XV

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O Pomar acaba se mostrando diferente do que eu imaginava, não uma parte da fazenda do Estádio, e sim o único pub deles. Ou pelo menos o mais próximo que eles têm de um pub neste novo bastião de proibições. Chegar na entrada dele requer uma árdua jornada vertical pelas escadas e corredores do Estádio, tendo uma vista de toda a cidade. Primeiro, subimos quatro lances de escada em uma torre de habitação caindo aos pedaços enquanto os residentes nos observavam da porta de seus apartamentos. Depois, temos um cruzamento vertiginoso para o prédio vizinho. Garotos lá embaixo tentam olhar por baixo da saia de Mani enquanto andamos por uma passarela de tela de arame presa entre as torres pelos cabos de segurança. Já dentro do prédio vizinho, subimos mais três lances de escada antes de finalmente emergir em um pátio arejado bem acima das ruas. Um barulho de multidão surge pela porta do outro lado. Há uma grande tábua de carvalho com uma árvore amarela pintada.
Passo desajeitadamente por Camila para abrir a porta para ela. Mani sorri e Camila vira os olhos. Elas entram e eu as sigo.
O lugar está lotado, mas o clima é estranhamente calmo e parado. Ninguém grita, se cumprimenta e nem há nenhum pedido insistente de número de telefone. Apesar do sigilo mudo de sua localização obscura, o Pomar não serve bebidas alcoólicas.
- Agora eu pergunto a você.- Camila diz assim que entramos e vamos passando pelas pessoas.- Existe algo mais idiota do que um bando de ex-fuzileiros navais e trabalhadores de construção grisalhos afogando suas mágoas na porra de um bar de sucos? Ainda bem que podemos trazer um extra.
O Pomar é a primeira construção do Estádio que vejo que tem algum traço de personalidade. Todos os acessórios de um bar como esse estão aqui: jogo de dardos, mesas de sinuca e TVs de plasma com transmissões de futebol americano passando. No começo, fico impressionada por haver jogos. Será que ainda existe entretenimento? Será que existem pessoas por aí engajadas em frivolidades, independentemente dos tempos atuais? Mas, então, no começo do terceiro quarto, as imagens tremem como em uma fita de VHS e mudam para outro jogo, com times e placar diferentes no meio de uma interceptação. Cinco minutos depois, a imagem muda de novo, com apenas uma pequena e rápida tremida marcando a mudança. Nenhum dos torcedores parece notar. Eles assistem esses campeonatos abreviados e em repetição eterna com olhos vazios, tomando suas bebidas como atores reencenando um momento histórico.
Alguns clientes percebem que estou olhando para eles e por isso desvio o olhar. Mas depois volto a observar, pois tem algo nessa cena que mexe com minha cabeça. Um pensamento está se formando como os fantasmas das fotos da Polaroide.
- Três pomelos.- Camila grita para o barman, que parece um pouco envergonhado ao preparar as bebidas. Sentamos no balcão e as garotas começam a conversar. A música da voz delas substitui o rock clássico estridente da jukebox, mas mesmo isso acaba virando apenas um zumbido abafado. Fico olhando a TV. Fico olhando as pessoas. Posso ver o desenho dos seus ossos por baixo dos músculos. As pontas juntas pinicando por baixo da pele esticada. Ombros, mandíbulas e clavículas, vejo os esqueletos deles e a ideia que vai se formando na minha cabeça é algo que eu não esperava: uma planta ou um design dos Ossudos. Um vislumbre de suas mentes secas e distorcidas.
O universo está se comprimindo. Todas as memórias e possibilidades estão se compactando nos menores pontos enquanto o resto de sua carne sucumbe. Existir nessa singularidade, preso em um estado imutável e estático por toda a eternidade: este é o mundo dos Ossudos. Eles são os olhares de peixe morto das fotos de identidade, congelados no exato momento que desistiram de sua humanidade. Esse instante em que eles cortam o último fio de ligação e despencam em silêncio no abismo. Então não sobrou mais nada. Nenhum pensamento, sentimento, passado ou futuro. Não existe nada, apenas a necessidade desesperada de manter as coisas como estão, como sempre foram. Ele tem que se manter nos trilhos do seu círculo fechado ou serão subjugados, queimados e
consumidos pelas cores, sons e o enorme céu aberto.
