XIII

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Antigamente, nos meus dias de procurar coisas na cidade, eu sempre olhava para as paredes do Estádio e imaginava um paraíso lá dentro. Pensava que era perfeito, que todos eram felizes, bonitos e não queriam mais nada, e em minha visão estúpida e limitada, sentia inveja e queria todos eles mais ainda. Mas olhe para este lugar. As folhas de metal ondulado brilhando sob o sol. O zumbido das moscas sobre o ruminar do gado cheio de hormônios. As roupas manchadas penduradas nos cabos de suporte que existiam entre os prédios, balançando ao vento como bandeiras de rendição.
-Bem-vinda à Cidade Estádio!- Diz Camila, abrindo bem os braços.- A maior habitação humana no que antes era chamado de América.
Porque ficamos? Dizem as vozes dentro de mim enquanto Camila mostra lugares interessantes e cartões postais. O que é uma cidade e porque continuamos construindo cidades? Leve embora a cultura, o comércio, os negócios e o prazer, sobra mais alguma coisa? Apenas uma rede de ruas sem nome cheia de pessoas sem nome?
- Tem mais de vinte mil de nós enfiados neste aquário.- Camila explica enquanto passamos por grandes multidões na praça central.
- Logo estará tão apertado que vamos ter que nos espremer. A humanidade será uma grande ameba sem mente.
Porque não nos espalhamos? Fugir para as montanhas e plantar nossas raízes onde o ar e a água eram limpos? O que é que precisávamos tanto uns dos outros neste amontoado de corpos?
Tento manter os olhos no chão o máximo que posso, tentando me misturar e evitando ser notada. Dou olhares furtivos para as torres de guarda, tanques de água, novos prédios surgindo sob o brilho das soldadoras, mas olho mais para meus próprios pés. O asfalto. Barro e cocô de cachorro amaciando os cantos afiados.
- Estamos colhendo menos da metade do que precisamos para sobreviver. Camila diz quando passamos pelos jardins, apenas um sonho embaçado de verde por trás das paredes translúcidas das estufas.- Por isso, as porções de comida de verdade são racionadas e completamos a nossa dieta com Carboteína.
Um trio de adolescentes em macacões amarelos puxa um carrinho de laranjas e passa por nós. Percebo que um deles tem estranhas feridas descendo pelo lado de seu rosto, machucados marrons como amassados em uma maçã, como se as células simplesmente tivessem entrado em colapso.- Sem falar que gastamos quase uma farmácia inteira por mês. As equipes de recuperação de coisas mal conseguem dar conta. E só questão de tempo até entrarmos em guerra contra os outros enclaves por causa das últimas caixas de Prozac.
Será que foi só medo? As vozes se perguntam. Tínhamos medo nas épocas boas, como poderíamos resistir nas ruins?
Então achamos os muros mais altos e nos fechamos dentro deles. E continuamos lá dentro sermos os maiores e mais fortes, elegemos grandes generais e achamos as maiores armas, pensando que esse maximalismo, de um jeito ou de outro geraria felicidade. Mas nada tão óbvio assim poderia funcionar.
- O que me impressiona.- Mani diz, se encolhendo para passar pelo barrigão de uma mulher morbidamente grávida.- É que apesar das coisas que faltam e que precisamos, as pessoas continuam a fazer filhos. Inundando o mundo com cópias deles mesmos apenas porque é tradição, porque é o que fazemos.
Camila olha para Mani e abre a boca, mas depois fecha novamente.
- E apesar de estarmos próximos de morrer de fome sob uma montanha de fraldas sujas, ninguém tem coragem de sugerir que as pessoas guardem suas sementes durante um tempo.
- Sim, mas... - Camila começa, com uma voz estranhamente tímida. - Sei lá... tem algo bonito nisso, não acha? Que continuamos vivendo e crescendo, mesmo em um mundo moribundo? Que continuamos voltando, não importa quantos de nós morram?
- Por que é bonito que a humanidade continue voltando? Herpes também faz isso.
- Ah, cala a boca, Mani. Você adora as pessoas. Ser um misantropo era coisa do Matt.
