IX parte 3

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Dentro da casa, sobre a mesa de jantar, encontro um bilhete. Tem algo escrito, letras que não consigo juntar e formar palavras, mas ao lado há duas fotos. As duas de Camila, tiradas por ela mesma, esticando o braço. Em uma ela está acenando adeus com a mão, e o gesto parece hesitante, meio sentimental apenas. Na outra ela está com a mesma mão sobre o peito. Seu rosto está sério, mas seus olhos estão lacrimosos.
Adeus, L, o retrato sussurra para mim. Chegou aquela hora. É a hora de dizer. Será que você consegue?
Seguro a foto na minha frente, olhando para ela. Passo os dedos nela, fazendo parecer aqueles arco-íris por que a foto acabou de ser revelada. Penso em levá-las comigo, mas é melhor não. Ainda não estou pronta pra transformar Camila em uma recordação.
Fale, L. Fale agora.
Coloco a foto de volta na mesa e vou embora. Não digo nada.

...

Começo a caminhar de volta para o aeroporto. Não sei o que vou encontrar lá. Uma morte definitiva? É bem possível, depois de toda a comoção que causamos. Os Ossudos podem me jogar fora como um simples lixo infeccioso. Mas estou sozinha de novo, meu mundo é pequeno e não tenho muita opção. Não tenho outro lugar para ir.
O caminho feito em 40 minutos de carro vai levar o dia todo a pé. Enquanto estou andando, o vento muda de direção e as nuvens carregadas assustadoras de ontem voltam ao horizonte. Elas vão me cercando, diminuindo aos poucos o azul do céu como um círculo que se fecha. Ando reto e rápido, quase marchando.
O pouco azul que resta no céu vai virando cinza, azul-escuro, então se fecha completamente e começa a chuva, que cai numa torrente que faz a noite anterior parecer um chuveiro fraco. E fico totalmente confusa quando começo a sentir frio. Quando a água vai encharcando minhas roupas e todos os poros da minha pele, eu tremo. E apesar de ter mais do que posto meu sono em dia recentemente, sinto-o aparecer de novo. São quase três noites seguidas.
Pego a próxima saída da estrada e subi no triângulo gramado que fica entre a pista e a saída. Entro no mato e me agacho no meio das árvores, uma mini floresta de uns dez a doze cedros dispostos em um agradável padrão para os estressados motoristas fantasmas.
Encolho-me como uma bola no pé de uma dessas árvores conseguindo uma relativa proteção graças aos galhos densos. Fecho os olhos. Um raio aparece no horizonte, o trovão faz meus ossos tremerem e então mergulho na escuridão.

...

Eu e Camila estamos no 747 e percebo que estou sonhando. Mas é um sonho bem real, não uma memória da vida de Matt. É algo que vem totalmente de mim. A clareza melhorou um pouco depois daquela primeira tentativa frustrada que meu cérebro fez no aeroporto. Mas a qualidade da imagem ainda é estranha e precária, como se fosse um filme amador quando comparado com as superproduções da vida de Matt.
Camila e eu estamos sentadas com as pernas entrecruzadas, uma de frente para a outra, flutuando acima das nuvens na asa direita do avião. O vento levanta nossos cabelos, mas ele não é mais forte do que o que enfrentamos no conversível.
- Quer dizer agora que você sonha?
Camila pergunta.
Sorrio nervosa.
- Parece que sim.
Camila não sorri. Seus olhos estão frios.
- Imagino que não tivesse com o que sonhar até ter problemas com mulheres. Você parece uma menina tentando manter um diário.
Agora estamos em terra, sentadas no gramado de um subúrbio ensolarado. Um casal de obesos mórbidos faz um churrasco com membros humanos no quintal. Tento manter o foco em Camila.
- Estou mudando.- Falo para ela.
- Não ligo para isso.- Ela responde.
- Estou em casa. Voltei ao mundo real, onde você não existe. O acampamento de verão acabou.
Um Mercedes com asas passa roncando no céu e desaparece ao longe em uma explosão de som.
- Acabou.- Ela diz, falando enquanto me olha nos olhos.- Foi divertido, mas acabou. As coisas são assim agora.
Faço que não com a cabeça, evitando o olhar dela.
- Não estou pronta.
- O que você achou que iria acontecer?
- Não sei. Só tinha esperança de que algo acontecesse. Um milagre.
- Milagres não existem. Existe causa e efeito, sonho e realidade, Vivos e Mortos. Sua esperança é absurda e seu romantismo, vergonhoso.
Olho para ela, apreensiva.
- Você precisa crescer.- Camila voltou a posição original dela.- É você precisa crescer. É assim que as coisas são. Sempre foram e sempre serão.
Ela sorri de modo afetado e seus dentes parecem presas amarelas. Ela me beija, roendo através dos meus lábios, mordendo meus dentes e roendo em direção ao meu cérebro, enquanto grita como uma criança a beira da morte. Engasgo com meu sangue quente e vermelho.

My girlfriend is a zombie.Where stories live. Discover now