E esse pensamento passeia pela minha cabeça, sussurrando para meus nervos como vozes em linhas telefônicas: e se pudermos tirá-los dos trilhos? Já abalamos a estrutura deles o suficiente para provocar sua raiva cega. E se pudermos criar uma mudança tão grande, nova e surpreendente que eles simplesmente desistam? Rendam-se, virem pó e sejam levados da cidade pelo vento.
-L.- Camila cutuca meu braço.- Onde você está? Sonhando acordada de novo?
Sorrio e dou de ombros. Mais uma vez meu vocabulário falha comigo. Vou ter que achar um jeito de fazê-la entrar em minha mente, e logo. O que quer que seja isso que estou querendo fazer, sei que não tenho nenhuma chance de fazer sozinha.
O barman volta com nossas bebidas e Camila ri para mim e Mani enquanto avaliamos os três copos do pálido néctar amarelo.
- Lembra de quando éramos crianças e o suco de pomelo puro era só pra quem era durão? Era tipo o uísque das bebidas de crianças?
- Claro.- Mani responde rindo.- Suco de maçã, laranja e o resto era tudo coisa de mulherzinha.
Camila levanta seu copo.
- Um brinde a nossa nova amiga Elle.
Levanto meu copo um centímetro do bar e as garotas baixam os delas e batem no meu. Bebemos. Não sinto exatamente o gosto, mas o suco arde a minha boca ao passar por velhos cortes nas minhas bochechas, mordidas que não me lembro de ter dado.
Camila pede outra rodada e, quando chega, ela põe sua bolsa no ombro e pega os três copos. Depois, chega mais perto de nós e dá uma piscadela.
- Já volto.- Diz se levantando e indo ao banheiro com nossas bebidas.
- O que ela... está fazendo?- Pergunto a Mani.
- Sei lá. Roubando nossas bebidas?
Ficamos ali sentadas, num silêncio um pouco constrangedor, amigas de amigas sentadas sem a presença de Camila como tecido conector. Depois de alguns minutos, Mani se inclina para mim e fala em voz baixa.
- Você entende por que ela disse que você era a minha namorada, né?
Dou de ombros e depois faço que sim com a cabeça.
- Claro.
- Não foi por mal, ela só queria desviar a atenção de você. Se ela dissesse que você era a namorada dela, ou amiga ou qualquer coisa ligada a ela, o Cabello faria um puta interrogatório com você. E claro que se ele olhasse com cuidado para você... bom, a maquiagem não é perfeita.
- Eu enten... do.
- E só pra você saber, ela levar você pra ver a mãe dela foi algo muito importante.
Levanto as sobrancelhas.
- Ela não conta esse tipo de coisa para as pessoas. Até para o Matt, ela demorou três anos para contar. Não sei explicar o que isso quer dizer exatamente para ela, mas é algo novo.
Estudo o bar, meio envergonhada. Um sorriso estranhamente amável se espalha pelo rosto de Mani.
- Sabe que você me lembra um pouco o Matt?
Fico tensa. Sinto o remorso quente queimando minha garganta novamente.
- Não sei bem o que é, quer dizer, com certeza você não é falante como o Mattie, mas tem o mesmo brilho que ele tinha quando era jovem.
Devia costurar minha boca para mantê-la fechada. A honestidade é algo que já me prejudicou mais de uma vez. Mas simplesmente não consigo mais segurar. As palavras se constroem e explodem de mim como um espirro impossível de ser contido.
- Eu o matei. E comi... seu cérebro.
Mani contrai os lábios e assente devagar com a cabeça.
- É... imaginei que você tivesse feito isso.
Meu rosto fica sem expressão.
- Como?
- Não vi acontecer, mas andei pensando no assunto, juntei dois mais dois. Faz todo o sentido.
