VI

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- Precisa virar mais rápido. Você quase sai da pista quando vira à direita.
Aperto a pequena direção de couro e piso fundo no acelerador. O Mercedes dá um salto para frente, jogando nossas cabeças para trás.
- Meus Deus, você é uma pé de chumbo. Não pode pisar mais leve nesse acelerador?
Paro bruscamente, me esqueço de pisar na embreagem e motor morre. Camila gira os olhos em desaprovação e se esforça pra transparecer paciência em sua voz.
- Certo, observe.- Ela liga novemente o carro, vem para o meu lado e coloca as pernas entrelaçadas com as minhas, com os pés ficando sob os meus. Com a pressão dela, solto a embreagem aos poucos, ao mesmo tempo que pressiono o acelerador, fazendo com que o carro deslize suavemente para a frente.- Desse jeito.
Ela fala e volta ao acento do passageiro. Solto um chiado de satisfação.
Estamos rodando pelas pistas, de lá pra cá e daqui pra lá, sob o sol do meio da tarde. Nossos cabelos se agitam ao vento. Aqui, neste momento, dentro dessa caranga 64 vermelha brilhante com uma bela garota ao meu lado, não consigo deixar de me transportar pra uma vida diferente, uma vida mais cinema clássico. Minha mente voa e perco o pouco foco que em geral consigo manter. Saio da pista e acerto o para-choque de um caminhão-escada, desalinhado o círculo da igreja dos Ossudos. O impacto joga nossas cabeças para o lado e ouço os pescoços dos meus filhos estalarem no banco de trás. Eles grunhem em protesto eu faço"Sssshhhhh!" pra eles. Já estou bastante envergonhada e não preciso que eles joguem isso na minha cara.
Camila examina a frente do carro sacode a cabeça em desaprovação.
- Que droga, L. Era um belo carro.
Meu filho se inclina para a frente em outra tentativa de morder o ombro de Camila, mas eu estico a mão e dou tapinhas nele. Ele encosta de novo em seu acento com os braços cruzados e faz beicinho.
- Nada de morder!- Camila repreende, ainda inspecionando os danos do carro.
Não sei porque decidi trazer meus filhos para a aula de direção de hoje. Camila já está tentando me ensinar faz alguns dias, e hoje senti uma necessidade obscura de ser mãe. De transmitir conhecimento. Sei que não é algo muito seguro. Mas meus filhos são muito jovens para conseguir reconhecer os padrões de fala dos Vivos, e muito menos sentir o aroma deles como eu faço. Além disso, refiz várias vezes a repulsiva camuflagem de Camila, mas não tão perto assim, a verdadeira natureza dela ainda escapa no ar. De vez em quando meus filhos conseguem sentir seus instintos lentos ainda em desenvolvimento tomam conta. Tento discipliná-los amorosamente.
Quando fazemos a volta e seguimos em direção ao nosso terminal, percebo a congregação emergindo do portão de um terminal de cargas. Como a procissão de funeral invertida, os Mortos marchavam solenemente em fila, com passos lentos e pesados, em direção à igreja. Um grupo de Ossudos liderava a romaria, se movendo para a frente com muito mais propósito do que qualquer um dos que ainda tinham carne. Eles eram os poucos dentre nós que pareciam sempre saber exatamente onde estavam indo e o que iriam fazer. Eles não hesitam, não fazem pausas ou mudam de direção, e seus corpos não evoluem nem apodrecem mais. Eles são totalmente estáticos. Um deles olha diretamente pra mim e me lembro de uma gravura da Idade Média que vi uma vez de um cadáver apodrecido zombando de uma nobre virgem gordinha.

Quod tu es, ego fui, quod sum, tu eris.
O que você é, eu já fui um dia.
O que sou, você se tornará.

Desvio os olhos do olhar vazio do esqueleto. Enquanto passamos devagar ao lado da fila deles, alguns dos Carnudos nos lançam olhares desinteressados, e então vejo minha esposa entre eles. Ela está andando ao lado de um homem e eles estão de mãos dadas. Meus filhos a vêem na multidão e ficam de pé no banco traseiro, acenando e grunhindo alto. Camila olha para o mesmo lado e vê minha esposa acenando para eles, e então se vira pra mim.
- Aquela é...hã, tipo...sua esposa?
N

ão respondo. Olho para minha esposa esperando algum tipo de reprovação, mas quase não há nem um reconhecimento em seus olhos. Ela olha para o carro. Ela e olha para mim. Depois, olha apenas para a frente e continua andando, ainda de mãos dadas com o homem.
- Aquela é sua esposa?- Camila pergunta novamente, mais energicamente desta vez. Faço que sim com a cabeça.- Quem é aquele...cara que está com ela?- Dou de ombros.- Ela está te traindo ou algo assim?- Dou de ombros.- Isso não incomoda você?
Dou de ombros.
- Pare de fazer isso, sua cuzona! Sei que pode falar. Diga algo!
Penso um pouco naquilo. Vendo minha mulher desaparecer ao longe, coloco a mão no coração.
- Morto.- Aponto para a minha mulher.
- Morta.- Meus olhos se movem em direção ao céu e perdem o foco.- Queria que...doesse. Mas... não dói.
Camila olha para mim como se esperasse por mais alguma coisa e fico imaginando se consegui transmitir algo com meu solilóquio quebrado e balbuciado. Será que minhas palavras são audíveis ou são apenas um eco em minha cabeça enquanto as pessoas olham para mim e esperam? Quero mudar a minha pontuação. Quero pontos de exclamação, mas estou me afogando em elipses.
Camila fica me olhando por um longo momento então vira para frente e observa o cenário que se forma. À nossa direita temos as escuras e vazias entradas dos túneis de embarque, que um dia já estiveram vivos e cheios de viajantes se preparando para ver o mundo, expandir seus horizontes e encontrar amor, fama e fortuna. À esquerda temos os escombros escuros de um Boeing Dreamliner.
- Meu namorado me traiu uma vez.
Camila fala olhando para a frente.
- O pai dele deu abrigo para uma garota enquanto as adoções ainda eram organizadas. Uma noite eles ficaram bêbados de cair e acabou rolando. Foi um acidente e ele fez a confissão mais sincera e tocante de todos os tempos, Jurou por Deus que me amava mais do que tudo e que faria qualquer coisa pra provar e blá, blá, blá, mas não adiantou nada. Continuei pensando naquilo, repassando tudo na minha cabeça e me consumindo com aquilo. Chorei todas as noites durante semanas e gastei de ouvir todas as músicas tristes do meu iPod.
Enquanto fala, ela sacode a cabeça lentamente, seus olhos estão bem longe.- As coisas são...eu sinto demais as coisas às vezes. Quando aconteceu aquilo com o Matt, eu adoraria ser mais parecida com você.
Eu a observo. Ela passa a mão no cabelo e o enrola um pouco com um dedo. Noto que ela tem cicatrizes já quase imperceptíveis nos pulsos e antebraço, linhas finas e simétricas demais pra ser o resultado de um acidente. Ela pisca e olha pra mim repentinamente, como se eu a tivesse acordado de um sonho.- Não sei porquê estou contando isso pra você.
Ela fala um pouco irritada.- Bom, por hoje chega de aula. Estou cansada.
Sem falar mais nada, dirijo para casa. Freio meio tarde e paro o carro com meu para-choque dois centímetros sobre a grade de um Miata.
Camila suspira.

My girlfriend is a zombie.Where stories live. Discover now