XI parte 1

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A arena esportiva que Camila chama de lar é absurdamente grande, talvez daqueles estádios multieventos construídos em uma época na qual o maior problema do mundo era onde acomodar todas as festas. Do lado de fora não se vê nada, apenas um mamute oval de muros intermináveis, uma arca de concreto que Deus conseguiria fazer flutuar. Mas o interior revela a alma do estádio, caótico, mas se apegando à ordem, como se fosse uma grande favela brasileira, só que desenhada por um arquiteto modernista.
As arquibancadas foram destruídas para dar espaço a fileiras de pequenos prédios casas raquíticas construídas estranhamente altas e finas para que o espaço fosse bem aproveitado. As paredes eram feitas de uma mistura de materiais resgatados - uma das torres mais altas começava com concreto e vai se afinando para cima, passando por aço, plástico, chegando ao precário nono andar feito com compensando de madeira. A maioria das construções parece que vai cair no primeiro ventinho, mas a cidade toda é alavancada por uma teia de cabos rígidos que vão de torre em torre, segurando tudo com firmeza. As paredes internas o Estádio se erguem acima de tudo, cheias de canos cortados e rebarbas saindo do concreto como se fossem uma barba por fazer. Postes de luz com pouca energia lançam uma iluminação alaranjada fraca, deixando a cidade enclausurada envolvida pelas sombras.
No momento que saio do túnel de entrada minhas fossas nasais são inflamadas pela densidade de vida que existe aqui. Está por todos os lados à minha volta, tão doce e potente é quase doloroso. Sinto como se estivesse me afogando em um vidro de perfume. Mas no meio dessa neblina densa, posso sentir o cheiro de Camila, que faz cócegas no meu nariz, me chamando bem baixinho como uma voz embaixo d'água. E eu sigo o aroma.
As ruas tem largura de calçadas, estreitas faixas de asfalto construídas por cima da grama, que ainda escapava de cada pequeno buraco não pavimentado como um musgo verde espalhafatoso. Não há nomes nas placas das ruas. Em vez de listas de estados, presidentes ou nomes de árvores, as placas apresentam apenas desenhos brancos, uma maçã, uma bola, um gato, um cachorro, como se fosse guia alfabética para crianças. Tem lama por todos os lados, deixando o asfalto mais liso e se empilhando nas esquinas junto com detritos do dia a dia, latas de refrigerante, bitucas de cigarro, camisinhas usadas cápsulas de balas.
Tento não ficar olhando estupidamente para a cidade como a turista jeca que sou, mas tem algo acima da curiosidade chamando minha atenção a cada calçada e telhado. Apesar de tudo ser novo para mim, também sinto uma sensação fantasma de reconhecimento, nostalgia até, e quando caminho até o que deve ser a Rua Olho, algumas das minhas memórias roubadas começam a se agitar.
Foi aqui que tudo começou. Foi pra cá que nos mandaram quando a costa desapareceu. Quando as bombas caíram. Quando nossos amigos morreram e voltaram como estranhos, desconhecidos cruéis.
Não é a voz de Matt, é a de todos, um murmúrio coletivo de todas as vidas que consumi, se juntando no salão escuro do meu subconsciente para recordar.
Avenida da Bandeira, onde plantaram as cores da nação, quando ainda existiam nações e as cores ainda importavam. Rua das Armas, onde montaram os acampamentos de guerra, planejando ataques e defesas contra os inimigos intermináveis, tanto os Vivos quanto os Mortos.
Ando com a cabeça baixa, me mantendo o mais perto do muro que consigo. Quando encontro com alguém vindo no sentido contrário, mantenho meu olhar diretamente à frente até o ultimo momento, então permito uma troca rápida de olhares, para também não parecer não humana. Passo pelos vivos distribuindo cumprimentos desajeitados.
Não precisou muito para se derrubar os castelo de cartas que era a civilização. Apenas algumas rajadas de vento e estava feito, o equilíbrio estragado e o feitiço quebrado. Os bons cidadãos descobriram que as linhas que haviam moldado suas vidas eram imaginárias e facilmente cruzadas. Eles tinham desejos e necessidades e o poder de satisfazê-las, e foi o que fizeram. No momento em que as luzes se apagaram, todo mundo parou de fingir.
Começo a me preocupar com minhas roupas. Todos que encontro estão usando calças jeans cinzentas e grossas, jaquetas à prova d'água e botas de trabalho sujas de lama. Em que mundo eu vivo que as pessoas ainda se vestiam levando em conta a estética? Se ninguém perceber que sou uma zumbi, ainda podem me denunciar por ser uma lunática estilosa andando pelas ruas com uma camisa de bom caimento. Acelero o passo, cheirando o ar desesperadamente atrás do aroma de Camila.
Avenida Ilha, onde construíram um pátio para as reuniões da comunidade, onde o "eles" se tornou "nós", ou pelo menos acreditávamos nisso. Nós votamos e escolhemos nossos líderes, homens e mulheres encantadores com dentes brancos e línguas de prata, e colocamos nossos muitos medos e esperanças nas mãos deles, acreditando que mãos eram fortes por causa de seus firmes apertos de mão. Mas eles falharam conosco, sempre. Eles eram humanos e nós também.