Mani ri e dá de ombros.
- Não é por manter a população, é o fato de passarmos adiante quem somos e o que aprendemos, para que as coisas continuem andando. Para que nós não terminemos pura e simplesmente. Claro que é meio egoísta, mas de que outro jeito nossas curtas vidas significariam algo?
- Acho que tem razão.- Mani concorda. - Não é como se tivéssemos alguma outra coisa para deixar nessa era pós tudo.
- Isso. Tudo está se apagando. Ouvi dizer que o último país do mundo entrou em colapso em janeiro.
- É mesmo? E qual era?
- Não me lembro. Suécia, talvez?
- Então o globo está finalmente em branco. Isso é deprimente.
- Pelo menos você tem uma herança cultural a qual se apegar. Seu pai era etíope, né?
- Sim, mas o que isso significa para mim? Ele não se lembra de seu país, eu nunca estive lá e agora ele não existe mais. Tudo que sobrou pra mim é a pele marrom, e quem liga pra cor da pele hoje em dia?- Ela faz um gesto com a mão em direção ao meu rosto.
- Em um ou dois anos, todos seremos cinzas de qualquer forma.
Fico um pouco para trás enquanto as duas continuam o debate observo-as falar e gesticular, ouvindo suas vozes sem prestar atenção nas palavras.
O que sobrou de nós? Resmungam os fantasmas, escorregando de volta para as sombras do meu subconsciente. Nenhum país, nenhuma cultura, nenhuma guerra, mas também não temos paz. O que sobra dentro de nos, então? O que continua se contorcendo em nossos ossos quando todo o resto foi arrancado?
No fim da tarde, chegamos à rua que antes era chamada de Rua da Joia. Os prédios escolares nos esperavam à frente, pequenos e satisfeitos, e sinto meu estômago revirar. Camila hesita em uma esquina, olhando, pensativa em direção às janelas brilhantes da escola.
- Aquelas são as instalações de treino. Mas você não vai querer ver as coisas lá dentro. Vamos em frente.
Sigo-a contente, indo embora daquele lugar sombrio, mas encaro fortemente a placa verde quando passamos por ela. Tenho quase certeza de que a primeira letra é C.
- Qual o nome dessa rua? - pergunto, apontando para a placa. Camila sorri.
- Ah, é a Rua Camila.
- Antes era o desenho de um diamante ou algo assim.- Mani explica.- Mas o pai dela rebatizou com o nome dela quando as escolas foram construídas.
- Não é fofo?
- Foi fofo.- Camila admite.- É o tipo de gesto que meu pai consegue fazer de tempos em tempos.
Ela nos leva próximo ao perímetro das paredes para um túnel grande e escuro que vem diretamente da entrada principal. Percebo que este túnel devia ser onde as equipes faziam suas entradas triunfais no campo, na época em que milhares de pessoas ainda podiam torcer por coisas tão triviais. E como a outra ponta do túnel leva ao mundo dos vivos parece certo que este outro lado leve ao cemitério.
Camila mostra sua identidade para os guardas e eles nos deixam entrar. Saímos em um campo montanhoso cercado por uma cerca de centena de metros. Espinheiros negros se curvam em direção ao céu cinza e dourado, guardando tumbas de verdade. Cruzes e imagens de santos completam a paisagem. Suspeito que essas coisas foram pegas em algum cemitério antigo, pois os nomes e datas foram cobertos com letras cursivas com tinta branca. Os epitáfios parecem muros pichados.
- Aqui é onde enterramos... o que sobra de nós.- Camila diz. Ela anda um pouco à frente de Mani e eu fico parada na entrada. Aqui fora, com a porta atrás de nós fechada, o barulho pulsante das pessoas se foi, substituído pelo silêncio estoico dos mortos de verdade. Cada um dos corpos descansando aqui está sem cabeça, com um tiro na cabeça ou é apenas um monte de carne e ossos meio comidos em uma caixa. Entendo porque decidiram construir o cemitério fora do Estádio. Além de ser maior dos que as terras utilizadas lá dentro, também não seria algo para levantar a moral das pessoas. Seria uma lembrança bem mais aterradora do que os antigos campos ensolarados do velho mundo, com ruelas tranquilas e descanso eterno. Isto é uma pequena visão do nosso futuro. Não como indivíduos, cujas mortes nós podemos aceitar, mas como espécie, como civilização, como mundo.
