V

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Levo Camila até a praça de alimentação e ela me lança um olhar curioso quando vou direto em direção a um restaurante Tailandês. Quando nos aproximamos, ela se encolhe e cobre o nariz.
- Meu Deus.- Ela lamenta. Os forninhos da frente estão espumando com coisas secas e podres, larvas mortas e bolor. Já estou praticamente insensível a odores, mas a julgar pela expressão no rosto de Camila, aquilo é fétido. Procuramos um pouco nos fundos, mas a energia intermitente do aeroporto quer dizer que o freezer só funciona meio expediente, então tudo lá dentro está rançoso. Vou em direção à lanchonete e Camila me olha de forma estranha de novo, e então me segue. Entramos no grande freezer e encontramos alguns hambúrgueres ainda frios, mas dá pra ver que foram descongelados e recongelados várias vezes. Moscas mortas mancham o chão do freezer.
Camila suspira.
- E agora?
Olho ao longe, pensando. O aeroporto tem um Sushi Bar, mas...me lembro um pouco a respeito de sushi. Se algumas horas podem estragar um filé de hamachi, não quero nem ver o que anos podem fazer.
- Jesus.- Diz Camila enquanto estou parada pensando.- Você sabe mesmo como planejar um bom jantar de primeiro encontro.- Ela abre algumas caixas de pão mofado e cheira.- Você nunca fez isso antes, né? Quero dizer, levar um humano vivo pra casa?
Faço que não com a cabeça quase que me desculpando, mas fico abalada pelo uso da palavra "humano". Nunca gostei daquela diferenciação. Ela é Viva e eu sou Morta, mas gosto de pensar que ambas somos humanas. Pode me chamar de idealista se quiser.
Levanto um dedo para conseguir a atenção dela.
- Mais um ...lugar.
Andamos até o outro lado da praça de alimentação que não tem identificação. Depois de passar por várias portas, estamos na área central do estoque do aeroporto. Abro a porta de um freezer e uma nuvem de ar gelado sopra para fora. Escondo meu alívio. Isso estava começando a ficar constrangedor. Entramos e paramos no meio de prateleiras cheias de bandejas com refeições de avião.
- Olha só o que temos aqui...- Camila diz, e então começa a procurar nas prateleiras mais baixas, inspecionando os bifes e as batatas processadas. Graças aos incríveis conservantes que colocaram nelas, aqueles alimentos parecem estar bem comestíveis.
Camila tenta olhar as etiquetas das coisas que estão nas prateleiras mas altas que ela não alcança, e de repente sorri mostrando fileiras de dentes brancos.
- Olha, tem Phad Thai! Adoro...- Ela se segura e para com aquilo, olhando pra mim com desconforto, então aponta para a prateleira.- Vou querer aquele.
Estico-me e pego várias bandejas de Phad Thai. Não quero que nenhum dos mortos veja Camila comendo o lixo sem vida, essas calorias vazias, por isso eu a levo para a mesa escondida atrás de um quiosque de cartões postais que caiu. Tento levá-la o mais longe possível da escola, mas ainda podemos ouvir os gritos miseráveis ecoando pelo saguão e os corredores. Camila mantém uma expressão de completa calma, mesmo diante dos gritos mais estridentes, fazendo tudo de forma normal para mostrar que não estava notando a carnificina. Será que fazia aquilo por mim ou por ela mesma?
Sentamos em uma mesa e coloquei uma das bandejas em frente a ela.
- Apro...veite.- Falei.
Ela ataca o macarrão congelado e duro como pedra com um garfo plástico, então ela olha pra mim.
- Você não se lembra de muita coisa, né? Quanto tempo faz que você não come comida de verdade?
Dou de ombros.
- E quanto tempo faz que você...morreu ou que quer que seja isso?
Bato com o dedo na minha cabeça e depois a movimento de forma negativa.
Ela me olha de cima a baixo.
- Bom não deve fazer muito tempo. Você tem uma aparência muito boa pra um cadáver.
Fico chateada de novo com a escolha de palavras, mas depois percebo que ela não tem como saber a conotação cultural sensível que a palavra "cadáver" possuí. M a usa às vezes para fazer piada, e eu uso às vezes em meus momentos mais difíceis, mas quando vem de alguém de fora, inflama uma indignação defensiva que ela não entenderia. Respiro fundo e deixo pra lá.
- Bom, não tenho como comer isso deste jeito.- Ela fala, espetando a comida com o garfo até que ele se quebre.- Vou procurar um microondas. Espera aí.
É arriscado, mas percebo que não estou preocupada.
- Agora sim.- Ela diz ao voltar, cheirando com vontade o vapor apimentado que sobe do prato.- Hummm. Não como comida Tailandesa faz muito tempo. Não temos mais comida de verdade no Estádio, apenas nutrição básica e Carboteínas. Barras de Carboteína, pó de Carboteína, suco de Carboteína. Não aguento mais.- Ela se senta e come uma garfada do tofu descongelado.- Nossa, uau! Isso é quase saboroso.
