em um dos cotovelos.
- O que você está dizendo? - A voz dela fica mais alta. Mani se vira e para de roncar.
- Consertar tudo?- Os olhos de Camila faíscam no escuro.- E como vamos fazer isso? Se você teve uma grande ideia é hora de contar, por favor, pois eu penso nisso o tempo inteiro, literalmente. Isso queima os meus neurônios todas as manhãs e noites desde que minha mãe partiu Como consertamos tudo? Está tudo tão quebrado, todos estão morrendo de novo e de novo, de maneiras mais sombrias e profundas. E o que podemos fazer? Sabe o que está causando isso, qual é essa praga?
Hesito.
- Não.
- Então como pode fazer algo a respeito? Quero saber, L. Como vamos conseguir "consertar" tudo?
Continuo encarando o teto. Olho para as constelações verbais que brilham verdes no espaço distante. Ali, deitada, enquanto minha mente voa até esses paraísos imaginários, duas estrelas começam a mudar. Elas viram, entram em foco e seus formatos ficam claros. Elas se tornam... letras.
T E
- Te.- Sussurro.
- Quê?
- Ten...- Repito, tentando pronunciar. E um som. E uma palavra. A constelação borrada está virando uma palavra.- O que... é? - pergunto, apontando o teto.
- O quê? As frases?
Levanto-me e aponto o lugar que estou olhando.
- Esta.
- É uma frase de Imagine, a música do John Lennon.
- Qual frase?
- É fácil se você tentar.
Fico ali parada um minuto, olhando para cima como se fosse uma intrépida exploradora do cosmos. Então me deito, coloco as mãos atrás da cabeça e abro bem os olhos. Não tenho respostas para as perguntas dela, mas posso sentir que elas existem. Pequenos pontos de luz na escuridão distante.

My girlfriend is a zombie.Where stories live. Discover now