IX parte 2

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Em algum momento antes do amanhecer, enquanto estou ali deitada, sem nenhuma necessidade real de descansar, um sonho surge como um filme atrás dos meus olhos. Só que não é um sonho, é uma visão nítida e brilhante demais pra ter sido criada apenas pelo meu cérebro sem vida. Em geral essas memórias de segunda mão são preenchidas pelo gosto de sangue e neurônios, mas não naquela noite. Fecho os olhos e a coisa simplesmente acontece, um espetáculo surpresa a meia-noite.
A cena inicial é um jantar. Uma longa mesa de metal com alguns poucos alimentos. Um tigela de arroz. Outra de feijão. Um pão de forma de linhaça.
- Obrigado por esta comida, Senhor.
Diz o homem na cabeceira da mesa, com as mãos juntas em frente a ele, mas com os olhos bem abertos.
- Abençoados sejam os nossos corpos. Amém.
Camila cutuca o garoto sentado ao lado dela. Ele aperta a coxa dela por baixo da mesa. O garoto é Matthew Hussey. Estou novamente dentro da cabeça dele. O cérebro dele já acabou, a vida dentro dele se evaporou e foi inalada...mas, mesmo assim, ele ainda está por aqui. Será que é um flashback químico? Algum pedacinho de seu cérebro ainda se dissolvendo dentro de mim? Ou é ele mesmo, ainda se segurando em algum lugar, de alguma forma, por alguma razão?
- Mas então, Matthew.- Diz o pai de Camila.
- Camila me contou que você está trabalhando em Agricultura agora.
Engulo meu arroz.
- Sim, Senhor, General Cabello. Sou um...
- Não estamos no refeitório, Matt, isto é um jantar. Só Sr. Cabello já está bom.
- Certo, Senhor.
Tem quatro cadeiras na mesa. O pai dela está na cabeceira e nós dois sentamos nas cadeiras à direita dele. A cadeira do outro lado da mesa está vazia, e o que Camila me contou à respeito de sua mãe é o seguinte:
"Ela partiu quando eu tinha doze anos." E apesar de eu já ter sondado gentilmente, ela nunca me falou mais nada, nem mesmo quando estávamos nus na minha cama , exaustos, felizes e tão vulneráveis quanto duas pessoas podem ser.
- Atualmente sou plantador.- Falo para o pai dela.- Mas estou pensando em tentar uma promoção. Acho que tentarei Supervisor de colheita.
- Entendo.- Ele assente com a cabeça pensativo.- Não é um trabalho ruim... Mas fico imaginando porque não se junta ao seu pai em Construção. Tenho certeza de que ele teria lugar para mais um jovem naquele importante corredor.
- Ele me convidou mesmo, mas... não sei, acho que Construção não é o lugar certo pra mim agora. Gosto de trabalhar com as plantas.
- Plantas.- Ele repete.
- Só acho que atualmente, nesta era, tem algo significativo em cultivar coisa. O solo está tão esgotado que é difícil tirar muito dele, mas dá uma grande satisfação quando se consegue fazer aparecer um verde daquela crosta cinza.
O Sr. Cabello para de mastigar e seu rosto não mostra nenhuma expressão. Camila parece desconfortável.
- Lembra daquela planta que tínhamos em nossa sala de estar da casa antiga? Aquela que parecia uma arvorezinha magrinha?
- Lembro...- O pai dela responde.- O que é que tem?
- Você amava aquela coisinha. Não finja que não liga para jardinagem.
- Aquela planta era da sua mãe.
- Mas era você que a adorava.- Ela se virou para mim.- O papai era um ótimo designer de interiores, acredite se quiser, ele deixou nossa antiga casa decorada como se fosse um showroom de uma loja de decoração, com vidros e metais modernos, coisa que minha mãe não suportava. Ela preferia que fosse tudo natural, com fibras de cânhamo e madeiras de firma sustentável...
O rosto do Sr. Cabello parecia duro. Camila não tinha notado ou simplesmente não ligava.
- ... Então, para contra-atacar, ela compra a arvorezinha super verde, e coloca um grande vaso de vime e a ajeita bem no meio da sala de estar branca e prateada perfeita do papai.
- Não era a minha sala de estar.- Ele protesta.- Pelo que me lembro, votamos a respeito de cada peça de mobília e você sempre ficou do meu lado.
- Eu tinha uns oito anos e gostava de fingir que estava em uma nave espacial. Enfim, a mamãe comprou a planta e eles discutiram por uma semana, meu pai dizendo que não combinava e minha mãe falando que ou a planta ficava ou ela ia embora.
Camila hesitou por um momento. O rosto do seu pai endurece ainda mais.