Fico ali sentada e assisto ela comer. Percebo que tem dificuldade de fazer a comida esquentada descer por sua garganta. Pego uma garrafa de cerveja morna red ale da geladeira do restaurante e coloco na mesa.
Camila para de comer e olha para a cerveja. Depois olha pra mim e sorri.
- Ah, Sra. Zumbi, você leu a minha mente.- Ela tira a tampa e dá um grande gole.
- Também faz tempo que não tomo cerveja. Nenhuma substância que mexe com a cabeça é permitida no Estádio. Temos que estar alerta o tempo todo, sermos vigilantes e blá, blá, blá.
Ela dá outro gole e depois me examina com um olhar cheiro de sarcasmo.
- Talvez você não seja um monstro, Sra. Zumbi. Quer dizer, qualquer um que aprecie uma boa cerveja é pelo menos meio legal pelas minhas regras.
Olho para ela e levo uma das minhas mãos ao meu peito.
- Meu...nome...- Eu ofego, mas não sei como continuar.
Ela põe a cerveja na mesa e se inclina um pouco para perto.
- Você tem um nome?
Faço que sim com a cabeça.
Os lábios dela se dobram em um agradável meio sorriso.
- Qual seu nome?
Fecho meus olhos e penso com força, tentando tirar algo do vácuo, mas já tentei isso muitas vezes antes.
- Lll,- Falo, tentando pronunciar algo.
- Elle? Seu nome é Elle?
- LLL.
- Lll? Começa com L?
Aceno que sim.
- Lúcia?
Faço que não.
- Lili? Lurdes?
Faço que não de novo com a cabeça.
- Hã... Laura?
Solto um suspiro e olho para a mesa.
- Que tal se eu chamar você de "L"? E um começo, né?
Meus olhos são atraídos pelos olhos dela.
- L.- Um pequeno sorriso aparece em meu rosto.
- Oi, L.- Ela diz.- Me chamo Camila. Mas você já sabia. Acho que sou uma celebridade fodida.- Ela estiva a cerveja pra mim.- Dá um gole.
Olho para a garrafa por um segundo, sentindo uma estranha náusea ao pensar no conteúdo dela. Âmbar escuro e vazio. Um mijo sem vida. Mas não quero estragar este improvável momento de intimidade com minhas estúpidas manias de morta-viva. Aceito a garrafa e dou um longo gole. Posso sentir a cerveja gotejando pelos pequenos furos em meu estômago e molhando minha camisa. E, para minha surpresa, posso sentir um pequeno zumbido se espalhando pelo meu cérebro. Claro que isso não é possível, afinal não tenho corrente sanguínea para o álcool circular, mas sinto do mesmo jeito. Será que é psicossomático? Talvez uma memória distante da experiência de beber que sobrou da minha antiga existência? Se sim, pelo visto eu era fraca pra bebidas.
Camila sorri da minha expressão estupefata.
- Beba mais um pouco. Eu prefiro mais um vinho, na verdade.
Tomo outro gole. Posso sentir o gloss de morango dos lábios dela no gargalo. Percebo que estou imaginando Camila arrumada para um concerto, com cabelos que vão até o pescoço presos e arrumados com estilo, seu corpo pequeno e radiante em um vestido vermelho de festa, e eu a beijando, o batom manchando a minha boca, espalhando o vermelho brilhante pelos meus lábios cinzentos...
Empurro a garrafa a uma distância segura de mim.
Camila da uma risadinha e volta a comer, se concentrando nisso por alguns minutos, praticamente ignorando minha presença ali. Estou prestes a tentar começar uma conversa fadada ao fracasso quando ela levanta a cabeça. Todos os traços de juventude desapareceram de seu rosto, e ela diz.
- Então, L, porque está me mantendo aqui?
A pergunta me acerta como um tapa. Olho para o teto. Gesticulo a minha volta e em direção aos grunhidos dos colegas Mortos.
- Manter você segura.
- Que mentira.
Ficamos em silêncio. Ela me olha duramente e desvio o olhar.
- Olha.- Ela começa.- Sei que salvou minha vida lá na cidade. E eu sou muito grata por isso. Então, valeu, obrigada por salvar minha vida. Ou por me poupar. Sei lá. Mas você me trouxe para este lugar e tenho certeza de que consegue me tirar daqui. Por isso vou perguntar de novo. Porque está me mantendo aqui?
Os olhos dela são como ferro quente ao lado do meu rosto e percebo que não conseguirei escapar. Ponho uma mão sobre o meu peito. No meu "coração". Será que este pobre órgão ainda representa alguma coisa? Ou ele só fica ali no meu peito, parado, sem bombear mais sangue, sem nenhum propósito, mas meus sentimentos ainda parecem se originar dentro de suas paredes geladas. Minha tristeza silenciosa, meus anseios vagos e minhas raras centelhas de felicidade. Elas se represam no centro do meu peito e de lá escoam pra fora, diluídas e fracas, mas reais.