- Tem certeza de que quer entrar aqui exatamente hoje?- Mani pergunta a Camila com cuidado.
Camila olha para o morro de grama marrom irregular.
- Venho todos os dias. Hoje é um dia, é terça-feira.
- Sim, mas... hã, quer que esperemos aqui?
Ela dá uma olhadela para mim e pensa naquilo por um momento.
- Não. Vamos.- Ela começa a andar. Eu a sigo e Mani vem atrás de mim constrangida, mantendo uma certa distância.
Não há aleias neste cemitério, por isso Camila anda em linha reta, passando por lápides e túmulos, alguns recém-cavados. Os olhos dela estão focados em uma torre alta com um anjo de mármore em cima. Paramos na frente dela, eu e Camila lado a lado e Mani ainda atrás de nós. Esforço-me para ler o nome na sepultura, mas ele não se revela para mim. Mesmo as primeiras letras ficam ilegíveis.
- Esta é... minha mãe - diz Camila. O vento frio do fim de tarde joga o cabelo dela nos olhos, mas ela apenas cruza os braços. - Ela foi embora quando eu tinha doze anos.
Mani se contorce atrás de nós e então vai dar uma volta, fingindo examinar os epitáfios.
- Ela perdeu a cabeça, eu acho.
Camila me conta.- Saiu correndo sozinha para a cidade uma noite e foi isso. Acharam alguns pedaços dela, mas... não tem nada nesta sepultura. A voz dela sai casual demais.
Lembro-me dela tentando imitar os Mortos no aeroporto, exagerando, como se usasse uma máscara fina de papel.- Acho que tudo isso foi demais pra ela.- Camila aponta vagamente para o cemitério e depois o Estádio atrás de nós.- Ela era uma daquelas pessoas muito livres, sabe? Uma deusa boêmia e selvagem vestida com fogo. Ela conheceu meu pai quando tinha dezenove anos, e ele a levou às nuvens. É difícil de acreditar, mas ele era músico, tocava teclado em uma banda de rock e era muito bom. Eles se casaram jovens e então... não sei bem como... o mundo virou uma merda e meu pai mudou. Tudo mudou.
Tento decifrar os olhos dela, mas o cabelo na frente atrapalha. Ouço um tremor em sua voz.
- A mamãe tentou. De verdade, ela era uma pessoa ótima. Fazia a parte dela para manter tudo certo, seu trabalho diário e depois tudo girava em torno de mim. Eu era tudo. Meu pai nunca estava lá, por isso era só ela e a pequena pentelha. Lembro-me de me divertir tanto, numa época, ela me levava num parque aquático...
Um pequeno soluço de choro a pega de surpresa, afogando as palavras. Ela cobre a boca com a mão e seus olhos falam comigo por entre as mechas de cabelo. Gentilmente, retiro o cabelo de seu rosto. Ela desvia os olhos de mim e volta a olhar para a sepultura. Sua voz sai fraca e falseando.
- Ela simplesmente não foi feita pra esta droga de lugar.
Sua voz falhando.
- O que ela podia fazer aqui dentro? Tudo que a fazia se sentir viva tinha acabado. Tudo que sobrou foi uma garota estúpida de doze anos com dentes feios que a acordava todas as noites pedindo que ela espantasse a porra de um pesadelo. Ela só podia querer fugir mesmo.
- Chega.- Falo com firmeza, e viro seu rosto para mim.- Chega.
Lágrimas rolam de seu rosto, secreções salgadas passando por dutos e tubos, passando por células brilhantes e pulsantes e bravos tecidos vermelhos. Limpo essas lágrimas e a puxo para mim.
- Você está... viva.- Murmuro para seus cabelos.- Vale a pena... viver por você.