Saio da Rua Olho e começo a procurar meu caminho pelo centro daquele sistema. O aroma de Camila aparece mais distinto agora, direção exata ainda permanece vaga. Continuo torcendo para que surja alguma pista da cantoria em minha cabeça, mas esses antigos fantasmas não têm nenhum interesse na minha busca insignificante.
Rua das Jóias, onde construímos escolas quando aceitamos que isto era a realidade, que este era o mundo que nossas crianças herdariam. Ensinamos a elas como atirar, como misturar concreto, como matar e como sobreviver, e se elas conseguissem ir longe, aprendessem todas aquelas habilidades e tivessem tempo ainda sobrando, nós as ensinaríamos a ler e a escrever, a serem racionais, a se relacionarem e a entenderem o mundo delas. No começo, tentamos bastante, pois havia muita esperança e fé, mas era um morro íngreme a ser escalado na chuva, e muitos acabaram escorregando até lá embaixo.
Percebo que os mapas nessas minhas memórias estão um pouco desatualizados, a rua que chamaram de Joia foi renomeada. A placa é nova, de um verde primário, e em vez de ter um símbolo, ela tem um nome escrito. Intrigada, viro na bifurcação e me aproximo de um prédio de metal atípico. O aroma de Camila ainda esta distante, por isso sei que não devo parar, mas a luz pálida vinda das janelas parece provocar uma certa angústia nas minhas vozes interiores. Quando encosto o nariz no vidro da janela, meus pensamentos se calam.
É uma sala grande e aberta, com várias fileiras de mesas de metal branco sob luzes fluorescentes. Dúzias de crianças com menos de dez anos estão divididas nas fileiras em grupos de trabalho. Uma fileira repara geradores, outra trata a gasolina, uma limpa rifles, afia facas, costura ferimentos. E no final, bem perto da janela onde estou olhando, uma fileira desseca cadáveres. Mas é claro que não são cadáveres. Quando uma menininha de uns oito anos, com maria-chiquinhas loiras, afasta a pele da boca do seu objeto de estudo, revelando a crosta cinza Por baixo, os olhos da coisa se abrem, olham em volta e o ser faz um esforço rápido contra o que o prende, e então relaxa, parecendo cansado e entediado. Ele olha na direção da minha janela e fazemos um rápido contato visual, logo antes de a garota arrancar os olhos dele.
Tentamos construir um belo mundo aqui, as vozes murmuram. Havia aqueles que viam o fim da civilização como uma oportunidade para recomeçar, desfazendo os erros da nossa história - aliviando a desajeitada adolescência da humanidade com a sabedoria da nossa era moderna. Mas tudo estava acontecendo rápido demais.
Ouço o barulho de um violento tumulto vindo do outro lado do prédio, sapatos raspando no concreto, cotovelos batendo em metal. E então um grunhido baixo e molhado. Dou a volta no prédio, procurando uma vista melhor.
Do lado de fora de nosso muros, estavam hordas de homens e monstros ansiosos para roubarem o que tínhamos, e do lado de dentro estava nossa própria mistura louca, tantas culturas, línguas e valores incompatíveis fechados em uma pequena caixinha. Nosso mundo era pequeno demais para ser dividido em paz, o consenso nunca veio e a harmonia era impossível. Então ajustamos nossos objetivos.
Por outra janela, vejo um grande espaço aberto que parece um galpão, com uma luz fraca e cheio de carros quebrados e destroços, como que simulando a paisagem da cidade lá fora. Um grupo de garotos mais velhos está em volta de um curral delimitado por uma cerca de arame e barreiras de concreto. Parece aquelas zonas de discurso livre usadas um dia para conter pessoas que protestavam contra algo atrás de uma barreira policial, mas em vez de estar cheio de manifestantes com cartazes e faixas tremulando, aquela jaula está ocupada por apenas quatro figuras: um garoto armado dos pés á cabeça com todos os apetrechos da tropa de choque da polícia e três Mortos que já tinham sido bem dissecados.
Será que os médicos da Idade Media podem ser culpados pelos seus métodos? As sangrias, os sanguessugas, os furos no crânio? Eles tentavam seguir seus caminhos cegamente, se agarrando aos mistérios de um mundo sem as ciências, mas a praga estava se abatendo sobre eles e eles precisavam fazer algo. Quando chegou a nossa vez, não foi diferente. Apesar de toda a nossa sabedoria e tecnologia, nossos bisturis a laser e serviços sociais, a coisa não foi diferente. Estávamos tão cegos quanto desesperados.
Posso dizer pelo jeito que cambaleiam que os Mortos nesta arena estão famintos. Eles devem saber onde estão e o que está prestes a acontecer, mas já passaram e muito do ponto de terem aquele mínimo controle sobre si mesmos. Eles investem contra o garoto, que aponta sua escopeta.