Aperto a mão contra meu coração. Então a estico até Camila e a coloco no coração dela. Não sei como, mais consigo olhar nos olhos dela.
Ela olha para minha mão e depois me lança um olhar seco.
- Você. Só. Pode. Estar. Brincando. Porra.
Recolho minha mão e desvio o olhar para a mesa, agradecida por não ser capaz de ficar vermelha.
- Precisa...esperar.- Murmuro.- Eles... pensam... você... nova... convertida. Eles... vão perceber.
- Quanto tempo?
- Alguns...dias. Até...esquecerem.
- Jesus Cristo.- Ela suspira e cobre os olhos com as mãos, balançando a cabeça de forma negativa.
- Vai...ficar bem.- Digo a ela.- Prometo.
Ela ignora o que eu digo, tira um iPod do bolso e coloca os fones nos ouvidos. Depois volta a comer, ouvindo uma música que é apenas um silvo baixo pra mim.
Nosso encontro não vai bem.
Mais uma vez os absurdos nos meus pensamentos me domina e quero rastejar pra fora da minha pele, fugir da minha carne feia e desajeitada e ser um esqueleto, pelado e anônimo.
Estou a ponto de levantar e ir embora quando Camila tira um fone do ouvido e me lança um olhar fixo e penetrante.
- Você é diferente, não é mesmo?
Não respondo.
- Nunca ouvi falar de nenhum zumbi que fale, a não ser por gritar "Cééérebro" e todos aqueles malditos grunhidos. Também nunca vi um zumbi ter interesse em um humano que não seja como refeição. E, com certeza, nunca nenhum pagou uma bebida para mim. Há outras(os) como você?
Mais uma vez sinto a necessidade de cortar.
- Não...sei.
Ela empurra o macarrão pelo prato.
- Alguns dias.- Ela repete.
Concordo com a cabeça.
- E o que devo fazer por aqui até ser seguro eu ir embora? Espero que não esteja achando que vou ficar a semana toda na sua casa-avião, tomando banhos de sangue.
Penso um pouco. Um arco-íris de imagens inunda minha cabeça, provavelmente fragmentos de filmes antigos que assisti, todos melosos, românticos e totalmente impossíveis. Tenho que conseguir me controlar.
- Vou...distrair você.- Acabo dizendo, e ofereço um sorriso não muito convincente.
- É minha... convidada.
Ela rola os olhos em desaprovação e volta à comida. Um dos fones de ouvido ainda está sobre a mesa. Sem desviar o olhar da comida, ela o oferece a mim. Coloco no meu e a voz de Paul McCartney entra na minha cabeça. Cantando todos aqueles antônimos saudosos, yes/no, high/low, hello/good bye/hello.
- Sabia que John Lennon odiava esta música?- Camila pergunta enquanto a música toca, falando em minha direção, mas não se dirigindo exatamente a mim.- Ele achava que era apenas um monte de palavras sem sentido. O engraçado é o comentário vir do cara que escreveu "I Am the Walrus".
- Goo goo...gajoob- Eu canto.
Ela para, olha pra mim e inclina a cabeça com a prazerosa surpresa.
- Sim, é disso que eu tava falando.- Ela toma um gole da cerveja sem prestar atenção, se esquecendo que meus lábios tocaram o gargalo e meus olhos se arregalaram em um pânico rápido. Mas nada acontece. Talvez minha infecção não seja transmitida em momentos leves como este. Talvez necessite da violência da mordida.
- De qualquer forma, é muito falatório pra este momento.- Ela diz e então passa para a próxima música. Ouço Ava Gardner começar a cantar algo, mas então Camila pula mais algumas músicas, então para em um rock desconhecido e aumenta o volume. Percebo a música ao longe, mas me desliguei de novo. Vejo Camila balançar a cabeça de um lado para o outro com os olhos fechados. Mesmo agora, aqui, em um dos lugares mais escuros e estranhos, com a mais macabra da companhias, ela é movida pela música e sua vida pulsa com força. Sinto o cheiro dela novamente, um vapor branco e brilhante flutuante por baixo do meu sangue negro. E, apesar de eu prezar pela segurança dela, não posso sufocá-lo completamente.
O que tem e errado comigo? Olho para a minha mão e sua carne cinza e pálida, fria e dura, e sonho que ela é rosa, quente e flexível, e que pode manejar, construir e acariciar. Sonho que minhas células necrosadas estão saindo de sua letargia, inflando e acendendo como o Natal lá no fundo doeu âmago sombrio. Será que estou inventando tudo isso igual ao zumbido da cerveja? Será um efeito placebo? Uma ilusão otimista? Seja como for, sinto que a linha reta da minha existência está mudando, formando vales e morros como os batimentos cardíacos.

My girlfriend is a zombie.Where stories live. Discover now