Sinto-a tremer encostada no meu peito, grudando em meu peito conforme a envolvo mais com meus braços. Há um silêncio no ar a não ser pelo leve assobio da brisa. Mani está olhando em nossa direção agora, passando um dos dedos pelos seus cachos.
Nossos olhares se encontram e ela me dá um sorriso triste como que se desculpando por não me alertar sobre isso. Mas não tenho medo dos segredos obscuros de Camila. Quero muito ficar sabendo de todos, encará-los de frente e apertar a mão deles com firmeza e com toda a força.
Enquanto ela molha minha camisa com lágrimas, percebo que estou prestes a fazer outra coisa que nunca fiz antes. Respiro fundo e tento cantar:
- Você é... sensacional...- Limpo a garganta, tentando pelo menos parecer um pouco com a melodia do Frank.- Sensacional... isso é tudo.
Há uma pausa e então algo muda o comportamento de Camila. Percebo que ela está rindo.
- Caramba... - Ela fala entre risos, e levanta a cabeça para olhar pra mim, com os olhos brilhantes e um sorriso no rosto. - Isso foi lindo, L, nossa. Você e o Zumbi Sinatra deveriam gravar Duetos Volume 2.
Eu tusso.
- Não pude... me aquecer.
Ela arruma meu cabelo e depois olha novamente para o túmulo, retirando do bolso de trás da calça uma margarida murcha com quatro pétalas restantes. Ela a coloca na terra
na frente da lápide.
- Desculpa, mãe.- Ela diz suavemente.
- Foi a melhor que consegui encontrar.- Então, ela pega minha mão.- Mãe, este é a L. Ela é ótima, você a adoraria. A flor é um presente dela também.
Mesmo sabendo que a sepultura estava vazia, imaginei a mão da mãe dela saindo da terra e pegando o meu tornozelo. Afinal, sou uma célula do câncer que a matou. Mas se Camila for indício de algo, suspeito que a mãe dela pode me perdoar também. Essas pessoas, estas belas mulheres Vivas parecem não fazer uma conexão entre mim e as criaturas que continuam matando tudo que elas amam. Elas permitem que eu seja uma exceção, e me sinto humilhada por esse presente que não mereço. Quero retribuir de algum jeito, merecer o perdão delas. Quero ajudar a consertar o mundo que ajudei a destruir.
Mani se junta a nós quando deixamos o túmulo da Sra. Cabello. Ela acaricia o ombro de Camila e a beija na cabeça.
- Você está bem?
Camila faz que sim com a cabeça.
-Tão bem quanto é possível.
-Quer ouvir algo bacana?
- Quero muito.
- Vi algumas flores do campo perto da minha casa. Estão crescendo em uma vala.
Camila sorri, limpa as últimas lágrimas de seus olhos e não diz mais nada.
Dou uma olhada nas lápides enquanto caminhamos e percebo que elas são tortas e colocadas a esmo, dando ao cemitério um ar antigo, apesar das dúzias de túmulos novos. Fico pensando sobre a morte, sobre o quanto a vida é breve comparada a ela. Imagino o quão profundas são as covas, quantas camadas de caixões têm aqui, uma em cima da outra, e que porção do solo da Terra é criada com o nosso apodrecimento.
Então algo interrompe minhas reflexões mórbidas. Sinto um frio na barriga, uma sensação estranha parecida com o que eu imagino que seja um bebê chutando o útero da mãe. Paro no meio de um passo. Uma lápide inexpressiva e retangular me observa de um morro próximo.
- Esperem um pouco.- Falo para as garotas e começo a subir o morro.
- O que ela está fazendo?- Ouço Mani perguntando.- Aquele não é...
Paro em frente ao túmulo e fico olhando para o epitáfio. Uma sensação de vertigem surge nas minhas pernas, como se um poço fundo estivesse se abrindo na minha frente, me atraindo para sua borda com sua inexorável força sombria. Meu estômago se revira, sinto uma pontada no meu crânio e então... caio dentro dele.

My girlfriend is a zombie.Where stories live. Discover now