Olho para ela atordoada.
- Camila... sabe?
- Acho que não. Mas se souber, tenho quase certeza de que não se importa.
Ela encosta na minha mão, que está sobre o bar. - Você pode contar, L. Acho que ela vai perdoar você.
- Por quê?
- Pela mesma razão que eu perdoei.
- Qual?
- Porque não foi você. Foi a praga.
Espero por mais. Ela assiste à TV acima do bar e uma luz verde pálida pisca em seu rosto.
- Camila contou a você sobre quando Matt a traiu com a garota órfã? Hesito, depois faço que sim com a cabeça.
- Bom... era eu.
Meus olhos se viram em direção ao banheiro, mas Mani não parece estar escondendo nada.
- Estava aqui fazia uma semana. Ainda não conhecia Camila. Aliás, foi como a conheci.
- Transei com o namorado dela e ela me odiou, e então o tempo passou, muita coisa aconteceu e de algum jeito acabamos ficando amigas. Bem louco, né?- Ela vira o copo na boca para tomar as últimas gotas que sobraram e depois o coloca no balcão. - O que quero dizer é que o mundo é uma bosta e coisas fodidas acontecem, mas não precisamos nos banhar na merda. Dezesseis anos atrás, L, meus pais viciados em drogas me colocaram para fora de casa em uma área infestada de zumbis, simplesmente porque não tinham como me alimentar. Vaguei sozinha durante anos antes de encontrar o Estádio Cidade, e não tenho dedos suficientes para contar quantas vezes eu quase morri.- Ela levanta a mão esquerda e mostra o dedo pela metade como se fosse uma noiva mostrando o anel de diamantes.
- O que quero dizer é que, quando se tem um peso destes na vida, ou você começa a ver as coisas de uma outra perspectiva, ou simplesmente afunda.
Olho Mani nos olhos, mas não consigo decifrar o que querem expressar, sendo o analfabeto que sou.
- Qual... a outra perspectiva... de matar Matt?
-Ah, L. - Ela dá um tapinha do lado da minha cabeça. - Você é uma zumbi. Você tem a praga em você. Ou pelo menos tinha quando matou o Matt. Talvez seja diferente agora, e espero muito que seja mesmo, mas naquela época você não tinha escolha. Não é um crime, não é assassinato, é algo muito mais profundo e inevitável.
Ela dá um tapinha na própria cabeça. - Camila e eu entendemos isso, viu? Tem um ditado Zen que diz: "Sem elogios, sem culpa, apenas ser." Não ligamos pra ficar culpando alguém pela condição humana, só queremos achar uma cura pra ela.
Camila emerge do banheiro e coloca nossos copos no bar com um sorriso malicioso.
- Até o suco de pomelo pode ter uma ajudinha às vezes.
Mani dá um gole para experimentar e se vira, cobrindo a boca.
- Meus Deus!- ela fala tossindo.
- Quanto você colocou aqui?
- Só umas garrafinhas de uísque.
Camila sussurra com uma inocência juvenil.
- Cortesia da nossa amiga Elle e a Aerolinhas Mortos-vivos.
- Mandou bem, Elle.
Faço que não com a cabeça.
- Por favor... não me chamem de...
- Tá bom, tá bom.- Camila diz. - Nada mais de Elle. Mas vamos brindar a quê agora? É sua bebida, L, então você decide.
Seguro o copo à minha frente. Dou uma cheirada, insistindo comigo mesma que consigo sentir o cheiro de outras coisas além de morte e morte em potencial, que ainda sou humana, completa. Um cheiro cítrico pinica minhas narinas. Pomares brilhantes da Flórida no verão. O brinde que me vem à mente é bem piegas, mas falo mesmo assim.
- A... vida.
Mani abafa uma risada.
- Jura?
Camila dá de ombros.
- Totalmente piegas, mas que se dane. Ela levanta o copo e brinda comigo.
- A vida, Sra. Zumbi.
-Vchaim - diz Mani e toma todo o conteúdo de seu copo.

My girlfriend is a zombie.Where stories live. Discover now