- Aquilo, hã, durou um tempinho, mas como minha mãe continuava sendo a mesma, logo ficou obcecada por outra coisa e parou de regar a planta. Quando ela começou a morrer, adivinha quem adotou a pobrezinha?
- Não podia ter uma pequena árvore morta como peça de centro da nossa sala. Alguém tinha que cuidar dela.
- Você a regava todos os dias, pai. E colocava adubo e podava.
- Sim, Camila, e assim que você mantém uma planta viva.
- Porque não pode admitir que amava aquela planta estúpida, pai?- Ela olha para ele com um misto de surpresa e frustração.- Não entendo. O que tem de errado nisso?
- Porque é absurdo!- Ele diz, e o humor ali muda repentinamente.
- Você pode aguar e podar uma planta, mas não "amar" uma planta.
Camila abre a boca para falar algo, mas logo fecha de novo.
- É uma decoração sem sentido. Ela fica ali consumindo tempo e recursos e então, um dia, decide morrer, independentemente de quanto você a regou. É absurdo ligar uma emoção a algo tão sem sentido e breve.
Houve alguns longos segundos de silêncio. Camila desvia o olhar do pai e dá uma garfada em seu arroz.
- De qualquer forma, Matt.- Ela murmura.
- A questão é que meu pai costumava ser jardineiro. Então vocês podem trocar histórias de jardinagem.
- Eu me interesso por muitas coisas além de jardinagem.- Comento, torcendo para conseguir mudar de assunto.
- É mesmo?- Cabello diz.
- Claro, motocicletas, por exemplo. Achei uma BMW R 1200 R um tempo atrás e estou trabalhando para deixá-la à prova de balas e pronta para o combate, se por acaso precisar.
- Você tem experiência em mecânica. Isso é bom. Estamos com falta de mecânicos em Armamentos.
Camila vira os olhos e empurra uns feijões para a boca.
- Também tenho passado bastante tempo nos treinamentos de tiro. Tenho pedido trabalhos extras na escola e me dei muito bem com a M40.
- Hey, Matt.- Camila diz.- Porque não conta ao meu pai sobre seus outros planos? Por exemplo, que sempre quis...
Piso no pé dela. Ela me dá uma olhadela.
- Sempre quis o quê?- O pai dela pergunta.
- Eu não... não é bem...- Tomo um gole de água.- Ainda não tenho certeza, senhor, sendo bem honesto ainda não tenho certeza do que quero fazer na vida. Mas tenho certeza de que já saberei quando começar o ensino médio.
O que você ia dizer? L pensa em voz alta interrompendo a cena de novo, e sinto um abandono quando trocamos de novo de lugar. Matt olha pra ela-pra mim- com uma careta.
- Poxa vida, morta-viva, agora não. Está é a primeira vez que me encontro com o pai de Camila e a coisa não está indo bem. Preciso de foco.
- Está tudo bem.- Camila diz a Matt.
- Meu pai anda assim mesmo ultimamente, eu já tinha avisado.
- É bom prestar atenção.- Matt fala pra mim.- Talvez você um dia tenha que se encontrar com ele e vai ter muito mais dificuldade em conseguir a aprovação dele do que eu.
Camila passa a mão no cabelo dele.
- Ah, amor, não vamos falar do presente, senão fico me sentindo excluída do papo.
Ele suspira.
- Tá, tudo bem. Está época foi bem melhor mesmo. Acabei virando uma estrela de nêutrons quando cresci.
Desculpe ter matado você, Matt. Não é como se eu quisesse fazer isso, é apenas...
- Deixa pra lá, defunta, eu entendo. Naquele momento eu meio que queria isso mesmo.
- Aposto que ainda sinto a sua falta quando penso em momentos como este.- Camila fala melancolicamente.
- Você era um cara legal, antes de meu pai pôr as garras dele em você.
- Tome conta dela, tá bom?- Matt sussurra pra mim.- Ela já passou por muita coisa difícil. Mantenha a Camila segura.
Pode deixar.
O Sr. Cabello limpa a garganta.
- Começaria a planejar agora, se fosse você, Matt. Com suas habilidades, devia considerar fazer treinamento em Segurança. Coisas verdes saindo da terra são bacanas e tal, mas não precisamos exclusivamente de frutas e verduras. Humanos podem viver de Carboteína por até um ano antes da fatiga celular começar a se manifestar. O mais importante é nós mantermos vivos, e é isso que fazemos na área de segurança.
Camila puxa Matt pelo braço.
- Ah, tenha dó, precisamos mesmo ouvir isso de novo?
- Nem.- Matt responde.- Já temos bastante medo e fatalismo atualmente. Vamos pra algum lugar legal.

My girlfriend is a zombie.Onde histórias criam vida. Descubra agora