O mundo lá fora já afundou em um mar de sangue e agora as ondas estão batendo em nossa fortaleza, por isso tivemos que fortalecer nossos muros. Percebemos que o mais perto que podíamos chegar da verdade objetiva era pela decisão da maioria, então
elegemos majoritariamente e ignoramos as outras vozes. Designamos generais, empreiteiros, policiais e engenheiros, e descartamos todos os ornamentos não essenciais. Fundimos nossos ideais sob forte calor e pressão, até que as partes sensíveis se queimassem, e o que surgiu dali foi uma moldura temperada e rígida o suficiente para aguentar o mundo que tínhamos criado.
- Está errado!- O instrutor gritou para o garoto na gaiola quando ele atirava nos Mortos que avançavam, abrindo buracos em seus peitos e arrancando dedos e pés.- Acerte a cabeça! Esqueça de todo o resto!- O garoto dispara mais dois tiros que erram completamente o alvo, batendo no pesado teto de compensado. O mais rápido dos três zumbis estica os braços e arranca a arma das mãos dele, luta contra a pulseira de checagem da pulsação de segurança por um momento, depois joga para o lado e empurra o garoto para a grade, mordendo de forma selvagem o capacete totalmente fechado. O instrutor corre para dentro, bate com sua pistola na cabeça do zumbi, dá um tiro e abaixa a arma.- Lembrem-se Ele diz para a classe toda.- Que o coice de uma escopeta fará com que o cano suba, especialmente estas velhas Mossberg, então mirem mais para baixo se não quiserem atirar no céu azul.- Ele pega a arma e coloca novamente nas mãos trêmulas do garoto.
- Continue.
O garoto hesita, então levanta o cano e atira duas vezes. Pedaços de sangue coagulado batem na proteção transparente do capacete em frente ao seu rosto, pintando-o de preto. Ele arranca o capacete e encara os cadáveres aos seus pés, respirando rápido e lutando para não chorar.
-Muito bom!- Elogia o instrutor.
-Lindo. Quem é o próximo?
Sabíamos que estava tudo errado. Sabíamos que estávamos nos degradando de maneiras que nem podíamos nomear e nos lamentávamos com memórias de dias melhores, mas não víamos mais nenhuma alternativa. Estávamos fazendo o nosso melhor para sobreviver. As equações raízes dos nossos problemas eram complexas e estávamos exaustos demais para resolvê- las.
Um barulho de farejar aos meus pés me faz finalmente desviar o olhar da cena na janela. Olho para baixo e vejo um filhote de Shepherd Alemão estudando minhas pernas com narinas cintilantes e úmidas. Ele olha para mim. Olho para ele lá embaixo, ofegando feliz por um momento e então começa a comer minha panturrilha.
-Trina, não!- Um garotinho vem correndo e segura a coleira, puxando a cadela para longe de mim e a levando até a porta aberta de onde tinha saído.- Cachorrinha malvada.
Trina gira a cabeça para conseguir olhar para mim.
-Desculpe!- Diz o garoto do outro lado da rua.
Aceno para ele levemente com uma das mãos.
- Tudo bem.
Uma garotinha sai da porta e se junta a ele, apertando a barriga e olhando para mim com seus grandes olhos escuros. O cabelo dela é preto e o do garoto é loiro e encaracolado. Os dois devem ter uns seis anos.
-Não conte para nossa mãe, tudo bem?
Ela pede.
Faço que não com a cabeça, engolindo um repentino refluxo de emoções. O som das vozes daquelas crianças, a dicção infantil perfeita...
- Vocês conhecem... a Camila?
Pergunto.
- Camila Estrabão? - o menino indaga.
- Camila Cabe...llo.
- Gostamos muito da Camila Estrabão. Ela lê para gente todas as quartas-feiras.
- Histórias!- A garotinha acrescenta.
- Não reconheço o nome, mas um fiapo de memória se apruma ao som dele.
- Sabem onde... ela mora?
- Rua das Margaridas.- Diz o menino.
- Não, Rua das Flores. São flores!
- Margarida é uma flor.
- Ah.
- Ela mora em uma esquina, entre a Rua das Margaridas e a Avenida do Diabo.
- Avenida do Touro.
- Não é um touro, é um diabo. Os dois têm chifres.
- Oh!
- Obrigada- Digo a eles e me viro para ir embora.
- Você é uma zumbi?- A garotinha pergunta em um guincho tímido.
Congelo na hora. Ela espera a minha resposta, equilibrando o peso em cada um dos pés alternadamente. Relaxo, sorrio para ela e dou de ombros.
- Camila... acha que não.
Uma voz brava grita da janela do quinto andar algo sobre um toque de recolher, fechar a porta e não falar com estranhos, então aceno um adeus para as crianças e me apresso em direção às Margaridas e ao Diabo. O sol se pôs e o céu está cor de ferrugem. Um alto-falante a distância proclama uma sequência de números, e a maioria das janelas à minha volta apaga as luzes. Me apresso e começo a correr.

My girlfriend is a zombie.Where stories live. Discover now